Cinema: “A Esposa de Tchaikovsky”, de Kirill Serebrennikov, conta outro lado da vida do mais famoso compositor russo

texto de Renan Guerra

Piotr Ilitch Tchaikovski é o compositor russo mais famoso no mundo e suas composições se tornaram parte do repertório popular em diferentes instâncias, mas sua biografia é recheada de incertezas, com um dos grandes debates recaindo sobre sua sexualidade. O consenso entre a maioria dos biógrafos é de que o compositor era homossexual, porém essa parte da vida de Tchaikovski foi sempre suprimida, especialmente por sua família e pelo governo russo, que desde sempre fez questão de apresentar o músico como heterossexual. Apesar de uma vida de solteirice, aos 37 anos, em 1877, Tchaikovski se casou com uma ex-aluna, Antonina Miliukova, um relacionamento que seria um verdadeiro desastre: eles viveram juntos menos de três meses e Piotr deu um jeito de fugir da esposa, indo para o exterior, com a desculpa da atribulada profissão.

É sobre esse casamento que se debruça o filme de Kirill Serebrennikov, “A Esposa de Tchaikovski” (“Tchaikovsky’s Wife”, 2022), em cartaz nos cinemas brasileiros com distribuição da Imovision. O filme de Serebrennikov é todo contado pela perspectiva de Antonina, em atuação esplendorosa de Alyona Mikhaylova. No filme acompanhamos desde o início da relação do casal até a deterioração de Antonina, tudo por sua assustadora fixação em Tchaikovski. E tudo é feito de forma bastante estilizada, tanto que todas essas informações históricas aqui inseridas não mudam o impacto que a história do filme tem no espectador. O diretor russo opta por escolhas estilísticas bem marcadas e, muitas vezes, a realidade fantástica assume o espaço e possibilita um olhar mais amplo sobre medos, temores e dúvidas dos personagens que vemos na tela.

Como grande trunfo do filme está a reconstrução de época, pois a Rússia do século XIX é filmada de forma única. Localizado essencialmente na cidade de Moscou, o filme também tem passagens em São Petersburgo – capital do país a época. A forma como as cidades são representadas e o grande uso de figuração e elenco de apoio nos dão a noção da vida nessas grandes cidades, com um detalhamento soberbo, que dá conta da sujeira, da falta de esgoto e da pobreza que assolava esses países tão grandiosos em seus impérios. Esse contraponto entre a vida luxuosa dos salões e das óperas com a sujeira das ruas e a mendicância da população nos ajudam a embarcar ainda mais fundo nos tons sombrios que “A Esposa de Tchaikovski” assume em determinados momentos.

Lançado oficialmente no Festival de Cannes de 2022, “A Esposa de Tchaikovski” obviamente se viu no meio da celeuma causada pela invasão russa na Ucrânia. É importante voltar no tempo e entender que Kirill Serebrennikov é um dos mais importantes cineastas russos de sua geração, porém ele não é nenhum um pouco bem-quisto em seu país. Abertamente homossexual e defensor de muitas ideias que vão contra o governo de Vladimir Putin, Serebrennikov passou dois anos em prisão domiciliar em um processo nebuloso que foi acusado pela opinião internacional de ser uma fraude com o intuito de prejudicar o diretor – tudo isso motivado pelo caráter extremamente homofóbico da Rússia. “A Esposa de Tchaikovski” foi o único filme russo a entrar na mostra competitiva de Cannes em 2022 e, óbvio, foi motivo de críticas. Agnieszka Holland, presidente da Academia de Cinema Europeu, foi uma das críticas da exibição do filme e disse que o diretor não merecia uma chance no atual cenário geopolítico. Fun fact: Holland recebeu condecoração de mérito do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky em 2019.

Apesar dessa estúpida caça às bruxas frente tudo aquilo que é russo, “A Esposa de Tchaikovski” se sobressai como um filme estiloso, que consegue de forma divertida e estranha nos fazer mergulhar em um mundo de ilusões, mentiras e negações. Odin Biron está idêntico a Tchaikovski e cria, de forma maravilhosa, todos os pequenos detalhes de um homossexual que se esconde, criando cenas de absoluta tensão e tesão. Já Alyona Mikhaylova é estupenda e se mostra a coisa mais impactante do filme, pois sabe dar complexidade e nuances para o tour de force de Antonina Miliukova. Kirill Serebrennikov soube manter o espectador envolvido nas mais de duas horas de “A Esposa de Tchaikovski” com uma história cheia de nuances e de complexidade, que se por um lado foge da exatidão histórica, por outro nos leva para esse espaço nebuloso que se encontra na fragilidade e na dubiedade das figuras humanas.

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava

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