texto por João Paulo Barreto
A modernização pelo cinema da trama ou dos personagens concebidos pelo irlandês Abraham “Bram” Stoker em “Drácula”, seu livro lançado em 1897, não é novidade. Retirar a soturna criatura secular das trevas de seu castelo na Transilvânia e colocá-la em tempos recentes e situações inusitadas são temas já abordados anteriormente. Para exemplificar, cita-se adaptações como a infantil e divertida “Deu a Louca nos Monstros” (1987), que tinha o conde da Transilvânia como líder de um grupo com diversos monstros clássicos da Universal Pictures, tais quais a criatura de Frankenstein, o lobisomem, a múmia e o anfíbio ser oriundo da Lagoa Negra.
Além dela, ainda de cunho infantil, é válido lembrar de “Hotel Transylvania” (2012), animação que coloca o vampiro administrando o hotel do título, local no qual vários monstros (incluindo os da Universal citados acima) podem se hospedar. Já em uma ambientação adulta e de ação, embora fazendo valer a máxima do “filme ruim é para ser visto e revisto”, reside “Drácula 2000”, longa que conta com um Gerard Butler anos antes da glória temporária oriunda do seu Leônidas de Esparta, no papel do sugador de sangue acordando na virada do século.
Tal preâmbulo, aqui, serve não somente para uma contextualização das versões modernas da narrativa criada por Stoker, como, também, para pontuar um diferencial óbvio delas em relação à comédia “Renfield – Dando Sangue Pelo Chefe” (2023), mais uma obra a trazer aos tempos modernos a história escrita pelo irlandês Bram. Esse diferencial, obviamente, chama-se Nicolas Cage.
Aqui, mesmo com poucas cenas, Cage, na pele do Conde Drácula, consegue transferir para o personagem imortalizado por gente como Bela Lugosi, Gary Oldman e Christopher Lee, peso semelhante de tais lendárias atuações. Isso se mostra tanto na criação de uma presença calcada na pompa suntuosa e séria requerida pela figura majestosa do aristocrata, quanto na situação decrépita e em estado de putrefação que a mesma se encontra quando precisa se recuperar dos ataques sofridos pelos caçadores que sabem de sua existência malévola. E, claro, tratando-se de uma comédia, a elaboração histriônica trazida pelo ator sempre como uma marca registrada quando a composição de seus papéis permite, se encaixa de modo exato à presença deste Drácula.
Mas sua pouca presença em cena até que se justifica. O filme, na verdade, é centrado no personagem de seu lacaio, o Renfield do título, aqui, vivido pelo carismático Nicholas Hoult. No livro de Bram Stoker, Richard Montague Renfield é um paciente de um hospício influenciado psiquicamente por Drácula. Insano, costuma se alimentar de insetos. Adaptado para um ajudante do conde que é agraciado com a imortalidade e que retira poderes exatamente do hábito de ingerir aranha, moscas, formigas, etc., Renfield é responsável por levar “alimento” para o vampiro. Leia-se: vítimas inocentes e de sangue quente. Atormentado pelos abusos psicológicos do patrão, o rapaz procura suporte em um grupo de autoajuda e, lá, através de depoimentos sobre outros abusadores, os usa para satisfazer o apetite do seu chefe.
Originado de uma ideia do criador de “The Walking Dead”, Robert Kirkman, e dirigido por Chris McKay, um dos autores do recente “Dungeous & Dragons”, “Renfield” brinca de maneira criativa com a mitologia de Drácula. Seus flashbacks, por exemplo, quando conhecemos o momento em que mestre e aprendiz se conhecem, e quando vemos a inicial sociedade entre o dentuço e seu empregado florescer, trazem cenários clássicos e enquadramentos em preto e branco que remetem às adaptações dos estúdios Hammer, que imortalizaram Christopher Lee no papel, e, agora, colocando Nicolas Cage na figura mítica da criação de Stoker em simbólicos momentos da cultura pop cinematográfica. Sendo notoriamente um sonho do próprio ator interpretar o personagem, é com um sorriso no rosto que seus fãs devem observar esses momentos. Do outro lado, Nicholas Hoult capricha na cara de coitado para fazer valer o peso da influência do parasita sanguinário em Renfield.
Para além da trama focada nos conflitos internos de seu protagonista, o filme traz todo um subplot envolvendo a máfia em Nova Orleans que se torna o escape de violência e ação dentro do longa, tudo isso em cenas com lutas até bem coreografadas entre tiros e membros decepados. Apesar da presença cômica forçada de Awkwafina, com os já conhecidos trejeitos espalhafatosos que a maioria dos roteiristas parecem enxergar sua presença (exceto, claro, a diretora Lulu Wang, que soube captar muito bem o talento da atriz e rapper no drama “A Despedida”, filme de 2019), acaba sendo um contraponto eficiente para a postura tímida e retraída que Hoult trouxe para seu protagonista.
Mas é quando o senhor das trevas conhecido como Nicolas Cage surgem em cena que o filme realmente engrena. É bom ver o ator/operário de volta a papéis à sua altura. Até a próxima crise financeira o jogar de volta aos filme b, claro.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.