texto por Marcelo Costa
Jazz é um território bastante pantanoso para jornalistas de… hãããã, cultura pop. É como se estivéssemos abrindo a porta de um templo e, respeitosos, nos ajoelhássemos olhando de canto de olho para o púlpito. É algo sagrado, ainda que humano e esplendorosamente belo, na maioria de seus grandes momentos – e eles são tantos que poderíamos caminhar até a lua sem repetir álbuns. Para um jornalista que palpita em cultura pop, como eu, falar sobre um disco de jazz é como se eu estivesse infringindo alguma regra, e a síndrome do impostor surgisse em neon no alto da tela do word, mas o lance aqui é bem mais leve… e permissivo. Ok, antes uma historinha:
Certa vez me convidaram para escrever os textos do folder com as atrações do Jazz na Fábrica (hoje, Sesc Jazz), sensacional festival que acontecia no Sesc Pompeia (e hoje se divide por várias unidades do Sesc em São Paulo), e, num primeiro momento, eu elegantemente recusei. Não recusei, mas disse que eu não tinha a bagagem necessária para aquele trabalho, e a resposta que tive foi a mais especial que eu poderia ter, e foi mais ou menos assim: “A gente não quer que você escreva como um especialista de jazz, mas sim como um especialista em música capaz de traduzir as coisas do jazz para o vocabulário do público do Sesc”. Bem, isso eu consigo. E foi uma delícia escrever aquele folder.
Da mesma forma, me acho capaz de indicar um disco de jazz no Desafio Scream & Yell – por puro amor à música – sem me comprometer muito e mesmo que o álbum em questão seja um clássico, não é daqueles discos que você ouve as pessoas falando todo dia quando falam em jazz – 30 de abril foi festejado o International Jazz Day e muitos daqueles discos que amamos foram lembrados, mas não vi ninguém nos meus círculos de rede sociais falando de “Somethin’ Else” (1958), único álbum do saxofonista Cannonball Adderley pelo selo Blue Note – e também um dos raros registros do big boss Miles Davis no selo, presente na sessão ao lado de Hank Jones (piano), Sam Jones (baixo) e Art Blakey (bateria).
Antes de seguirmos, pausa para o comercial: o “Desafio Scream & Yell” surgiu inspirado nos moldes do especialíssimo “Desafio Bookster“ (sobre livros) e tem a ideia de propor um convite para que você, leitor(a), quinzenalmente, “descubra” um disco “novo” (conceito largo) ouvindo com atenção da primeira até a última faixa. É dar play e deixar tentar ser arrebatado (a). Como programa piloto, duas semanas atrás falei de António Variações e “Anjo da Guarda”, seu primeiro disco, lançado há exatos 40 anos (1983). Agora, um disco mais.. antigo, mas maravilhosamente atemporal.
Nos dias 04 de fevereiro e 04 de março de 1958, Miles Davis reuniu seu quinteto para gravar “Milestones”. Cinco dias após a segunda sessão, em 09 de março, Miles estava em estúdio com Cannonball Adderley, Hank Jones, Sam Jones e Art Blakey para a sessão da qual resultaria “Somethin’ Else” – Adderley e Miles ainda gravariam juntos “Porgy & Bess” em julho e agosto do mesmo ano, e, em março e abril do ano seguinte, “A Kind of Blue”. A participação de Miles é marcante no álbum – uma das raras gravações que Davis fez como acompanhante pós 1955: ele compôs a faixa título, fez vários dos primeiros solos e, segundo a contracapa da edição em vinil – que na época funcionava como um release –, foi o responsável por escolher parte do material. Mas, por mais que Miles esteja presente intensamente aqui, esse é um disco de Cannonball Adderley como bandleader.
“Todas as faixas de ‘Somethin’ Else’ prosperam em um caminho distinto de comunicação e, como resultado, tem algo a ensinar sobre como uma ideia claramente expressa, junto com o que pode ser chamado de edição em tempo real, pode moldar uma improvisação”, aprofunda o texto sobre o disco na página oficial de Miles Davis. “A faixa-título é uma longa chamada e resposta entre Davis e Adderley, mas à medida que evolui, a seção rítmica participa da interação. Para ouvir um mestre conversador de jazz no auge, confira os acordes nítidos e perfeitamente posicionados que o pianista Hank Jones fornece para Adderley. E então ouça como o baixista Sam Jones e o baterista Art Blakey pegam algumas dessas respostas pianísticas simples como pedra e as transformam em combustível para mais agitação”.
São cinco faixas na versão em vinil (seis contando com a faixa bônus registrada nas mesmas sessões, “Bangoon aka Alison’s Uncle”), que comprei na Espanha durante os períodos de folga de um Primavera Sound (10 ou 15 anos atrás). Em outra viagem adquiri o CD, que com outra capa junta “Somethin’ Else” com “Sophisticated Swing”, que Cannonball gravou em fevereiro do ano anterior com Nat Adderley, Junior Mance, Sam Jones e Jimmy Cobb, e lançou no mesmo 1957: “O verdadeiro jazz sofisticado absorveu as lições de uma nova geração musical, que trouxe consigo grandes avanços na sutileza harmônica, melódica e rítmica. A palavra ‘swing’ também adquiriu um significado mais amplo. Julian “Cannonball” Adderley e seus colegas são porta-vozes eloquentes dessa nova sofisticação, desse novo swing. Eles são essencialmente produtos do bop, com todos os avanços inerradicáveis conotados por esse termo; mas seus laços com as raízes do jazz nunca foram rompidos. A instrumentação é a do clássico grupo bop do início dos anos 1940 – do memorável quinteto Gillespie-Parker”.
Ouça (pela primeira vez, mais uma vez, sempre) “Somethin’ Else” do começo ao fim! E comentem (aqui ou no iG, sinta-se em casa).
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.