texto de Marco Antonio Barbosa
Saiba como foi o Dia 2
Vivemos, nos últimos meses, a mais quente temporada de festivais desde a pandemia. A segunda edição do MITA – Music Is the Answer é a joia na coroa, concluindo um mês de maio que ainda teve MIMO, C6 Fest, Virada Cultural SP e Back 2 Black. Iniciado no Rio de Janeiro (Jockey Club, 27 e 28 de maio) e concluído em São Paulo no fim de semana subsequente, o evento teve uma primeira noite carioca de bom público – em contraste com a mirrada audiência do C6, realizado na semana anterior. Mas esse é um assunto para o balanço de amanhã…
Horário ingrato, o trânsito sempre complicado e um certo embaço na entrada forçaram a reportagem do Scream & Yell a perder o comecinho do show de Jehnny Beth – pontualmente iniciado às 13h40. Os ingressos para o sábado se esgotaram e a primeira impressão, ao se entrar no Jockey, é surpreendente; ué, já tá cheio?! Na verdade, não: há uma aglomeração na pista “normal”, logo antes da barreira que demarca a pista premium. Perto do palco principal, o público ainda é pequeno, mas empolgado.
Abrir festival ainda com o sol na cara é um trabalho sujo, mas alguém tem que fazê-lo. Com seu som essencialmente noturno, a francesa Jehnny não era, a princípio, o nome mais adequado. Sozinha no palcão, sem luzes nem efeitos, acompanhada apenas do baixista Johnny Hostile (e da tecladista/vocalista Malvina em alguns números), a cantora só pôde se escorar na música. E em sua inegável presença de palco. Sem descer ao nível do decalque, as referências são explícitas: pós-punk, industrial, o lado mais cortante do synthpop. Teve até um fiel cover de “Closer”, do Nine Inch Nails, para dirimir qualquer dúvida. Funcionou, apesar do contexto inadequado.
O clima era, óbvio, bem mais adequado aos Gilsons, que levaram seu telecoteco lesado ao palco Deezer. A MPB de baixíssimos teores oferecida pela prole de Gilberto é (no bom e no mau sentidos) a cara de um certo tipo de público carioca. Uma trilha sonora agradável e inofensiva, background perfeito para conversas paralelas e postagens no Instagram. Como os próprios Gilsons pontificam, um show devagarinho, que se deixa assistir sem despertar várias queixas.
Para os ligados em experiências menos óbvias, o próximo show era a grande promessa do dia. O combo BADBADNOTGOOD, destaque da safra contemporânea de jovens jazzistas, prometeu pôr no palco Arthur Verocai – o compositor, arranjador e maestro brasileiro redimido pelo hip hop americano no começo dos anos 2000. O show dos canadenses começa complicado, entre o fusion viajandão e o jazz-funk agressivo.
A entrada de Verocai (que regeu um naipe de cordas composto apenas por mulheres) amaciou a mistureba. “Ele mudou as nossas vidas”, disse o baterista Alexander Sowinski sobre o maestro brasileiro. Após dois números (“Pelas Sombras” e “Na Boca do Sol”) com a participação da cantora Paula Santoro, o BADBADNOTGOOD finalmente se solta e encerra o show de forma dançante, lascando uma suingada “Talk Meaning”.
Foi uma boa transição para a apresentação de Jorge Ben Jor, que abriu o show com a frase: “Estamos aqui na terra dos cavalos”, em referência galhofeira às corridas do Jockey Club. O gigante octogenário se divertiu MUITO no palco, ditando comandos à banda (incluindo um discreto Kassin no baixo), mandando solinhos na guitarra e inserindo versos improvisados aqui e ali. O repertório é aquele trem de hits de sempre, apenas em uma marcha mais cool. “Santa Clara Clareou / Zazueira / A Minha Menina” vêm em ritmo de quase reggae; já “Zumbi / Bebete Vambora / Take It Easy My Brother Charles” ganham levada semi-blueseira. Mas a conclusão é frustrante. O som, baixo e mal equalizado durante todo o show, foi cortado sem cerimônia antes do último número, “Umbabaraúma”; uma “falha de comunicação” entre Jorge e a produção do MITA levou o cantor a estourar o tempo previsto. Àquela altura, o produtor australiano Flume já apertava seus botõezinhos no palco principal.
“Show” de DJ em festival de pop-rock costuma ser furada. Flume contrariou o prognóstico, mostrando ir além da EDM genérica. Seu som é mais inteligente e variado, partindo do tal “future bass” para criar temas envolventes, alternadamente dançantes e climáticos. Harley Streeten (nome do rapaz) não é Richard D. James, mas maneja glitches e breakbeats de forma criativa. As intervenções de duas cantoras humanizam o set, que incluiu sucessos como “Smoke & Retribution” (esta com a voz de Vince Staples) e “Go”.
No afã de conseguir uma boa posição para o show de encerramento, pouca gente deixou o palco principal para assistir ao Planet Hemp, no palco Deezer. Pior para quem não foi. D2, BNegão & cia capricharam tanto nos beats quanto na pancadaria punk, centrando fogo nas músicas do LP “Jardineiros”, disco do ano passado aqui no Scream & Yell. A plateia – basicamente composta por grupos de meninas e diversas facções queer – até se esforçou para abrir uma megarroda de pogo. A participação do duo Tropkillas, bastante aguardada, não bombou tanto quanto deveria. Mais uma vez, faltou volume e equalização para as bases dos caras em “Boa Noite” e “Ainda”, sufocadas pela banda ao vivo. Tudo bem: ainda teve “Hip Hop Rio”, que a banda não tocava desde os anos 1990, e “Samba Makossa”, com direito a imagens de Chico Science no telão.
E enfim chegou a hora de Lana Del Rey, em seu retorno aos palcos depois de quase quatro anos. Grande responsável pela lotação esgotada do sábado, a cantora foi a única a atrasar de forma relevante o início de seu show. Na espera, restou a todos observar os detalhes da cenografia: cortinas, biombos, escadarias, um balanço adornado com rosas. Quando a moça finalmente surge, ostentando uma peruca loura bufante e um figurino à la Jackie Kennedy, a tensão na plateia já atingia níveis insustentáveis…
No cenário das pós-divas pop (um panorama que ela mesma ajudou a consolidar), o show de Lana ainda é um espetáculo deveras singular. Performance, marcações de palco, coreografia e vestuário compõem uma espécie de psicodrama no qual a cantora protagoniza uma desconstrução de estereótipos femininos. Assistir a apresentação pelos telões permite perceber os trejeitos faciais que Lana assume, cuidadosamente, para amplificar o drama de suas interpretações. Ela dribla, de forma irônica, os clichês hiperssexualizados das divas “convencionais”; mesmo quando requebra e desce até o chão, como em “Cherry”, o movimento é teatralizado, e não sensual.
Musicalmente, é bonito, ainda que frágil. O repertório é quase todo lento e de arranjos delicados, algo que torna as canções mais recentes um tanto quanto parecidas entre si. Por isso, os sucessos anteriores, com refrãos e sonoridades mais marcantes, sobressaem no set. É o caso de “Pretty When You Cry”, “Ride” e “Born to Die”. A monumental “Venice Beach”, quase ao fim do show, completa o ritual de hipnose coletiva. A plateia se desmancha em lágrimas e juras de amor. E corre para enfrentar o pesado tráfego da Rua Jardim Botânico, aos prantos na volta para casa. O festival segue neste domingo.
Saiba como foi o Dia 2
– Marco Antonio Barbosa é jornalista (medium.com/telhado-de-vidro) e músico (http://borealis.art.br). Fotos de Ariel Martini, Bia Zvedo, Gabriel Siqueira e Pedro Pereira / MITA Festival