texto de Davi Caro
Quando “Alien Lanes” foi lançado, em abril de 1995, Robert Pollard tinha 38 anos. O vocalista e principal compositor do Guided By Voices, nascido em Dayton, Ohio, havia idealizado a banda em 1983, há exatamente quatro décadas, e então já acumulava sete discos lançados. Seu álbum anterior, “Bee Thousand” (1994), era uma coleção de espertas canções pop, fruto de uma mente capaz de compor músicas com a mesma espontaneidade com a qual alguém troca de roupas; um beatlemaníaco cuja predileção por melodias pop não passava despercebida mesmo debaixo de chiados e barulhos característicos de gravações em fita cassete, formato preferido de Pollard; um cidadão que havia passado anos trabalhando como professor escolar e que, casado e com filhos, gravava canções em sua garagem em seu tempo livre, acumulando uma década de material que se tornava conhecido em seu círculo de amigos e raramente chamava a atenção de pessoas de fora.
Tudo isso é, hoje, considerado cânone na história do Guided By Voices, uma das mais influentes bandas da história do tal rock independente norte-americano. Pouco conhecidos pela grande massa no Brasil (mesmo com a Trama despejando quatro discos deles por aqui no começo dos anos 2000 – incluindo “Alien Lanes” e “Universal Truths And Cycles”), o grupo (e suas muitas formações, sempre rotativas em torno de seu fundador) já ganhou tributo da cena indie tupiniquim e agregou e continua arrebatando legiões de fãs, especialmente em seu país natal. Recentemente, o Guided esgotou dois shows comemorativos na mesma Dayton onde tudo começou, onde tocaram ao lado de bandas como Dinosaur Jr., Wednesday e Built to Spill, enquanto celebraram suas quatro décadas de existência. Além disso, muitas outras bandas, como o Pavement e os Strokes, já se declararam fãs ávidos do quinteto – que, apesar do entra e sai de membros, sempre manteve mais ou menos a mesma estrutura ao longo de uma discografia que, hoje, abarca quase 40 álbuns – e da estética “lo-fi” que Pollard e seus comparsas vieram a simbolizar. E toda essa canonização pode, em retrospecto, ser considerada consequência direta do (inesperado) impacto que seu oitavo álbum, “Alien Lanes”, teve imediatamente após o lançamento.
Depois de “Bee Thousand” chegar ao mercado por meio da independente Scat Records (com distribuição da então-um-pouco-maior Matador), o Guided By Voices se deparou com o inesperado quando a última lhe ofereceu um contrato que pareceria irreal poucos anos antes. Robert se viu diante de um adiantamento inacreditável de 100 mil dólares para a gravação, o que asseguraria o uso de estúdios profissionais e seria certeza de maior apelo popular, contrastando com a comparativamente estranha deficiência (ou eficiência) de recursos que marcavam os trabalhos da banda até então. Além disso, diferente de “Bee” (que contava com gravações mais antigas, quase como uma coletânea), o novo disco traria músicas mais recentes, que se beneficiariam de registros mais sofisticados.
Robert Pollard contou aqui que o custo de gravação de “Alien Lanes”, excetuando-se a quantia gasta em cerveja, foi de aproximadamente 10 dólares, e todas as faixas seriam registradas pela formação “clássica” da banda – que, além de Pollard nos vocais, ainda trazia os guitarristas Tobin Sprout e Mitch Mitchell (não confundir com o baterista do Jimi Hendrix Experience), o baixista Greg Demos e o baterista Kevin Fennell, com participações pontuais dos xarás Jim Pollard e Jim Greer – no estúdio caseiro de Sprout ao longo do segundo semestre de 1994, o que garantiria a preservação dos dois elementos que mais distinguiam o Guided de qualquer um de seus contemporâneos: faixas ruidosas e prodigiosos tracklists (“Alien” somaria 28 músicas ao longo de pouco mais de 40 minutos).
Existem pelo menos dois motivos para “Alien Lanes” ter se tornado o marco que foi. Antes de mais nada, as canções: uma das coisas que mais chamam a atenção de ouvintes de primeira viagem são os longos, e pouco explicativos, títulos escolhidos por Pollard. Aqueles menos familiarizados podem se surpreender com nomes como “(I Want to Be a) Dumbcharger” ou “Big Chief Chinese Restaurant”. Porém, jogos de palavras parecidos guardam justamente alguns dos melhores momentos do álbum. “A Salty Salute”, trazendo o mantra “The Club is Open!”, abre o disco como uma declaração de propósitos, algo parecido como um objetivo central ao redor do qual todas as atividades do Guided By Voices circulam: diversão regada a quantidades homéricas de cerveja. Não demora muito para que outra das características mais marcantes do material da banda se faça presente, e “Evil Speakers” é a primeira instância de uma faixa mais curta, que funciona como uma espécie de interlúdio até o próximo número, a agitada “Watch Me Jumpstart”. É claro que dizer que uma faixa é mais curta pode não significar muito num álbum onde a música mais longa (a última do tracklist, “Alright”) chega a impressionantes 2 minutos e 57 segundos.
