texto, vídeos e fotos por Bruno Capelas
Um hippie inglês que estudava em Oxford e tocava flauta se muda para o Brasil em 1972, durante a ditadura militar, a convite da maior banda de rock do País. Passa dez anos se virando, dando aulas de inglês a celebridades e unindo sua flauta a grupos de rock (mais ou menos) progressivo. Um dia, depois de muito tentar seguir carreira na música, vê uma fita sua cair na mão de uma gravadora e acaba se tornando a maior estrela das paradas de sucesso nacionais – capaz de ofuscar até Sua Majestade, o Rei Roberto Carlos – com um pop sintetizado, sofisticado, mas nem por isso menos popular. Toca com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Deus e o mundo – e até “dubla” Peter Gabriel sem “qualquer erro”. Depois de grandes hits, alguns deles inesquecíveis, cai no ostracismo. Larga a música, transforma-a em atividade paralela, faz projetos de tributo esporádicos. Até que, quarenta anos depois de seu primeiro disco, cheio de hits, ele volta aos palcos em um show redentor e mostra que tem muita lenha pra queimar.
Contada desse jeito, a história do inglês Richard David Court parece até um filme. Mas a verdade é que, às vezes, nem o melhor roteirista seria capaz de inventar um script tão bom quanto a realidade – ainda que o parágrafo acima possa conter alguns exageros, é fato. Na noite do último dia 25 de maio, quem esteve no Cine Joia, em São Paulo, pode testemunhar não apenas o legado, mas a presença viva de uma lenda da música pop brasileira: Ritchie. Comemorando 40 anos do clássico “Voo de Coração” – um disco que merece o rótulo de pop perfeito –, ele fez de tudo: cantou, tocou flauta, contou histórias, deu espaço para sua banda e, mais que tudo, fez velhos corações baterem como se tivessem vinte anos, mostrando o que vem por aí em uma turnê que promete rodar o Brasil ao longo do segundo semestre.
O começo da noite não foi fácil, com o público – em sua vasta maioria, acima dos 45 anos – irritadiço pela demora no início do show. Foi mais um erro de comunicação que um atraso: ingressos vendidos indicavam horário para as 20h30, enquanto produção e redes sociais do artista passaram semanas dizendo que seria para “começar e terminar cedo”, a ponto da plateia poder pegar o metrô para voltar para casa. A apresentação, porém, foi só começar lá pelas 21h40, após o DJ set do produtor do espetáculo, o jornalista André Barcinski, que enfileirou hits óbvios dos 80 (“Enjoy the Silence”) com piscadelas mais alternativas (“Dance Me to the End of Love”, de Leonard Cohen, ou “Red Right Hand”, de Nick Cave and the Bad Seeds). Pouco importava: ao fim de cada música, assobios, vaias e até gritos de “começa! começa!” encobriam as primeiras notas da canção seguinte.
Ao surgir no palco usando óculos escuros e capuz, Ritchie compensou os presentes ao iniciar seu espetáculo com as duas canções que abrem “Voo de Coração”: o synthpop “No Olhar” e a baladaça “A Vida Tem Dessas Coisas”, ambas acompanhadas com exatidão pelo público. Enquanto a banda respeitava os arranjos originais com direito a papel carbono e tudo, a presença de palco do inglês era mais que suficiente para espantar eventuais bolinhas de naftalina para longe. Do alto de seus 71 anos, Ritchie é um frontman que merece muito respeito: gentil como um lorde, ele sabe encantar o público (que incluía a grande Lucinha Turnbull) com diferentes armas.
Afinal de contas, não é todo cantor veterano que, além de estar com a voz em dia e saber se colocar no palco, é capaz de rir de si mesmo e de contar grandes histórias – como a de quando foi chamado por Caetano Veloso, no meio de uma madrugada, para gravar uma participação especial num disco (“Velô”, de 1984) ou de quando teve de substituir, a pedido de um produtor “não nomeado”, ninguém menos que Peter Gabriel para a trilha da minissérie “O Sorriso do Lagarto”. As duas anedotas, que poderiam soar gratuitas, serviram de introdução para dois momentos bonitos e exóticos do show – “Shy Moon”, que ganhou tons progressivos com a flauta tocada pelo cantor, e a climática “Mercy Street”, respectivamente. Além das duas, Ritchie também encantou ao cantar, já no bis, uma releitura de “You’ve Lost That Lovin’ Feelin’”, dedicada ao jornalista Rodrigo Rodrigues, morto em 2020 por decorrência da covid-19.
Ao longo da noite, o inglês também percorreu hits (“Transas”, “Só Pra O Vento”) e lados-B (“Lágrimas Demais”, de seu último disco autoral, “Auto-Fidelidade”, elogiado aqui no site em 2002). Isso para não falar em “Elefante Branco” e “Agora ou Jamais”, duas canções dos Tigres de Bengala, grupo que ele formou nos anos 1990 ao lado de Vinícius Cantuária, Claudio Zoli, Billy Forghieri (Blitz) mais Dadi e Mú Carvalho (A Cor do Som) – aqui, a anedota da vez foi a de que Kiko Zambianchi, instado a participar do projeto, disse que não queria tocar “numa banda de velhos”. E olha que na época os integrantes “tinham lá seus 40 anos, não 71”, diz o cantor, aproveitando para exibir sua forma física, ganhar aplausos e se mostrar atualizado nas gírias: “Isso se chama pedir biscoito”, brincou.
