texto de Davi Caro
Quando as notícias da morte de George Michael chegaram ao público, no Natal de 2016, a enxurrada de homenagens veio de todos os lados. Fãs, familiares, amigos, colegas e influenciados fizeram questão de deixar claro o quão importante o trabalho do cantor e compositor foi e continuaria sendo. Uma reação, porém, foi singela, mas significativa: a de Andrew Ridgeley, ex-colega de escola de Michael e co-integrante do Wham!, que cativou audiências ao redor do mundo entre 1983 e 1986 e serviu, eventualmente, como uma catapulta que alçou George ao estrelato. Ridgeley se disse “de coração partido com a perda de meu amado amigo Yog”, fazendo referência ao apelido pelo qual se referia ao parceiro, que conhecia desde os 12 anos de idade.
A simplicidade da homenagem de Ridgeley é reveladora: tanto Michael (fosse em inúmeras declarações na imprensa, ou na eventual inclusão de canções do Wham! em seus shows) quanto Andrew (que publicou a biografia “Wham!, George and Me” em 2019) sempre fizeram questão de salientar a importância que o período em que passaram juntos representou e representa para eles próprios e para seu público, ainda que grande parte das pessoas continue a pensar nos cerca de sete anos e quatro discos de estúdio lançados pelo duo como um prólogo glorificado à estratoférica carreira solo de Michael. E “Wham!” (2023), documentário lançado recentemente pela Netflix com direção de Chris Smith (de “Tiger King” e “Jim & Andy”) vem com a promessa de retificar essa percepção.
Desde o início do filme ficam claras a intimidade e a solidez da amizade entre Michael e Ridgeley: ambos filhos e netos de imigrantes (o pai de Andrew vem de linhagem ítalo-egípcia, enquanto George – cujo nome real é Giorgios Kyriacos Panayiotou – é descendente de gregos), os dois cresceram em um ambiente em que a ideia de formar uma banda parecia um sonho distante. Após um breve período no qual fizeram parte do grupo de ska The Executive, a dupla resolveu seguir por conta própria. Após um período de transição e dúvidas, os amigos finalmente conseguiram assinar contrato com a gravadora Innervision em 1982 e, em seguida, lançariam seus primeiros singles.
A repercussão comercial do debut do Wham!, “Fantastic” (1983), foi grande o suficiente para gerar atenção em torno do potencial dos dois, mas mudanças seriam necessárias para seguir em frente: Michael passaria a ter maior controle criativo em torno da produção e da composição das canções, enquanto o companheiro teria funções um pouco mais “secundárias”, e se dedicaria mais às performances. Os três discos seguintes, “Make It Big” (1984), “Music From The Edge of Heaven” e “The Final” (ambos de 1986) seguiriam este molde, e se converteriam em esmagadores sucessos em rádios (“Wake Me Up Before You Go-Go”, “Everything She Wants”, “Careless Whisper”, “Last Christmas”, “I’m Your Man”…) e multidões em shows que atravessariam o mundo, levando-os inclusive a serem os primeiros artistas pop estrangeiros a tocarem na China, em 1985.
Todos os eventos citados são cobertos pela produção, que conta tanto com imagens raras (como as das gravações do clipe de “Club Tropicana” em Ibiza, por exemplo) quanto com depoimentos – novos, no caso de Ridgeley, e de arquivo, nas palavras de Michael e do empresário Simon Napier-Bell, responsável pelo contrato assinado pela dupla com a poderosa CBS antes do lançamento de seu segundo álbum. Atenção especial é dada à concepção da imortal “Careless Whisper”, que, apesar de lançada em um disco do Wham! e de ter a contribuição dos dois integrantes, é tida como o primeiro single solo de George Michael (que desenvolveu, em seu desafiador processo de gravação, um lado perfeccionista que se estenderia por seus trabalhos futuros).
Também são dignos de nota a já citada visita a China, que foi documentada em um outro filme lançado na época e cuja relevância é realçada aqui; a exaustiva turnê de divulgação de “Make It Big”, com singles no número um dos dois lados do Atlântico e que levou os dois companheiros ao limite da exaustão; os próprios conflitos de Michael com a própria sexualidade, e a cumplicidade de Ridgeley tanto para com a percepção do amigo como gay quanto com a decisão de não revelar o que seria um segredo até 1998; a participação de Michael no estrelado single beneficente “Do They Know It’s Christmas”, idealizado por Bob Geldof em 1984 e lançado com o nome de Band Aid, e a subequente presença também de Andrew no show de Elton John no Live Aid do ano seguinte; e a decisão de encerrar atividades, que se deu com um show gigantesco no Estádio de Wembley, em 1986. Em relação a este último, é palpável e até comovente a relação de confiança entre os dois velhos parceiros, que tomaram a decisão de dar um basta no Wham! de forma consensual e amigável. Ridgeley, em retrospecto, se mostra confortável com a ideia de que George, nos últimos anos da dupla, tomou um protagonismo maior, tendo o senso de composição do companheiro como determinante para o sucesso alcançado pelos dois.
É perceptível, porém, que a produção não faz esforços maiores para se aprofundar mais em determinados detalhes da trajetória do Wham!, o que faz com que a produção, indicada para neófitos, possa decepcionar fãs mais dedicados, que devem achar a experiência um pouco rasa. Seria interessante, por exemplo, ver partes da entrevista conjunta de Michael e Morrissey, em 1984, para o programa Eight Days A Week da BBC, na qual os dois discutem suas opiniões sobre o Joy Division (spoiler: George era fã, enquanto o cantor dos Smiths… nem tanto: assista abaixo) – não custa relembrar que a inspiração do vocalista dos Smiths em mandar enforcar DJs em uma canção nasceu quando ele estava ouvindo uma rádio e anunciaram o vazamento em Chernobyl… na sequência o DJ emendou “Wake Me Up Before You Go”…
Também não existe nem menção àquela que seria de fato a última reunião dos dois membros do Wham!, bem longe de sua Inglaterra natal: Ridgeley participou, como convidado, de um dos shows que Michael fez como headliner do Rock In Rio II, em 1991. É claro que menções à carreira solo do cantor não teriam espaço aqui, por motivos óbvios – a nova produção, inclusive, funciona muito bem como um complemento ao bom documentário “Freedom Uncut” (2017), no qual George vinha trabalhando na época de seu falecimento e que finalmente veio à tona no ano passado. O pouco detalhamento dado às informações não estraga a experiência de ver uma boa produção, mas pode tornar o resultado final um pouco protocolar.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo