entrevista por João Paulo Barreto
“O público não quer a verdade, mas a mentira que mais lhe agrade”, afirmou certa vez o poeta Fernando Pessoa. Em sua crítica ácida à sociedade, Pessoa, que morreu em 1935 sem ter visto o declínio dessa mesma sociedade a partir das fake news, vai no cerne da questão analítica desta matéria. Há 29 anos, em março de 1994, muito tempo antes do citado termo fake news se tornar algo tão presente nas coberturas jornalísticas, bem como as evidências das suas práticas e horrores oriundos dos seus males repercutirem de maneira tão perceptível como modo manipulador através de redes sociais e aplicativos de mensagens instantâneas, o caso da Escola Base ilustrou a destrutiva capacidade que um jornalismo irresponsável tem de arrasar vidas inocentes na busca de pontos de Ibope da audiência e vendas de jornais e revistas.
O diretor Paulo Henrique Fontenelle estudava justamente Jornalismo à época, em 1994, e, em entrevista ao Scream & Yell, lembrou de ver toda a repercussão do caso. “Eu me lembro de acompanhar o caso na mídia. Foi algo muito rápido. Toda aquela história, tudo aconteceu em duas semanas. Aquelas pessoas tiveram suas vidas destruídas em duas semanas. Mas me lembro que depois veio a indignação do pessoal quando todo o caso foi esclarecido. Lembro que me perguntei: ‘Mas o que acontece agora com a vida deles? A vida dessas pessoas foi destruída.’ E eu fiquei com essa ideia na cabeça durante muito tempo”, pontua. A indignação se tornou uma pesquisa longa do diretor e montador que, agora, transparece em um resultado que impressiona o espectador.
Fontenelle, que já dirigiu celebrados documentários sobre Arnaldo Baptista (“Loki”) e “Cássia Eller”, está lançando, via Canal Brasil, “O Caso Escola Base”, série documental em quatro capítulos que revisita em detalhes todo o processo de condenação sem provas dos donos da escola localizada em São Paulo e de um motorista de van que levava os alunos para as aulas. A série traz entrevistas com os principais jornalistas que cobriram o caso à época, bem como com a ex-dona ainda viva da Escola Base, Paula Milhim; com seu ex-marido e motorista da van citada, Maurício Monteiro de Alvarenga; e com o filho do casal Icushiro e Maria Aparecida Shimada, Ricardo Shimada. Já falecidos, seus pais nunca se recuperaram de todo processo de linchamento público pelo qual passaram.
Acusados a partir de um depoimento infantil colhido de modo manipulado e tendencioso pela mãe de um dos alunos, um menino de quatro anos, e condenados como predadores sexuais pela mídia, polícia e pela sociedade sem julgamento e sem oitivas por conta de um laudo errôneo que atestava que um sangramento oriundo de prisão de ventre na criança em questão se tratava de traços de um abuso sexual, Paula, Maurício e o casal Shimada viram suas vidas serem esfaceladas em questão de dias.
Um dos pontos principais que ajudam a criar no espectador esse choque diante dos fatos é a estrutura escolhida por Fontenelle, que, além de dirigir, atuou como montador da série. No primeiro episódio, somos apresentados aos acontecimentos do mesmo modo como as pessoas à época foram apresentadas ao caso pela TV e pelos impressos. Com chamadas espalhafatosas, escaladas no Jornal Nacional, manchetes chocantes e ofensivas, as reputações e a honra das quatro vítimas citadas são colocadas sob o escrutínio midiático. E nós, quase três décadas depois, mergulhamos com asco naquela narrativa falaciosa. Mas, friso, a adjetivação, aqui, refere-se ao conteúdo daquelas imagens de arquivo, e não à acertada maneira como Fontenelle optou por desenvolver seu desenvolvimento dos fatos. Apresentando os jornalistas que presenciaram o caso à época falando sobre a relação que eles têm com suas profissões, além de ir desmascarando gradativamente a mentira plantada pela mídia na ocasião, o diretor nos faz permanecer tensos diante de tamanha abominação. Ao final do primeiro capítulo, as vítimas se apresentam e, no segundo episódio, conhecemos a via crucis atravessada por eles.
“Acho importante analisar o nosso papel como público. Quando você chega ao final do primeiro episódio, você percebe que existe um outro lado. Quando o pessoal começa a entrar e a se apresentar, você percebe que, no próximo episódio, você vai ver de um outro ângulo. Chegando nesse ponto, eu acho que muita gente pode se sentir como se sentiu naquela época, talvez enganado, talvez um pouco envergonhado por ter julgado pessoas que não tiveram defesa na ocasião. Então, a minha vontade sempre foi essa. De primeiro mostrar de um lado para levar espectador a ter as mesmas sensações da época”, explica Paulo.
Um dos responsáveis pela condenação midiática dos donos da Escola Base e do motorista também é ouvido pelo diretor. Trata-se do jornalista Valmir Salaro, que, à época, atuava como repórter da Rede Globo. É factível chamá-lo de responsável aqui por conta de como a escalada da notícia sem uma correta apuração ganhou após Salaro a apresentar em horário nobre no Jornal Nacional. A partir dali, não havia mais dúvidas para a população de que aquelas pessoas eram as culpadas. Salaro, tantos anos depois, faz mea culpa diante dos fatos, admitindo que errou em diversos momentos de sua apuração, quando entrevistou pais com a presença dos filhos nos seus colos e sendo orientados sobre o que dizer, bem como não tendo escutado os dois lados da história.
A força midiática que a apresentação pela Rede Globo de apenas um lado da narrativa trouxe, acabou pautando tudo. Desde outros veículos impressos, até a convicção sem provas da polícia, cujo delegado Edélcio Lemos, à frente do caso, demonstrava uma estranha vaidade e necessidade pessoal de aparecer sob os holofotes.
A série, ao final do quarto e último episódio, chama para a responsabilidade, também, o cidadão. “Falamos sobre fake news e começamos a listar alguns casos em que as fake news, através do WhatsApp, causaram até a morte de pessoas. São vários exemplos de que não é só culpar o jornalismo. Nós, também, temos responsabilidade com o que temos nas mãos. E eu acho que, nesse sentido, o jornalismo ainda é a melhor maneira de você se informar”, pontua o diretor aprofundando sua intenção tanto de crítica a um jornalismo irresponsável e nocivo, quanto de saudar aquele feito com precisão e caráter. “Eu acho que a série, à princípio, pode parecer que é uma crítica só ao jornalismo, mas ela, também, traz um exemplo do que é o bom jornalismo. Porque você vê que tiveram alguns jornalistas aí que fizeram o melhor possível, como foi o Florestan Fernandes Jr., que foi atrás do outro lado. O próprio Luiz Nassif, que fez um editorial no meio da TV Bandeirantes na época em que estava todo mundo contra os quatro acusados. Teve pessoas que conseguiram ir contra a maré e publicar o outro lado, também”, finaliza.
Sobre as nossas responsabilidades como cidadãos em tempos de julgamentos instantâneos oriundos das redes sociais e do WhatsApp, a fala do poeta Fernando Pessoa, aplicada com exatidão na série, fala por si só. Para o Scream & Yell, Paulo Fontenelle falou sobre o processo de pesquisa e construção da série.
Como se deu o processo de desenvolvimento da série? Em que momento surgiu a fagulha de se debruçar sobre o “Caso da Escola Base”?
Foi um processo bem longo de construção do que chega agora como uma série em quatro capítulos. Eu estava na faculdade de Jornalismo na época, em 1994. Me lembro de acompanhar o caso na mídia. Foi algo muito rápido. Toda aquela história, tudo aconteceu em duas semanas. Aquelas pessoas tiveram suas vidas destruídas em duas semanas. Mas, me lembro que depois veio a indignação do pessoal quando todo o caso foi esclarecido. Lembro que me perguntei: ‘Mas o que acontece agora com a vida deles? A vida dessas pessoas foi destruída.’ E eu fiquei com essa ideia na cabeça durante muito tempo. Em 2007, eu li o livro do Alex Ribeiro chamado “Caso Escola Base – Os Abusos da Imprensa”. Quando li, pensei que ali já tinha um roteiro pronto, mas continuei pesquisando. Em 2017, peguei um dinheiro meu mesmo e comecei a ir às televisões buscar imagens de arquivo. Eu mesmo comecei a pesquisa. E aí, vendo aquelas imagens todas, tive um panorama maior de como é que foi a cobertura na época. No mesmo ano, em 2017, me encontrei com a Ariadne (Mazzetti) e o Marcelo Siqueira, produtores da Mística, e a gente resolveu fazer uma parceria para levantar o longa. Inscrevemos no Fundo Setorial e ainda demorou bastante tempo para poder ser liberado o dinheiro. Nesse meio tempo, nós fomos encontrando as pessoas que participaram na época. Encontramos a Paula Milhim, que abriu a casa para a gente. Conversamos bastante com ela. Encontramos os jornalistas, o próprio Valmir Salaro foi uma das primeiras pessoas que fomos procurar. E pensei em montar a série de uma forma que o espectador tivesse a mesma noção do que foi a cobertura na época. Como se tivesse só a versão do jornalista. E que o segundo episódio fosse a mesma história pela visão de quem estava do outro lado. Acho que em duas horas de filme não caberiam tantas histórias. E aí, tendo acesso ao material de arquivo, veio aquele quebra-cabeça, de você saber o que colocar, e como colocar. Então, pensei em fazer