texto de João Paulo Barreto
Em figuras como Vito, Santino ou Michael Corleone, personagens criados por Mario Puzo para a vigorosa saga narrada em “O Padrinho”, livro adaptado para o cinema como, no Brasil, “O Poderoso Chefão”, a fraqueza física e emocional é algo inaceitável. Nas palavras de Don Vito: “Eu passei a minha vida toda tentando não ser descuidado. Mulheres e crianças podem ser descuidadas. Homens, não”. No original, a palavra “carelees” traz um significado ainda mais profundo do que apenas aquele relacionado a “descuido”. Em português, outra palavra que definiria aquele contexto da obra levada ao cinema por Francis Ford Coppola, seria, também, “fraqueza”. Naquele mundo de crimes, sangue, mortes, dinheiro, influência e poder, tais homens não podem ser fracos. Fraqueza física e psicológica é algo inconcebível. Vide o desfecho do quarto homem daquele clã, Fredo Corleone, em sua desesperadora e facilmente manipulável ausência de pulso.
Mas, em um exercício de cinefilia e imaginação, e se quiséssemos mergulhar mais profundamente nos tormentos psicológicos sofridos por tais homens? E nos tormentos das mulheres? Aquelas que habitam um ambiente tão machista, misógino, excludente e perverso. Quais são os pontos de vistas delas diante de tal universo massacrante? Mama Corlene, Connie, a única filha do clã, ou Kay, esposa de Michael, são todas excluídas no desenvolvimento emocional daqueles arcos (excetuando a figura de Kay, cuja participação se torna pilar na trajetória do marido – mas, veja que, mesmo assim, ela ainda vive sob aquela sombra). Mas a pergunta central nesse exercício é: e se aqueles homens não fossem as fortalezas que aparentam? Quais seriam as suas fraquezas?
O diretor e roteirista David Chase, no final dos anos 1990, ao criar “The Sopranos” (no Brasil, “Família Soprano”), propôs justamente essa reflexão à sua audiência obcecada pelo mundo da Máfia no cinema. Qual é o peso daquela responsabilidade, daquela força tradicional, familiar, oriunda de uma prática criminosa milenar, nas costas do líder daquela organização (ou famiglia) que encara aquilo não como algo condenável, mas, sim, apenas como negócios? Como algo deles ou uma “cosa nostra”. Na figura do chefe daquela família está Tony Soprano (papel que o saudoso James Gandolfini nascera para interpretar), homem que equilibra carisma, sorrisos e personalidade aprazível com (quando necessário) agressividade, brutalidade e respeito imposto de maneira calculista àqueles a quem comanda.
No primeiro capítulo, conhecemos Tony naquele traje que se tornará habitual durante os 86 episódios da série: o roupão de banho que usa no conforto da sua luxuosa casa. É também nesse episódio piloto que sua fraqueza nos é apresentada: os constantes ataques de pânico que surgem a partir da perda de bichos que ele considerava de estimação (alguns patos selvagens que habitavam sua piscina). Nessa simples apresentação, todo um universo de discussão psicológica denotada na partida dos animais é estudado pela médica psiquiatra Jennifer Melfi (Lorraine Bracco, de “Os Bons Companheiros”) em sessões que visam entender o que o peso daquela vida de “negócios”, bem como os conflitos com sua mãe doente e família conturbada, têm causado à saúde mental de Tony.
Questões como a da culpa católica, fé, homossexualidade, conflitos existenciais, tradição vs. modernidade e até mesmo matricídio são abordadas durante as sete temporadas da série que terminou em 2007. E não somente o ponto de vista de Tony Soprano é mostrado dentro desses temas. Mesmo que, desde a sua vinheta de abertura até a simbólica cena final, o show traga a visão de mundo do chefe da família através da qual a audiência é apresentada àquele universo, “Família Soprano” dedica muitos de seus episódios aos dramas de suas personagens femininas. A começar pela análise de Carmela Soprano (Eddie Falco), mulher de um Tony bígamo e que reprime qualquer discussão ou questionamento trazido por sua esposa diante de um casamento que se desgasta. Ainda assim, temos na figura de Carmela mais uma personagem a destoar do que conhecemos da presença feminina na Máfia dentro do cinema, e encontramos um dos melhores arcos e reflexões oferecidas pelo time de roteiristas liderado por David Chase no seriado vencedor de cinco Globos de Ouro.
Dentro de uma existência hipócrita, na qual reconhece intimamente que todo o luxo de sua vida advém dos crimes de seu marido, ela busca, em sua visão religiosa de mundo, atenuar sua culpa, criando vínculos sociais com a igreja e com doações financeiras generosas à universidade onde estuda a primogênita. Os filhos, ainda crianças no começo da série, são outros personagens estudados dentro daquele mundo de crime, cujo espelho acaba servindo-lhes de maneira a machucá-los quase irremediavelmente, como vimos na vida de Anthony Jr., caçula de Tony, que chega à fase adulta passando por diversos dramas e crises depressivas.
Ainda no aspecto feminino, a veterana Nancy Marchand, que interpretou Livia Soprano, a mãe de Tony, traz para a série um riquíssimo estudo de uma relação freudiana com o chefe da família que seguiu os passos do pai, o falecido marido de Livia, Johnny Soprano. Nos conflitos nervosos e calcados em uma total falta de inteligência emocional entre Tony e sua mãe, descobrimos, tanto através dos encontros explosivos entre ambos quanto pelas consultas médicas entre ele e a Dra. Melfi, que boa parte dos sentimentos reprimidos pelo chefão da máfia em Nova Jersey advém do constante atrito oriundo da criação provida por sua mãe. Algo que, desde o princípio, eleva a série a um patamar especial de apreciação por permitir tal destrinchar mental de seu protagonista.
“É meu feijão com arroz. Meu ganha pão. Esse é o meu meio de vida.” É assim que Tony classifica sua maneira de ganhar dinheiro durante uma violenta cobrança da dívida que um ex-amigo dos tempos de colégio, e atual viciado em apostas, fez com ele em um jogo de pôquer de alto lastro. Na tentativa de apelar para a empatia pela trajetória de vida que ambos carregam, o amigo comete o erro de abusar da falsa simpatia que Tony tem por ele e acaba sofrendo as consequências de não seguir os conselhos do colega de classe em não apostar alto.
A frase citada acima explica de maneira exata o modo como Anthony Soprano, em sua deturpada visão da realidade, enxerga o mundo a sua volta. Contraditório, trata-se de um homicida que se compadece da perda de animais mortos ou maltratados, algo que a série trabalha com maestria ao definir e estudar profundamente a psicopatia assassina do seu protagonista. Em seus sonhos ilustrados pela realidade surreal representada pelo texto de David Chase, Tony parece visitar uma obra de Buñel, com seus traços visuais e sonoros. Tudo na simbólica linha tênue do caos no qual sua vida caminha.
Em uma série que contou com presenças de cineastas como Peter Bogdanovich, Sydney Pollack, bem como ícones na atuação como Frank Vincent, Steve Buscemi, Robert Loggia e Dominic Chianese, revisitá-la 24 anos após sua estreia e 16 desde seu final, nos faz perceber o quanto sua relevância dentro de uma sagaz escrita e abordagem de um mundo brutal ainda fascina. Tanto quanto a obra de Puzo e Coppola, reverenciada e referenciada em vários momentos de “The Sopranos”, uma série que, caso você ainda não tenha visto, você precisa ver.
Especial: 10 anos sem James Gandolfini e o podcast “Talking Sopranos Enhanced”
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.