texto por Marcelo Costa
“Asteroid City”, Wes Anderson (2023)
Com o passar dos anos, mais do que qualquer outro cineasta, o texano Wes Anderson criou não só uma linguagem própria, mas todo um universo paralelo a tudo aquilo que tornou-se popular no cinema nos últimos tempos fazendo com que cada filme novo seu se abrigasse em uma redoma quase que a prova de neófitos. 2023, porém, é um ano bastante singular em que o filme hit da temporada, “Barbie”, guarda mais semelhanças com o cinema de Wes do que qualquer outra coisa que esteja em cartaz, criando paralelos inimagináveis entre a Barbieland e Asteroid City, uma cidadezinha texana no meio do deserto que recebe a visita de um grupo de jovens geniozinhos – e suas famílias – para uma competição cientifica. Espécie de filme dentro do filme, ou melhor, uma peça de teatro dentro de um programa de televisão transformado em filme com atores saindo de cena e tanto esquecendo de voltar ao roteiro quanto questionando o porquê do roteirista inserir uma cena nonsense gratuita na história, “Asteroid City” é um dos filmes mais vagos de Wes Anderson, que tenta emoldurar memórias tanto quanto entender suas próprias histórias de família (boomer texana) com um daqueles elencos “de amigos” que ousa juntar Seu Jorge e Jarvis Cocker numa cena rápida tanto quanto desfilar nomes como Edward Norton, Adrien Brody, Willem Dafoe, Jason Schwartzman, Scarlett Johansson, Tom Hanks, Jeffrey Wright, Tilda Swinton, Hope Davis, Steve Carell, Matt Dillon, Jeff Goldblum e, veja só, Margot Robbie, numa trama deliciosamente visual e personal, mas com pouca coisa tátil para o espectador. Sim, estão aqui os enquadramentos maravilhosos e os personagens excêntricos que agem como robôs seja caminhando, fotografando ou anotando curiosidades em um caderno, mas o que fica é a sensação de um exercício de estilo sem um foco específico, o que permite trazer à tona romance, luto, questões familiares, bombas nucleares, milk shake, interferência do estado e visita de extraterrestres. Listado assim pode parecer sedutor (e, inegavelmente, é), mas a sensação final é de que Wes, dessa vez, deixou todos nós de fora da redoma olhando maravilhados um filme belo e oco sem entender patavina… Beleza basta?
Nota: 6
“Shiva Baby”, de Emma Seligman (2020)
Nos primeiros 60 segundos de projeção de “Shiva Baby” temos dois polos que irão nortear os cômicos e angustiantes 77 minutos seguintes (passados em tempo real): sexo e morte. A cena começa com a estudante universitária Danielle (Rachel Sennott) sobre um homem em um sofá, eles estão no fim do ato sexual e o fato dela dizer “yes, daddy” aparentemente fez com muitos achassem que ele seja o “sugar daddy” dela, ainda que, logo depois, ele demonstre certo ciúme de outros “possíveis clientes” dela. Esse minuto inicial termina com Danielle ouvindo um áudio de sua mãe pedindo para que ela não se esqueça de ir ao funeral – Shivá (do hebraico “sete”) é, dentro do judaísmo, o período de sete dias de luto mantidos pela morte de uma pessoa próxima. O “casal” finaliza o “negócio”, e Danielle parte para encontrar, no funeral em uma casa judia, os pais que a pressionam além do limite aceitável e a ex por quem ela continua apaixonada. Ahhh, e também o homem com quem ela acabou de transar, que ela não apenas descobre que já trabalhou com seu pai como também é casado e tem uma filha ainda bebê – a esposa e a pequena também estão vindo para o cerimonial completando o cenário caótico de algo que se assemelha muito ao nosso cerimonial de nascimento de Jesus, também conhecido como Natal, aquele icônico evento familiar em que as tias sempre perguntam “dos namoradinhos” e do que “você está fazendo da vida” enquanto os tios fazem a clássica piada do “é pavê ou pra comer?”. Insira na história um homem com quem você está fazendo negócios que envolvem sexo e dinheiro (sem nenhum juízo ou pré-conceito, por favor) sem saber que ele é “da família”, a presença de sua ex-namorada (até sua mãe sabe que você é bissexual, mas ela espera que seja só uma fase) e da esposa dele e… temos um filme indie delicioso e claustrofóbico repleto de gatilhos. Obra de estreia da jovem cineasta Emma Seligman, que viu potencial em seu curta apresentado como tese na NYU para transformá-lo em um longa, “Shiva Baby” empilha deliciosos clichês baseados em encontros e desencontros, causos de família e celulares perdidos para prender a atenção e a respiração do espectador até o final f… bem, assista. Vale muito a pena.
Nota: 8
“Afterimage”, Andrzej Wajda (2016)
Władysław Strzemiński foi um professor e pintor de vanguarda influente na cena europeia tendo sido assistente de Malevich e colaborador de Rodchenko no começo dos anos 20 na então União Soviética – ele dedicou-se a arte após perder um braço e uma perna na Primeira Guerra Mundial. Nos anos 30, vivendo em Lodz, uma grande cidade a 130 quilômetros de Varsóvia, ele seria reconhecido e premiado na Polônia, atuando como pensador e ativista cultural ao lado da esposa, a escultora Katarzyna Kobro, mas sua história seria atacada e interrompida drasticamente pelo regime stalinista. “Afterimage” (“Powidoki”, no original), filme indicado pela Polônia ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2016, começa em 1948, quando as aulas de Strzemiński era concorridas na Escola de Artes Visuais de Lodz, da qual ele foi co-fundador, e da qual ele foi demitido (numa história que remete a Artigas) em 1948 por exigência de Włodzimierz Sokorski, Ministro da Cultura da Polônia, sob a acusação de não respeitar as normas da doutrina do realismo socialista (o ministro também é “famoso” por tentar banir o jazz da cena polonesa em 1949). Inicia-se então uma perseguição implacável do Estado contra Strzemiński, que tem todas as suas tentativas de trabalho negadas, suas obras recolhidas e/ou destruídas (incluindo a icônica Sala Neoplástica no Museu de Arte de Łódz) e seus alunos – que tentaram, e conseguiram, registrar as ideias do mestre para um futuro livro – perseguidos, exemplo doloroso do como o Estado pode assassinar uma pessoa (aos 52 anos) usando uma caneta e palavras. Último e belo filme do mítico cineasta polaco Andrzej Wajda (detentor de quatro prêmios em Cannes, um César, um Bafta e um Oscar honorário – que ele doou ao Museu da Universidade Jaguelônica, na Cracóvia), que morreu aos 86 anos no mesmo ano que o filme foi lançado, este excelente “Afterimage” (com atuação surpreendente de Bogusław Linda como Strzemiński) se junta ao poderoso “Katyn” (2007), um dos filmes de guerra mais dolorosos já feitos, com duas obras obrigatórias do cineasta neste século. Essencial!
Nota: 10
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
Toda vez passava no mubi pelo Shiva baby e me perguntava se valia a pena. Agora sei que vale.