texto por Luciano Ferreira
Na primeira metade da década de 1980 é possível apontar três bandas responsáveis diretas por romperem barreiras estruturais no formato da música pop: Cocteau Twins, Jesus and Mary Chain e Sonic Youth. Cada uma delas experimental ao seu modo, esse trio foi responsável por definir (1) um timbre característico de guitarra ao combinar distorção e modulações – as chamadas guitarras etéreas –, (2) a possibilidade de uma combinação de melodias doces com barulhos ensurdecedores e vocais soterrados e (3) a construção de arranjos de estrutura abstrata, combinados com o uso de camadas de barulho a partir de distorção, feedback e afinações incomuns.
Essa “fissura” indelével seria expandida por uma nova geração de bandas já na segunda metade dos mesmos anos 1980, atravessaria as décadas posteriores, e seguiria influenciando bandas e artistas ao redor do mundo, permanecendo até os dias atuais.
O quinteto Slowdive foi uma dessas bandas tocadas por alguma (ou todas) dessas possibilidades sonoras propostas, e, mais que isso, foi além adicionando outras. Entusiastas da música feita na década de 1980, esses ingleses de Berkshire pegaram o lado mais denso e soturno do pós-punk, representado por nomes como The Cure e Siouxsie and The Banshees; da psicodelia sessentista, de onde pescaram “Golden Hair”, de Syd Barret, por exemplo, e a converteram em uma canção etérea e hipnótica; e ainda os anos 1960 através da clássica “Some Velvet Morning”, de Nancy Sinatra e Lee Hazlewood.
Ainda primários em sua primeira encarnação, o Pumpkin Fairies, seria já sob a alcunha de Slowdive que se tornariam um dos ícones do movimento chamado shoegaze. O termo, cunhado de forma depreciativa, referia-se à forma como as bandas se apresentavam: cabisbaixos. Como rótulo, não fala nada sobre a sonoridade das bandas, mas o tempo trataria de dar algum sentido a isso.
Shoegaze serve muito mais para marcar uma época e um espaço geográfico (o Reino Únido), englobando um grupo de bandas que costumavam se apresentar juntas, irem aos shows umas das outras, e estarem no mesmo selo, a Creation Records. Se há proximidades sonoras, elas surgem a partir do compartilhamento das referências já citadas, cada um acrescentando outras possibilidades: no Ride (de Oxford), as harmonias vocais de bandas como os Byrds; no My Bloody Valentine (Dublin), a continuidade da exploração do barulho com um novo “olhar” para a alavanca de trêmolo e, posteriormente, a extrapolação da experimentações em estúdio com o processamento da sonoridade das guitarras. Se há uma certeza é de que a fórmula de todas as bandas ditas shoegaze combinam vários efeitos de pedais, de modulações (reverb, chorus, delay) a distorções.
“Souvlaki” (1993), o segundo álbum do Slowdive, saiu a fórceps: o universo conspirava contra o seu lançamento. Apesar da boa colocação de “Just for a Day” (1991), o disco de estreia, na parada independente inglesa, a crítica os elegeu como um dos alvos para comentários mordazes sobre sua música. O próprio Alan McGee emitiu opinião totalmente desanimadora sobre o vasto material que a banda tinha preparado para o segundo disco. Todos muito novos (na casa dos 21/22 anos), eles sentiram o impacto pesado das críticas negativas. E voltaram à estaca zero.
Buscando um norte, o guitarrista, vocalista e principal compositor da banda, Neil Hastead, convidou Brian Eno para produzir o disco. Apesar da recusa, Eno (que estava ocupado finalizando dois álbuns que foram lançados em 1992: “Nerve Net” e “The Shutov Assembly”) aceitou fazer uma parceria com o grupo gravando (e orientando) a banda durante alguns dias. Dessa experiência surgiram duas faixas: a atmosférica “Sing” (com clima de ambient music), co-escrita pçor Eno, e a bucólica “Here She Comes”, em que ele toca teclados. Paira a dúvida do quanto esse contato seria responsável pelas mudanças na sonoridade do grupo em “Pygmalion” (1995).
Deixando de lado a névoa espessa de seus primeiros singles e também de seu primeiro álbum, em “Souvlaki”, o Slowdive surge com uma sonoridade mais acessível, não exatamente pop (ou comercial, como desejava McGee), mas não tão densa quanto seu material anterior, e a prova disso é a perfeição da magnética “Alison”, faixa que abre o disco e que foi lançada como singkle oito meses depois do álbum sair, e que demonstra um lado mais melodioso do quinteto, mas não menos sombrio, já que a letra fala de um momento chapado de um relacionamento bagunçado: “Ouça com atenção e não fique chapada / Eu estarei aqui pela manhã / Porque eu só estou flutuando / Seu cigarro ainda queima… Alison, eu estou perdido / Alison, eu disse que estamos afundando / Não há nada aqui mas tudo bem”. Na mesma toada, “When the Sun Hits” acerta em cheio ao trazer um refrão memorável e o que seria o primeiro solo de guitarra da banda – ao seu próprio modo.
“Souvlaki” é marcado por canções de suavidade e entorpecimento exibindo uma banda mais focada no resultado final de suas composições do que em arranjos complexos. Esse lado mais minimalista vai ao encontro dos trabalhos do próprio Brian Eno durante a década de 1970. As camadas de barulho surgem, mas sem a mesma ênfase de antes, ajudando a dar maior dramaticidade aos arranjos, como se as guitarras gemessem uma melodia triste, agonizante.
Trata-se de um álbum sobre separação com letras bastante diretas. O rompimento de Rachel Goswell (guitarra e vocais) e Neil Hastead teve impactos profundos no compositor, que precisou deixar as gravações do disco e se isolar por um tempo no País de Gales para voltar a escrever canções (na ausência de Halstead, apenas o baixista Nick Chaplin e o guitarrista Christian Savill seguiram gravando algum material). O sentimento amargo de desolação surge em várias das letras do álbum, abordando não só o relacionamento, mas também sonhos e o uso de drogas: “Você sabe que eu sou sua adaga / Você sabe que eu sou sua ferida / Achei ter ouvido você sussurrar / Acontece o tempo todo”, canta Neil na acústica e melancólica “Dagger”, faixa que antecipa o que o guitarrista faria anos depois em seu Mojave 3. A dor da perda é explicitada também em “$ Days”: “Quarenta dias e eu sinto sua falta / Estou tão chapado que perdi a cabeça”.
Com uma maior diversidade de ambientações ao longo de suas 10 faixas, o álbum confirma a banda como umas das representantes máximas de uma vertente musical que tem no uso de texturas e camadas de guitarras sob modulações e efeitos os elementos sobre o qual sua música é construída. É um retorno às propostas do Cocteau Twins, mas sob novas perspectivas, seja de timbres ou da maneira como os vocais se encaixam nas canções. Hoje o álbum pode ser chamado de um clássico do gênero, seja ele shoegaze, dream-pop ou outro nome que se queira usar.
Se há álbuns que são lançados na época certa com a “música certa”, “Souvlaki” padeceu por ter o efeito oposto. Num cenário musical polarizado por duas vertentes – o grunge (já em descenso) e o britpop (em ascensão) –, o mundo não estava preparado naquele momento para os acordes lentos e melancólicos de canções como “Machine Gun”, “Souvlaki Space Station” (um reverberante turbilhão sonoro conduzido por um riff encharcado de delay e uma linha de baixo dub de Nick Chaplin), “When The Sun Hits” (onde os riffs atingem a estratosfera) e “Melon Yellow” (com linha de baixo profundíssima!); ou para o lado mais bucólico de “Sing”, “Here She Comes” e a arrasadora “Dagger”. Junte a esse período musicalmente polarizado a ideia de que, para muitos, os irlandeses do My Bloody Valentine já haviam resumido tudo que precisava ser dito em “Loveless”, lançado dois anos antes, e entende-se o motivo de “Souvlaki” ter sido ofuscado.
O “fracasso” do álbum na época (que alcançou a 3ª posição no chart indie, mas não conseguiu entrar no Top 50 geral da parada inglesa) e o desempenho ainda mais frustrante de “Pygmalion” (1995) fez com que a banda fosse dispensada pela Creation uma semana após o lançamento do terceiro álbum. Pouco depois, Halstead, Goswell e McCutcheon gravaram um álbum de canções com influência country e assinaram com a gravadora 4AD mudando o nome da banda para Mojave 3. O Slowdive só voltaria à cena em 2014, quase 20 anos após sua dissolução, e o lançamento do ótimo e bem recebido álbum homônimo, em 2018, fortalece os argumentos de que o disco entra na lista dos grandes álbuns incompreendidos quando do seu lançamento, perspectiva mais nítida 30 anos depois.
O tempo tratou de mostrar as qualidades do álbum. Sua influência em bandas que buscam referências na vertente mais sonhadora daquele período se aproxima mais da proposta do grupo (e também do Lush) do que de quaisquer outros de seus pares. “Souvlaki” entra fácil na lista de grandes álbuns da década de 90, a despeito da frieza com que foi recebido. Em 2005, o disco foi reeditado com um CD bônus que trazia mais nove faixas (incluindo a cover de “Some Velvet Morning”). “Souvlaki”, um clássico que você precisa ouvir.
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– Luciano Ferreira é editor e redator na empresa Urge :: A Arte nos conforta e colabora com o Scream & Yell.