É interessante observar que a medida que o ouvinte se familiariza com os ruídos, presentes em cada gravação, os clássicos começam a transparecer por trás da barulheira: uma das preferidas pelos fãs, “Game of Pricks” se tornou presença certeira em praticamente todos os setlists do grupo desde seu lançamento, mesmo em apresentações mais focadas em material novo. O mesmo pode ser dito tanto sobre a dobradinha “Auditorium”/“Motor Away”, mais reminiscentes do power pop de bandas como o Cheap Trick, quanto de “My Valuable Hunting Knife”, um exemplo primoroso do método de Robert como letrista – metáforas que não fazem muito sentido quando vistas individualmente, mas que passam a fazer mais sentido quando vistas dentro de um contexto mais amplo.
“Contexto”, aliás, é o segredo para que se entenda melhor o pensamento por trás de muitas das excelentes canções contidas aqui. Além de um fã dedicado do pop e da psicodelia sessentistas, Pollard também não esconde uma predileção grande por bandas como o Genesis, que, em seus primeiros discos (onde eram capitaneados por Peter Gabriel), eram capazes de construir reluzentes micro-universos em suas canções mais simples e aparentemente inofensivas. Por isso mesmo, por mais supérfluos que possam parecer os 42 segundos de uma faixa como “Pimple Zoo” ou “Hit”, com deslumbrantes 23 segundos de duração, são partes integrais para a construção de uma obra – além de serem uma tendência adotada à exaustão pelo menos desde “Propeller” (1992).
O outro motivo determinante para o sucesso de “Alien Lanes” tem a ver com sua importância tanto dentro do cenário no qual o álbum foi lançado quanto em relação à carreira do Guided como um todo: afinal, em 1995, com o estouro do grunge se afastando no espelho retrovisor, mas antes da febre do britpop tomar conta do mundo, o mundo da música mainstream ainda se mostrava mais receptiva a bandas e artistas que subvertessem as regras do que era consumido pelos públicos de massa, flertando com a ironia e explorando formas menos reverentes de difusão. É claro que não se podia abusar da sorte mesmo com tamanha receptividade do público, e Pollard e seus comparsas se certificaram de cobrir todas as possibilidades.
Não por acaso, a masterização de “Alien Lanes” ficaria a cargo de Bob Ludwig (encarregado de trabalhar em álbuns como “Nebraska”, de Bruce Springsteen, curiosamente o disco “lo-fi” mais aclamado de todos os tempos), e, após seu lançamento, seria encarado com surpresa e receberia elogios mesmo dos setores mais conservadores da imprensa especializada. A revista Rolling Stone famosamente daria uma impressionante nota 4 de 5 estrelas ao disco, e outros veículos contemporâneos, como a Pitchfork e o jornal The Guardian encontrariam motivos mais do que suficientes para alçar a obra ao status de clássico – a primeira, inclusive, concederia ao disco do Guided a 27ª posição em sua lista dos 100 Maiores Álbuns dos Anos 1990.
“Alien Lanes” acabaria se tornando, em retrospecto, o ponto central daquilo que seria chamado de “fase clássica” da carreira do Guided By Voices, sendo antecedido por “Bee Thousand” e sucedido pelo também reverenciado “Under The Bushes Under The Stars” (1996). Este último também seria o derradeiro álbum a ser registrado pela mesma formação, já que o disco seguinte, “Mag Earwhig!” (1997), já contava com outros membros e também com um requinte de produção bem mais acertado, o que faria os discos anteriores parecerem trabalhos amadores. A maior sofisticação, por outro lado, não virou sinônimo de respeito da crítica, e “Do The Collapse” (1999) iniciaria um período que dividiria os fãs e que levaria Robert Pollard ao esgotamento e, por consequência, à dissolução do Guided, na virada de 2004 para 2005. O grupo, com seu lineup mais consagrado, só retomaria as atividades em 2010, lançando cinco discos entre 2012 e 2014, quando mais uma vez a trajetória seria brevemente interrompida e o quinteto mais memorável por trás seria dissolvido de modo definitivo. Pollard eventualmente se reuniria sob o nome de seu grupo mais uma vez em 2016, e segue lançando novos discos ano após ano – só em 2023, já foram dois álbuns lançados.
Ano após ano, o fato é que os fãs (em especial os mais antenados, ou pelo menos aqueles que cultuam ferozmente os muitos projetos paralelos engendrados pelo vocalista) sempre esperam por um novo lançamento do Guided By Voices, seja lá qual for a formação. De todo modo, cada novo disco vem com a expectativa de fazer frente aos álbuns mais célebres do grupo, em particular os três clássicos lançados na metade dos anos 90. Porém, se “Bee Thousand” foi responsável por, pela primeira vez, chamar a atenção para a inquietante mente de um cidadão médio americano e seus colegas de som e bebedeira, e “Under The Bushes Under The Stars” consolidou a reputação do Guided By Voices no circuito independente norte-americano, foi com “Alien Lanes” que Robert Pollard e seu quarteto mais aclamado gravaram seu nome na história da música pop (em partes) para as massas.
Ainda se nada mais tivesse sido lançado sob o nome da banda, e seu oitavo trabalho tivesse, de fato, sido seu canto de cisne, ainda assim o Guided By Voices seria lembrado com carinho por aqueles que deixaram o brilho de belas canções pop reluzirem através dos ruídos e dissonâncias; uma relíquia do rock independente – quando este termo ainda tinha um significado muito diferente – e símbolo de uma época em que lançar um disco barulhento, esquisito e ainda assim, fascinante era, acima de qualquer coisa, um ato de heroísmo.”
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo