entrevista por Leonardo Vinhas
Vinte anos atrás, Guillermo Vega e Mauricio Raggio se juntaram para compor suas próprias composições e, quem sabe, montar uma banda. No mesmo ano, a banda passou a existir e, 20 anos depois, o El Zombie segue na ativa, misturando ska, swing, rockabilly, rock e pop praiano. Essa sonoridade já ultrapassou as fronteiras de sua Argentina natal, e chegou ao México e ao Brasil. Aliás, a banda está em terras brasileiras com sete datas no interior de São Paulo e uma no Rio de Janeiro até o começo de abril.
De inspiração fortemente “noventeira”, o El Zombie passou por várias formações, e hoje, com integrantes espalhados pelo mundo, é “duas bandas em uma”, como diz Guillermo Vega, que é guitarrista, vocalista e principal compositor. Guille divide os vocais com Agus Palpebra, e completam a formação oficial da banda o já citado Mauricio Raggio no baixo, Pablo Kemmler na bateria, Doc na percussão e Gonza na segunda guitarra. Mas outros amigos cobrem as posições que eventualmente ficam vagas, como explica a banda nessa entrevista exclusiva ao Scream & Yell.
O Scream & Yell, aliás, flagrou a banda em três momentos diferentes: no início de sua segunda turnê, em 2018, quando a banda foi um dos destaques do festival Paraíso do Rock, e em plena pandemia, quando o Selo Scream & Yell realizou o lançamento do álbum ao vivo “Emerge el Zombie”. Além disso, a banda participou do primeiro volume da compilação “Conexão Latina”, com a até então inédita e poderosa “El Circo Está en Remate”. Essas conversas permitiram se aprofundar na essência da banda, que atravessou anos de intempéries tanto na cena argentina como internamente (pra não falar da pandemia), e não só se mantém viva, como parece estar entrando em seu período mais produtivo, trabalhando em dois álbuns ao mesmo tempo.
O primeiro desses – “Fragmentos”, o quarto LP da banda – já teve alguns singles adiantados e deve ser lançado ainda esse ano. Canções como “Western”, “Disfraz”, “Homesick” e “Selva” mostram que o El Zombie segue na mesma trilha variada de “Amanece”, usando o ska como base para agregar outros gêneros, explorando bastante novos timbres de guitarra e explorando melhor o uso do sax e também das excelentes linhas de baixo de Mauricio Raggio. Na turnê brasileira, essas e as canções de “Amanece” são reforçadas por surpreendentes versões de artistas brasileiros (sobre as quais eles falam na entrevista a seguir) e também um repertório rotativo de covers que podem ir de Queen (“I Want to Break Free”) a Billie Ellish (“Bad Guy”), sem deixar de lado referências diretas como Madness (“One Step Beyond”) e The Clash (“Police On My Back”).
A banda sempre teve planos de voltar ao Brasil, e essa é uma turnê com muitas datas. Vocês acham que ela pode abrir portas para uma carreira mais longa no país, com mais visitas – um pouco como o Satelite Kingston conseguiu?
Guillermo: Nosso objetivo é abrir portas, com toda a certeza. Idealmente, eu gostaria de realizar duas turnês no Brasil por ano. Dessa vez, a gente deixou de fora alguns pontos de SP que tínhamos oportunidades de tocar, e também deixamos Belo Horizonte e Curitiba para uma próxima. Nas duas vezes que a gente veio, nos sentimos muito bem recebidos, e acho que nossa relação com o público brasileiro vai continuar crescendo.
As músicas mais recentes parecem buscar ainda mais um sentido pop de composição, deixando de lado o ska puro e simples. Ainda faz sentido chamar El Zombie de uma banda de ska?
A gente não compartilha essa visão, porque o nosso novo disco, “Fragmentos”, tem os mesmos estilos que sempre tivemos. O ska Two-Tone está representado em músicas como “De Vuelta en el Fondo” (antecipada no ao vivo “Emerge El Zombie”) ou “Ska Bulgaro”. Mas El Zombie nunca foi uma banda 100% ska, a gente é uma fusão de swing, ska, rockabilly, rock e reggae, no mínimo. Mas a gente também não descarta fazer pop (risos).
É interessante que as composições de vocês parecem ter sua forma definitiva em estúdio. Isso principalmente no “Amanece”. Como se as possibilidades daquela composição tivessem sido esgotadas e vocês tivessem chegado ao essencial dela, em termos de arranjo e harmonia, inclusive.
Pablo Kemmler: Isso acontece por causa dos nossos ensaios. De repente a gente começa a tocar uma de nossas músicas em um andamento mais lento, ou usando outro grooves, outros efeitos. Também fazemos versões acústicas, muitas versões pessoais e, também, fazemos versões outras mais roqueiras ou dubs, A maioria dessas versões nunca vê a luz, mas experimentamos bastante antes de chegar à gravação.
Mesmo que os brasileiros não conheçam tanto a música argentina, existe uma impressão, principalmente entre os músicos, de que a cena musical de vocês é mais diversa e melhor estruturada para bandas menores que a do nosso país. Vocês coincidem com essa visão brasileira, ou acham que existe uma idealização por parte dos brasileiros?
Guillermo: É uma pergunta complexa, mas eu mesmo sou muito crítico em relação à cena argentina. Depois de Cromañon, tudo mudou muito. Tem muitas cenas que acontecem com alguma força e que não têm qualquer relação com o que toca nas rádios, como as festas de swing, as bandas rockabilly. O mainstream se tornou cópia de si mesmo há alguns anos, e entrega uma música que pra mim soa bastante xarope. Falo sério quando digo que Buenos Aires nos anos 90 era Nova Iorque: tinha muita coisa acontecendo, parecia que algo ou alguém sempre estava prestes a explodir. Hoje eu vejo muitas bandas boas no underground, mas não tenho essa mesma sensação de que algo está para acontecer. Acho que ainda é preciso lutar muito para que as bandas menores consigam mais espaço. E como eu disse, depois da tragédia de Cromañon, tudo mudou. As pessoas foram deixando de sair de casa para ver bandas.
