texto de Marco Antonio Barbosa
(Infelizmente) eu tenho idade pra lembrar de um negócio chamado “The scene that celebrates itself”, ou “a cena que celebra a si mesma”. A expressão foi criada pela imprensa musical britânica lá por 1989, aplicada à galera do shoegaze (e adjacências): uma panelinha de bandas que frequentavam em bloco os shows umas das outras e elogiavam umas às outras em entrevistas.
Ninguém mais lembra disso. Eu mesmo só lembrei porque o combalido cenário indie do Rio de Janeiro viveu um momento raro de autocelebração no começo do mês de maio. O motivo era mais do que nobre: a volta do The Cigarettes aos palcos, numa nanoturnê (dois shows, um acústico e outro elétrico) que marcou o lançamento em vinil do primeiro álbum da banda, “Bingo”, original de 1997.
(Se você não tem ideia da importância dos Cigarettes e de “Bingo”, pare de ler aqui, confira o texto “O relançamento de ‘Bingo’ em vinil: o tempo correu rápido“, neste mesmo site, e depois volte aqui.)
O reencontro com Marcelo Colares, líder (e único membro fixo) dos Cigarettes proporcionou um memorável curto-circuito temporal. Reuniu na plateia e no palco um punhado de pessoas que não se viam há anos, em torno de canções que não eram tocadas há anos. No processo, também resgatou tudo o que havia de sublime (e de eventualmente desajeitado) naquela cena dos anos 1990.
A maior porção da falta de jeito rolou no primeiro show, um set acústico no fim da tarde de um sábado, no Sebo Baratos, em Botafogo. Sobrou emoção na recepção dada pelo livreiro Maurício Gouveia aos Cigarettes, em formato trio (Colares e Gordinho nos violões e Ricardo Spencer no baixo). Já o público, que não chegou a superlotar a livraria, estava mais disperso. O formato do show e as características da casa demandavam silêncio e concentração da plateia, cujo vozerio chegou a suplantar o som da banda mais de uma vez.
Outra peculiaridade do indie 90’s evidente: um tantinho de precariedade, tanto técnica quanto de performance. Uma mesa de som dando tilt e um Colares mais hesitante do que costume (tanto nos vocais quanto nos solinhos de violão) impediram a coisa de engrenar pra valer. Até que, afinal, o som funcionou 100%, permitindo um belo encerramento com os clássicos “Junk”, “The Beauty of the Day” e “We’re Gonna Make a Sound”. Antes, aos trancos & barrancos, teve cover de Jesus & Mary Chain (“April Skies”) e a seminal “Felicia”, que batizava a primeira demo dos Cigarettes mas que não chegou a ganhar versão oficial.
“O bis é lá no Manouche”, disse Colares a quem pediu “Mais um!” no fim do show no Sebo Baratos. Era a chamada para o espetáculo “completo”, dali a quatro dias, na casa noturna no bairro do Jardim Botânico. Lá sim, a “cena” saiu toda da toca, com jornalistas, músicos e demais agitadores pontificando. Só faltou mesmo a eminência parda Rodrigo Lariú – exilado em Londres, o fundador da mmrecords e articulador do relançamento de “Bingo” deu W.O.
Sobre o palco, além de Gordinho e Spencer, Colares ainda botou Gustavo Seabra, Ricardo Ribeiro (ambos da Pelvs) e Sidney Honi (Vibrossensores) para engrossar o caldo. (Ainda teve Daniela Matera, reproduzindo o vocal feminino que ela gravou na versão de estúdio de “The Beauty of the Day”.) E, no setlist, cumpriu a promessa de tocar “Bingo” na íntegra, incluindo minha favorita, “Under Lights”, a qual eu nunca tinha ouvido ao vivo.
O capital humano agregado ao show elétrico expandiu de forma surpreendente a estética cigaretteana. Em estúdio, a banda cumpre, de forma charmosamente naïf, a cartilha indie pop. No Manouche, as três guitarras derrubaram uma avalanche de noise sobre as melodias, contrastando com a timidez dos vocais de Colares. Em mais uma referência à cena que celebra a si mesma, os Cigarettes versão 2023 se equilibram à beira do shoegaze.
(A precariedade ainda se apresentou: Seabra arrebentou uma corda da guitarra logo na primeira música, o teclado insistia em soar alto demais, um zumbido de cabos mal conectados perpassou o show todo. “Tá tão bom assim não, mas obrigado assim mesmo”, agradeceu Colares, sempre modesto. No fim, deu tudo mais do que certo.)
E foi assim, virado na distorção, que o repertório de “Bingo” (e algumas surpresinhas) tomou conta do Manouche, convenientemente banhado em luzes vermelhas. O interplay entre as guitarras, mesmo com a luta contra o teclado, valorizou músicas como “Blues” e “Friendship”; “Addiction” (do 3° álbum) ganhou belas intervenções de Seabra. E sim, teve “Under Lights”, em versão mais lenta, com Colares achando uma dose extra de confiança nos solos e no falsete vocal.
Coroando a autocelebração da cena, um bis com “April Skies” e “My Aquarium” (do Drop Nineteens) abriu os caminhos para um cover de “Titanium White” – cover do Stellar, banda contemporânea do indie RJ, que, como os Cigarettes, deveria ter mudado a cara do rock brasileiro daquela época… e além.
Colares dedicou a versão a Fábio L. e Bia, vocalistas do Stellar que já se foram. No palco, lá no fundão, Sol – outro da formação original do Stellar- soltava os bichos empunhando uma Telecaster.
Às vezes, a história se repete pra valer, e não como farsa.
– Marco Antonio Barbosa é jornalista (medium.com/telhado-de-vidro) e músico (http://borealis.art.br).