A maior parte do setlist, porém, foi mesmo dedicada a “Voo de Coração”, disco de 1983 que vendeu mais de 1,2 milhão de cópias catapultou o inglês para a fama em todos os cantos do Brasil – dos quartos de empregada nas grandes cidades a comunidades ribeirinhas no meio do Amazonas, como contou Bernardo Vilhena, seu parceiro de todas as horas, em uma entrevista deliciosa para este site há uma década.
Mais do que grandes canções, “Voo de Coração” tinha uma banda de cair o queixo: Liminha no baixo, Lulu Santos e Steve Hackett (sim, o do Genesis!) fazendo participações especiais nas guitarras, Lobão na bateria e Zé Luís no marcante saxofone, entre outros. Já a banda que acompanhou Ritchie no Cine Joia não tinha nomes estrelados, mas passou longe de fazer feio, muito pelo contrário – com destaque para as ótimas interações entre o competente Renato Galozzi (guitarrista) e o espivetado Hugo Hori (sax, flautas e backing vocals).
Os dois fizeram parte de momentos chave do espetáculo com duelos de solos, que não só mostraram improviso, mas também deixaram clara a sofisticação pop das canções de “Voo de Coração”. Três provas disso ficaram evidentes na dançante “Casanova”, na roqueira “O Preço do Prazer” ou na saborosa faixa-título, com sua letra deliciosamente atual & anacrônica ao mesmo tempo, citando hologramas e velhos computadores.
Do clássico LP, “aquele que todo mundo tem”, como brincou o cantor, só ficaram faltando as três faixas finais – as originais “Parabéns Pra Você” e “Tudo Que Eu Quero (Tranquilo)”, além de “A Carta”, versão em português de “The Letter”, do Box Tops, hit sessentista cantado por ninguém mais, ninguém menos que Alex Chilton, aquele, que anos depois formaria o Big Star. (Nota de rodapé, é justo, mas vale dizer que seria mais que bem-vinda também a inclusão de “Olhos de Video Tape”, versão de Ritchie para a baladaça de Charly Garcia “Ojos de Videotape”, registrada no LP “Sexto Sentido”, ausente até mesmo do Spotify. Fica a dica, caro leitor).
E caso você esteja se perguntando, “cadê ela, aquela?”, a resposta está aqui: entre abajures cor de carne e lençóis azuis, “Menina Veneno” surgiu como a última canção do set principal do show, colocando o Cine Joia em combustão. Se por um lado a nostalgia está lá, sempre presente, e faz parte do processo, por outro é bom demais ver uma grande canção pop em seu estado original, executada com dignidade e maestria. Ao final dela, era mais que suficiente para mandar todo mundo para casa com um sorriso no rosto, mas ainda teve o bis – com as já citadas “Elefante Branco” e “You’ve Lost That Lovin’ Feelin’”, além de “Um Homem em Volta do Mundo”, single gravado para a novela “Cara e Coroa”, de 1995. Teve até gente que tirou o lencinho do bolso.
Ao final de pouco menos de duas horas de show, Ritchie fez um tratado sem clichês contra o etarismo, mostrando que música boa não tem idade – como se isso precisasse de demonstração em pleno 2023, a despeito de que uns e outros prefiram gastar seu tempo gritando contra as nuvens, dizendo que “o jovem não é sério”. Picuinhas à parte, fato é que, mais do que um longo passado para trás, Ritchie está pronto para viver o presente e quer muito fazer você se divertir. Felizmente, ele está pronto para sair em turnê comemorativa pelo Brasil, com datas já anunciadas nas capitais das regiões Sul e Sudeste, além de paradas estratégicas em cidades como Juiz de Fora e Niterói. Se para ele não passou tanto tempo entre o não e o fim, meu amor, agora nos só resta um momento de… festa – portanto, garanta seu ingresso e “boa noite, até já”!
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Setlist
01) “No Olhar” (Voo de Coração, 1983)
02) “A Vida Tem Dessas Coisas” (Voo de Coração, 1983)
03) “Lágrimas Demais” (Auto-Fidelidade, 2002)
04) “A Mulher Invisível” (E a Vida Continua, 1984)
05) “Loucura e Mágica” (Loucura e Mágica, 1987)
06) “Shy Moon” (Caetano Veloso, Velô, 1984)
07) “Voo de Coração” (Voo de Coração, 1983)
08) “Telenoticias” (Circular, 1985)
09) “O Preço do Prazer” (Voo de Coração, 1983)
10) “Agora ou Jamais” (Tigres de Bengala, 1993)
11) “Mercy Street” (Peter Gabriel, So, 1986)
12) “Só Pra o Vento” (E a Vida Continua, 1984)
13) “Casanova” (Voo de Coração, 1983)
14) “Pelo Interfone” (Voo de Coração, 1983)
15) “Transas” (Loucura e Mágica, 1987)
16) “Menina Veneno” (Voo de Coração, 1983)
Bis:
17) “Elefante Branco” (Tigres de Bengala, 1993)
18) “You’ve Lost that Lovin’ Feelin’” (Righteous Brothers, 1964)
19) “Um Homem em Volta do Mundo” (Trilha Sonora da novela “Cara & Coroa”, 1995)
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.