texto por Renan Guerra
17 de março de 1991 é a data do fim legal do Apartheid na África do Sul. É um marco simbólico de um sistema racista que durante mais de 40 anos segregou a população sul-africana por conta da cor da sua pele, com uma divisão entre brancos, negros, mestiços e indianos – esse sistema só foi realmente eliminado do país em 1994 com a posse do presidente Nelson Mandela. Toda a história do Apartheid é algo absurdo recheado de episódios de violência policial, massacres e um descaso total com a população negra do país. É surreal pensar o quanto esse sistema está próximo de nós, são menos de 30 anos nos separando. Dentre as muitas histórias dessa fase está a meteórica existência da banda punk National Wake, o primeiro grupo a ter integrantes brancos e negros do país e que durou de 1978 a 1981. “This is National Wake” (2022), de Mirissa Neff, resgata essa história a partir de um interessante arquivo de imagens em super-8 e das falas dos integrantes ainda vivos da banda.
O Apartheid era um sistema no qual as pessoas brancas tinham livre circulação pelos espaços das cidades sul-africanas enquanto as pessoas negras precisavam de passes de serviço ou autorizações especiais para circular em determinados locais. Por exemplo, uma pessoa negra só poderia entrar em bairros brancos para prestar serviços e ela não poderia permanecer nesse bairro durante à noite. Nesse cenário, em 1978, o branco e judeu Ivan Kadey, um estudante de arquitetura, acaba por se tornar amigo dos irmãos Gary e Punka Khoza, dois homens negros moradores de Soweto, que era um importante conjunto de bairros para pessoas negras e que se tornou palco de uma importante resistência antirracista. A amizade entre os três se aprofunda e ao lado de alguns outros amigos eles acabam formando o National Wake. A banda surge de uma série de jams sessions e vai se formando a partir das experiências entre amigos apaixonados por música em uma casa estudantil. O National Wake passa a criar uma espécie de bolha onde esses jovens podiam existir sem as limitações do sistema racista.
O documentário de Mirissa Neff acompanha esse momento em que a banda se estabelece e começa a circular por Joanesburgo, tocando em espaços alternativos, em casas de shows que recebiam público negro e alguns outros poucos espaços que tinham a coragem de aceitar a banda. E o interessante disso é o rico material em super-8 que a diretora teve acesso, com imagens lindas dos shows do grupo, com o público racialmente misto dançando e vivenciando uma experiência única naqueles tempos no país. Desse caráter idílico de uma banda que consegue unir as pessoas, o National Wake também passa a vivenciar a violência e a crueza de um país sob a tutela de um regime fascista e preconceituoso. A banda passa a ser o alvo costumaz da polícia branca e se torna uma espécie de inimigo a ser atentamente monitorado pelo governo.
O National Wake gravou um único álbum em 1981, mas a pressão do governo fez com que a gravadora não conseguisse distribuir o disco e toda a tensão da repressão acaba por ir aos poucos minandoos integrantes. E é também sobre como tudo isso impacta a vida desses artistas que o filme “This is National Wake” se debruça. Em pouco mais de uma hora, Mirissa Neff apresenta uma dolorosa amostra de como a violência institucionalizada pelo Estado pode destruir sonhos e possibilidades e pode acabar com a existência plena de sua população. Em outra medida, é muito surpreendente perceber o poder político da música enquanto catalisadora de revoluções e intenções. O som punk e dançante do National Wake foi também um intenso libelo de possibilidades para aquelas pessoas que ainda acreditavam em um país sem a segregação racial. O filme é como um lembrete do potencial político do rock para aqueles que insistem em querer a despolitização do gênero – aliás, uma curiosidade para se ficar atento: quando o escritor e ativista Trevor Ngwane aparece no filme ele está trajando uma camiseta verde e amarela que diz “Lula Livre” e traz o rosto do nosso atual presidente.
“This is National Wake” é um filme curtinho, mas de um impacto muito potente sobre o espectador. Suas histórias são dolorosas, porém é muito interessante perceber a potência que a música possui. O disco do National Wake, bem com outras faixas esparsas, foram relançadas em 2013 tanto na reprensagem do disco quanto na compilação “Walk in Africa 1979-81”, ambos disponíveis nas plataformas de streaming aqui no Brasil. Vale conferir e ouvir as canções.
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– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.