no primeiro capítulo a visão do jornalista e colocar exatamente como foi a cobertura. Assim, vemos as mesmas manchetes, a matéria da Globo praticamente na íntegra, como é que foi a reportagem que deu início ao caso. E depois fui construindo essa história através dos arquivos. Fiz questão de fazer a checagem dos fatos nesse processo todo. Porque a gente entrevista as pessoas, muita gente prefere não falar sobre determinado assunto, ou então fala de outra maneira, ou então as pessoas têm falsas memórias e não tem boas lembranças. E eu tinha conseguido há muito tempo o inquérito policial do caso. Então, tudo o que as pessoas falavam lá, eu ia checar no inquérito policial para ver se estava certo. Fui construindo de acordo com o material que ia chegando e tendo essa preocupação de tentar mostrar mais fidedignamente como é que foi a cobertura na época. E uma coisa que foi bem interessante pra gente é que aquele personagem, Richards, no terceiro capítulo, aparece uma outra pessoa que foi acusada, também. E que não tinha nada a ver com aquele pessoal. E esse cara tinha gravado uma fita de VHS de tudo o que saiu sobre o caso na época. Então, tinha muita coisa de material das televisões que não tinha nem nos arquivos mais antigos das TVs. Havia sido apagado, ou não foi liberado. Então, ali, com aquela VHS, eu consegui ter uma noção maior de como é que foi a cobertura, de fato, na época, e até a postura de alguns âncoras de televisão, que foram bem estranhos.
A ideia sempre foi desenvolver o tema em uma série?
Na verdade, eu queria fazer um filme sobre essa história. Só que quando eu levei para o Canal Brasil, eles falaram que queriam fazer uma série. Na hora, eu até fiquei meio chateado, mas foi a melhor coisa que poderia acontecer. E aí tendo acesso ao material de arquivo, com a série, eu pude desenvolver a história toda. Acho que em duas horas de filme, não caberia tantas histórias.
Como foi o processo de localizar as fontes e as pessoas que estavam lá à época? Houve resistência?
Não, foi até meio surpreendente. Durante muito tempo, tentei encontrar essas pessoas e sempre tive uma certa barreira. O (repórter da Rede Globo) Valmir Salara foi a primeira pessoa com quem fui falar, lá em 2009. Depois o reencontrei em 2017 e lhe apresentei o projeto. Ele me disse: “Interessante. Conversando com você, me senti mais à vontade. Mas tenho um contrato com a Globo nesse momento. Então, não sei se posso falar agora. Tenho que me aposentar antes.” Fiquei sempre em contato com o Valmir. Ele encontrou com a gente umas três vezes para saber do projeto. Quando começamos a fazer, ele resolveu fazer o filme dele, também. Mas ele se demonstrou disposto a falar sobre o assunto até porque ele carrega essa culpa. E procuramos todos os jornalistas da época. E por incrível que pareça, a maioria topou falar de maneira bem franca, muito tranquila. Aceitaram de pronto o convite. Teve alguns que não quiseram falar, a gente respeitou, também. E do lado das vítimas foi bem complicado. A primeira que a gente encontrou foi a Paula. E depois o filho do Shimada, Ricardo, veio até nós através de um post que colocamos no Facebook. Ele encontrou a gente e disse que queria falar. O Maurício (Monteiro de Alvarenga) não dava entrevista desde a época. Ele tinha desaparecido completamente. Mas a gente conseguiu falar com ele. Depois de muita insistência, ele resolver nos dar um depoimento. E tem outras pessoas. No terceiro episódio, outras pessoas aparecem e são bem importantes. Uma psicóloga que cuidou do caso, um juiz. Muitas pessoas demonstraram resistência. Para minha surpresa, os jornalistas toparam falar. A maioria deles topou. E eu acho que isso que é bacana. Porque eles conseguem ver essa história por várias pessoas diferentes. Então, tem a visão dos jornalistas, o que eles passaram na época, porque eles deram a notícia, porque alguns resolveram não dar. Como cada um pensava. Qual era a pressão dentro do órgão de imprensa que eles trabalhavam para poder publicar um furo. Então, tem todo um lado do trabalho do jornalismo, o lado das vítimas, depois tem o lado da justiça, do porquê o juiz decretou a prisão daquele pessoal. E depois a psicóloga desvendando o caso. Então, é um caso contado por vários pontos de vistas diferentes. Acho que isso torna a história mais completa. A série tem uma visão plural do caso.
Além da direção, você também ficou responsável pela montagem da série. A opção de trazer os fatos do mesmo modo como a mídia os apresentou há 29 anos sempre foi a sua escolha final na estrutura? Ela funciona muito bem.
