texto de Lucas Reis
Filmes e séries sobre bandas que não existiram não são tão incomuns. A famosa Stillwater, por exemplo, existe apenas em “Quase Famosos” (Cameron Crowe, 2000). O grande sucesso “That Thing You Do!” é de autoria do The Wonders, banda criada em “The Wonders – O Sonho Não Acabou” (Tom Hanks, 1996). Já a banda ícone do metal farofa Spinal Tap é criada especialmente para o falso documentário “This is Spinal Tap” (Rob Reiner, 1984). Essas obras trabalham com bandas fictícias para, de alguma maneira, captar o espírito de uma época. Afinal, a música pop é elemento fundamental para a segunda metade do século XX e as suas variações dão a entender as mudanças comportamentais ao longo dos anos.
O seriado “Daisy Jones and The Six” também cria uma banda (parcialmente inspirada no Fleetwood Mac). O grupo que dá nome à série era uma das maiores bandas de 1977, contudo, após um show marcante, nunca mais subiram num palco juntos novamente. Vinte anos depois, um documentário sobre a banda é realizado e todos os integrantes e pessoas ao redor dão seus depoimentos. Assim, a série é composta por uma montagem paralela entre a ascensão, apogeu e queda da banda de rock’n’roll e relatos dos integrantes do grupo rememorando os momentos que vivenciaram na banda.
Disponível na Amazon Prime Video, “Daisy Jones and The Six”, baseado no romance homônimo de Taylor Jenkins Reid lançado em 2019, tem dez episódios ao todo, mas desde os primeiros minutos fica claro qual vai ser a principal dinâmica narrativa: a relação conflituosa entre Billy Dunne (Sam Claflin), o líder da The Six e Daisy Jones (Riley Keough), cantora e compositora agregada ao grupo. A união dos dois é artisticamente fecunda, porém pessoalmente conflituosa. Eles não conseguem se dar bem de nenhuma maneira e, quanto mais se conectam para compor músicas, mais brigam e se ofendem.
Dessa maneira, os outros quatro integrantes da banda – Graham Dunne (Will Harrison), Karen Sirko (Suki Waterhouse), Eddie Roundtree (Josh Whitehouse) e Warren Rojas (Sebastian Chacon) – são apenas coadjuvantes. Assim como a sexta integrante (uma espécie de primeira agente), Camilla Dunne (Camila Morrone), esposa de Billy, existe apenas para oferecer um contraponto moral ao fato dele não poder se envolver com Daisy Jones, pois é casado. Os personagens são esquemáticos e servem apenas para rodear os protagonistas. No fim das contas, ainda há um relacionamento entre Graham e Karen. Todavia, este conflito narrativo se resolve rapidamente à base de diálogos, ao contrário do casal de protagonistas que se desenvolve com o mesmo ritmo de um casal de novela.
Os quatro episódios iniciais são, antes de tudo, uma apresentação de Billy e Daisy. Enquanto ela é uma menina rica, espevitada, lasciva e que faz tudo a hora que quer, ele é um sujeito de classe média, caxias, carrancudo e que se coloca como líder da banda que foi o irmão que fundou com os amigos. Não há nada em comum entre eles, além do talento de compositores que o produtor Teddy Price (Tom Wright) percebe nos dois e por isso os une.
Assim, dentro do universo de uma banda de rock’n’roll da década de 1970 em que bebidas, drogas e sexo fazem parte da rotina, essa relação conturbada fica cada vez mais insustentável, ao mesmo tempo que o sucesso do grupo fica cada vez mais avassalador. Contudo, tal universo roqueiro não é explorado. De maneira geral, o mundo que rodeia os personagens da série é deixado em segundo plano. Não importa muito se Daisy Jones and The Six são uma grande banda, pois o único enfoque é no relacionamento corrosivo dos protagonistas.
A montagem paralela entre as sequências da banda ascendendo ao estrelato e os relatos posteriores dos membros do grupo ainda adicionam uma camada de obviedade da narrativa. Não há nada nos relatos além de evidenciar o que já está explícito. Há uma necessidade de explicar toda e qualquer situação – chega a impressionar a falta de confiança no público. As lembranças, inclusive, são dedicadas exclusivamente à banda. Não há qualquer menção a um período histórico essencial nos Estados Unidos particularmente e no mundo de maneira geral.
A década de 1970 é marcante na história cultural do ocidente. O pessimismo pós movimento hippie já se manifestava e não cabia mais o sentimento “flower power”. Os Estados Unidos já era o país símbolo do ocidente para o bem e para o mal. A genial série “Mad Men”, por exemplo, se desenvolve durante toda a década de 1960 e identifica como as manifestações culturais consideradas conflituosas são embaladas pela publicidade para um consumo conservador da sociedade. A guerra fria amedrontava a população. A guerra do Vietnã criou uma massa inteira de pessoas com síndrome de estresse pós-traumático. O escândalo Watergate colocou em xeque a nação. Hollywood estava em seu momento mais pessimista. Entretanto, nada disso faz parte de “Daisy Jones and The Six”. Exceto por uma calça boca de sino ou um colete de couro, mal é possível identificar que a série se passa na década de 1970.
Em uma das poucas sequências em que o roteiro se interessa por algo além da banda, Graham, Karen, Eddie e Warren vão a um show em um lugar pequeno que os faz lembrar do início da carreira. Eles conhecem uma banda punk e, especialmente, o baixista Eddie fica deslumbrado e declara que o som que Daisy Jones and The Six fazem está ultrapassado. Infelizmente, essa percepção não tem ligação real com o universo da banda. Embora Eddie invista no punk após sair da banda, o interesse pela música não cria um conflito criativo entre os integrantes ou algo parecido.
O que parece interessar a feitura de uma série sobre uma banda da década de 1970 é o estereótipo de uso abusivo de drogas, sucesso fugaz e crises de estrelismo. Contudo, todas essas situações funcionam para que as relações amorosas encontrem impedimentos. O que sobra como momentos realmente bons são os duelos de composição entre Daisy e Billy e a energia caótica que eles transparecem nos palcos durante as turnês.
“Daisy Jones and The Six” é como um disco do The Strokes, bem feitinho, amarradinho e com cara de produto bem embalado. Contudo, por muitas vezes, a sensação que fica é de algo extremamente piegas. É aquela velha história, movimentos culturais que chocam a sociedade em certo período histórico, muitas vezes, são retomados a gosto do consumidor, sem nada que possa ofender a moral da classe média.
– Lucas Reis é pesquisador de cinema brasileiro. Atua como crítico de cinema, histórias em quadrinhos e televisão. Escreve na Revista Aurora Cine.