Mauricio Raggio: Acho que isso tem a ver também com a tecnologia, que acaba fazendo com que as pessoas fiquem mais em casa.
Guillermo: Eu não concordo com isso. No México, todo mundo sai, ainda tem uma movimentação enorme para ver bandas. Quando a imprensa diz que o problema está nas ferramentas modernas, fico até meio puto. Porque se temos pessoas que nos conhecem no México, é porque ficaram curiosas e saíram de casa para nos ver. O que aconteceu foi que tivemos uma bomba atômica, que foi Cromañon, e isso arrebentou com muitas bandas, e tirou o nosso hábito de sair. Mas hoje a coisa mudou por causa do trap. Antes não tínhamos um roqueiro famoso com menos de 40 anos, e hoje, com a ascensão do trap, não tem músico famoso com mais de 25! Convidamos alguns trappers e rappers para participar de alguns shows nossos, fazendo freestyle sobre nossas bases, e gostamos bastante do resultado. Gostaríamos de incluir algo desse gênero no nosso quinto disco.
E como a pandemia impactou o El Zombie?
Guillermo: A pandemia afetou a parte orgânica da banda, O El Zombie e uma banda que sempre precisa estar junta, a sala de ensaio é um local importante onde aparecem muitas ideias novas, e também onde conseguimos fechar as que estão rolando. Obviamente, a pandemia nos estimulou a trabalhar diferente, e acabamos fazendo alguns shows virtuais para o México, Peru e Argentina. Pessoalmente eu aproveitei para estudar mixagem e produção musical, e com isso conseguimos editar um álbum ao vivo para o Brasil, “Emerge el Zombie”, que foi o pontapé inicial do processo desse quarto álbum.
E como fica o processo criativo em uma banda com tantos integrantes? Nunca é fácil conciliar ideias, egos e estilos em meio a tanta gente…
Guillermo: Cada um de nós aporta algo. Todo mundo tem alguma participação nas composições. Isso é algo de que somos conscientes já na concepção. Saímos com uma ideia inicial, um norte que nos orienta, mas aí são várias cabeças que vêm pensando, e cada uma colabora com um pedacinho.
Agus Palpebra: É um processo muito harmonioso, com muita liberdade. As referências de cada um são diferentes, o que mexe com um nem sempre mexe com o outrom, mas cada um sabe o que quer trazer. Ao mesmo tempo, somos muito críticos em relação a nós mesmos, inclusive um com o outro, e ao mesmo tempo conseguimos que isso não seja motivo de briga (risos).
Guille, você já morava em Rosario e os outros integrantes em Buenos Aires, mas desde o ano passado está morando no Brasil. Como a banda tem lidado com isso?
Guillermo: O Pablo também está morando na Europa durante a maior parte do ano, então a banda está fragmentada. Nós estamos mantendo um ciclo de shows em Buenos Aires com a banda que ainda continua por lá. Quando alguns integrantes não estão disponíveis, temos amigos que estão cobrindo as posições, igual a um time de futebol. É como se El Zombie fosse duas bandas.
Já no “Emerge El Zombie” vocês tinham apresentado algumas músicas novas. Além dele, saíram alguns singles, mas “Amanece” ainda é o último álbum de estúdio de vocês. Como vocês estão equilibrando o repertório? Afinal, muita gente que conheceu a banda na primeira turnê talvez tenha esse disco como o mais emblemático da banda.
Guillermo: “Amanece” continua sendo um disco importante da banda. O processo de gravação desse último esteve alinhado com as datas e as possibilidades de cada um. O Pablo, por exemplo, deixou bases de bateria gravadas para o resto da banda, e vai ser em cima delas que vamos terminar de gravar esse disco durante o 2023. Era pra ser um disco duplo, mas depois decidimos que fossem dois álbuns separados. Então, as bases do quinto disco já estão gravadas (risos). Mas o repertório tem as músicas presentes no “Emerge Zombie”, os singles e as músicas do “Amanece”. Vai ser um show bem diferente dos que apresentamos nas duas turnês anteriores da banda, os sets estão com pelo menos 24 canções.
Você morou no Brasil quando jovem e agora fixou residência aqui, fala bem português, conhece bastante a música local. E agora está trazendo versões em português nessa turnê. Não foram as escolhas mais óbvias. Você pode me contar um pouco sobre elas?
Guillermo: A gente quis colocar “Velha Roupa Colorida” no repertório porque a turnê ia começar no dia 24 de março, que é o Dia da Memória na Argentina. Essa é uma data muito importante pra nós, que é quando se celebra o fim da ditadura militar em nosso país, então o verso “o passado nunca mais” tem um significado especial para nós. Já “Selvagem”, dos Paralamas, entrou como um rap no meio de “Selva” porque é uma letra muito forte, e a gente achou que ia encaixar bem com a nossa canção. Mas olha, difícil acertar aqueles versos, viu? (risos) E a versão de “Mulher de Fases” é, na verdade, uma versão que foi feita pelos Los Pericos há muitos anos (nota: em 2010, para ser exato), e se tornou um hit na Argentina. Gostamos das duas – a original dos Raimundos e a versão dos nossos conterrâneos – então demos um jeito de juntar as duas.
– Leonardo Vinhas é jornalista, escritor e produtor cultural. Colabora com o Scream & Yell desde 2000, onde também assina a coluna Conexão Latina. É também colaborador eventual dos sites Music Non Stop (Brasil) e Zona de Obras (Espanha).