Sempre foi. Acho importante analisar o nosso papel como público. Quando você chega ao final do primeiro episódio, você percebe que existe um outro lado. Quando o pessoal começa a entrar e a se apresentar, você percebe que no próximo episódio você vai ver de um outro ângulo. Chegando nesse ponto, eu acho que muita gente pode se sentir como se sentiu naquela época. Talvez enganado, talvez um pouco envergonhado por ter julgado pessoas que não tiveram defesa na ocasião. Então, a minha vontade sempre foi essa. De primeiro mostrar um lado para levar espectador a ter as mesmas sensações da época. O que acho bacana dessa série é que você tem a história contada por quem participou. Tanto os jornalistas quanto, principalmente, as vítimas. Porque foram pessoas que quase não falaram. Ou se falaram, era em matérias sensacionalistas do tipo: “Como está vivendo Paula, vítima do caso da Escola Base?” que saiu no Gugu e em alguns programas assim, para mostrar como é que eles estão sofrendo e depois são esquecidos. Então, ali, as pessoas todas foram tratadas com muita dignidade. Tanto os jornalistas, quanto as vítimas, quanto o pessoal da justiça. E eu acho que a gente não só consegue exemplificar através dos depoimentos e das manchetes dos jornais e das matérias que eram escritas na época, como, também, com os documentos da Justiça. Tem bastante coisa lá do inquérito que são documentos inéditos. Fora o acervo pessoal de todo mundo, como as fotos que trazem uma humanização para cada um deles. Não só humanizar as vítimas, mas, também, dos jornalistas, que, no começo, falam sobre porquê decidiram fazer Jornalismo e qual a importância disso. Mostra o lado nobre do Jornalismo, também.
Um dos momentos mais dolorosos foi quando Paula fala sobre o momento em que ela foi agredida fisicamente na prisão. As entrevistas contigo tiveram algo de expurgo para todos?
Acho que sim. Acho que eles se sentiram mais leves. Essa entrevista da Paula, no dia que a gente a entrevistou… Eu já sabia dessa história. Mas a vendo contar, eu tive que esconder as lágrimas atrás das câmeras. A equipe inteira começou a ficar muito emocionada. Mas quando acabou a entrevista, ela estava bem aliviada por ter podido falar. A história é uma coisa bem chocante.
Pelas imagens e entrevistas concedidas à época, é perceptível a atuação do delegado Edélcio Lemos no caso como uma necessidade constante de estar sob os holofotes. Quase um vilão vaidoso. Ele se recusou a participar da série?
Na verdade, não tentei transformar o cara em um vilão. Até porque, dentro dos depoimentos, todos têm uma opinião sobre o cara que nem sempre é muito boa. Falavam que ele queria aparecer e eu tirei todos esses depoimentos que o criticavam e coloquei apenas o que aconteceu na mídia, mesmo. Eu o deixei falar por ele mesmo. Ele chamava a mídia para dar depoimento e foi aquilo que ele quis que mostrasse. Então, foi como você falou, eu não precisei construir um vilão. Até conseguimos falar com ele e marcamos de encontrá-lo. No dia marcado, ele ligou desistindo, falando que não queira mais falar sobre isso, que havia sido há muito tempo. Se um dia ele quiser falar, estou à disposição.
Acaba que a série, apesar de abordar um fato ocorrido há quase 30 anos, reflete uma fase bem atual quanto às fake news.
Verdade. Inclusive, ao final do quarto e último episódio, a série chama para a responsabilidade, também, o cidadão. Falamos sobre fake news e começamos a listar alguns casos em que as fake news, através do WhatsApp, causaram até a morte de pessoas. São vários exemplos de que não é só culpar o jornalismo. Nós, também, temos responsabilidade com o que temos nas mãos. E eu acho que, nesse sentido, o jornalismo ainda é a melhor maneira de você se informar. Acho que a série, à princípio, pode parecer uma crítica só ao Jornalismo, mas ela, também, traz um exemplo do que é o bom Jornalismo. Porque você vê que tiveram alguns jornalistas que fizeram o melhor possível, como foi o Florestan Fernandes Jr., que foi atrás do outro lado. O próprio Luiz Nassif, que fez um editorial no meio da TV Bandeirantes na época em que estava todo mundo contra os quatro acusados. Houve pessoas que conseguiram ir contra a maré e publicar o outro lado. Mas espero que esse documentário sirva um pouco de reflexão para esses jornalistas. Obviamente, todo mundo já estudou esse caso. Mas quando se tem visualmente uma obra dessa, você consegue ter uma carga emocional maior que o faz encontrar uma reflexão.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.