Entrevista: André Barcinski fala sobre a reedição luxuosa do livro “Barulho”, de jornalismo e crítica musical, e mais

entrevista por Leonardo Vinhas

Em 1992, o jornalista e escritor André Barcinski lançou seu primeiro livro, “Barulho – Uma Viagem pelo Underground do Rock Americano”, pela editora Paulicéia. Em uma época sem internet, em que as informações corriam de forma mais lenta e condicionada ao produto físico, a obra extrapolou seu papel de retratar a movimentação de um dos períodos mais criativos e comercialmente peculiares da música popular barulhenta. “Barulh0o” virou o primeiro ponto de contato para um conjunto cultural que envolvia sonoridade, estética e ideologia que se provaram, no mínimo, influentes ao longo dos anos.

Vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Reportagem, “Barulho” trazia entrevistas e fotos exclusivas com bandas que se tornariam estrelas mundiais, como Nirvana e Red Hot Chili Peppers, mas também papos marcantes com veteranos (Jello Biafra, Joey Ramone e o casal Lux Interior e Poison Ivy, do Cramps), nomes que se tornariam emblemáticos de seus respectivos gêneros (Mudhoney, Ministry), e até umas bandinhas mequetrefes que não deram em muita coisa (Lunachicks, Sheer Terror), entre outras.

O grande mérito do livro, porém, era transportar o leitor para aquela movimentação toda. Cidades como São Francisco, Nova Iorque ou Seattle se tornavam mais palpáveis e reconhecíveis. O texto sobre Jello Biafra, por exemplo, abria com a descrição de um show numa biboca alternativa com várias bandas menores e pouco conhecidas, que contaria com uma participação dos ex-Dead Kennedys. Barcinski aproveitava esse fato para levar o leitor para dentro daquele ambiente, entendendo que aquela “cena” nada tinha de glamurosa. Isso, porém, não a impedia de ser efervescente e interessante.

Fora de catálogo há anos, o livro está ganhando uma edição comemorativa de 30 anos, viabilizada via campanha de financiamento coletivo. Com novo projeto gráfico (o original remetia aos fanzines) e em acabamento bem mais luxuoso, a nova versão ganhou uma segunda parte, intitulada “Mais Barulho”, com fotos inéditas e textos-legendas, abarcando bandas que não foram contempladas na edição original, como Alice in Chains, Body Count, The Damned, Fishbone, Flaming Lips, Moby, e até alguns brasileiros, como Legião Urbana e Raul Seixas. Além disso, há um novo prefácio, assinado por Marcelo D2, que se une ao original, escrito na época pelo jornalista André Forastieri.

Atualmente trabalhando em um projeto biográfico sobre Nelson Ned, que se desdobra em documentário e livro (a ser lançado pela Companhia das Letras) e em um outro projeto que não pode ser revelado ainda (além de anunciar a produtora MAR, sociedade com o produtor Leandro Carbonato, da Powerline Shows Music & Books, que está trazendo o Brian Jonestown Massacre para o Brasil), Barcinski concedeu uma entrevista ao longo de mais de uma hora para o Scream & Yell. A conversa se embrenhou por memórias do livro, seu legado, algumas reavaliações e o papel da crítica musical.

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“Barulho” foi lançado há 30 anos. Para além do valor como documento histórico, o que mais você destacaria como um ponto de interesse para o leitor atual?
Relendo o livro, o que me chamou a atenção foi a quantidade incrível de grandes bandas e grandes discos saindo quase simultaneamente. E não só de bandas novas, isso é que era incrível nessa época., Por exemplo, tem umas fotos que não estavam na edição original e que eu incluí nessa, que são da turnê de volta do The Damned. Foi a primeira turnê em 15 anos com a formação original, rolou na mesma semana que estava saindo o “Nevermind”, o Cramps saindo com uma turnê nova, o Red Hot Chili Peppers com o “BloodSugarSexMagik”, é um período incrível de lançamentos! Os 24 meses entre 1991 e 1992 são um absurdo, com muito disco legal! Quem está lendo pela primeira vez talvez se espante com a riqueza musical daquele período, falando de rock mais alternativo. Mas, cara, tinha de tudo! O KMFDM estava bombando, Ministry bombando, a coisa eletrônica super forte. Não tinha ainda as bandas do britpop, mas já tinha um movimento muito grande vindo da Europa, muita coisa legal saindo junto. Tinha o My Bloody Valentine com o “Loveless”, “Bandwagonesque” do Teenage Fanclub… E o mercado indie não estava tão segmentado ainda, quem ia ver o Prong também ia ver o Teenage Fanclub. Tocavam de tudo no 120 Minutes, que era o programa mais alternativo da MTV. Isso era muito importante também, porque a MTV americana nessa época estava a todo vapor, a MTV Brasil tinha começado ali por 1990 (nota: de fato, ela foi ao ar em 20 de outubro desse ano) e pegou essa explosão do grunge, o aumento da popularidade do Chili Peppers, isso sem falar que o Metallica lançou o álbum preto na mesma época, o R.E.M. lançou o “Out of Time”. Era tanta coisa boa que alguns discos sensacionais ficaram meio obscurecidos, que talvez tivessem recebido mais atenção se tivessem saído em outra época. É o caso do “Every Good Boy Deserves Fudge”, do Mudhoney, que é um grande disco, mas imagina se tivesse saído dois anos antes? Teria tido uma movimentação muito maior.

Você citou a movimentação inglesa naquele período. Em 1992, o [jornalista] Fernando Naporano organizou uma compilação chamada “Another Kind of Noise”, com várias bandas de shoegaze e outros estilos, que jamais tinham aparecido no Brasil. Passou pela sua cabeça tentar fazer algum projeto fonográfico que acompanhasse o “Barulho” na época, para tentar lançar as bandas, ou foi algo que você nem cogitou?
Nem cogitei porque logo depois do livro sair eu me mudei para os Estados Unidos. O “Barulho” sai em julho de 1992 e em agosto ou setembro me mudo para Los Angeles, fiquei uns oito, nove anos direto nos Estados Unidos. Consegui um emprego de correspondente do Jornal do Brasil, inicialmente, e aí já fui pra outra coisa, que era cobrir cinema, fiz muita entrevista de lançamento de filmes e tal. Claro, vi muitos shows ainda, mas também calhou de ter saído a revista General, e eu tomei meio que um ultimato da direção da Bizz, dizendo que ou eu escrevia para a Bizz, ou para a General. Pô. os caras da General são os meus amigos, né? Caí fora, falei “foda-se”, mandei a Bizz pro caralho, e demorei anos pra voltar a escrever pra ela. As circunstâncias profissionais me impediram de fazer qualquer coisa relativa ao “Barulho”. Agora, o engraçado é que eu não percebi o sucesso do “Barulho”. Por sucesso, eu quero dizer, sei lá, 17 mil cópias, sabe? Mas enfim, eu não percebi. Como eu estava morando fora, numa época sem internet, só vim a saber da repercussão do livro depois. Recebi muitos depoimentos a posteriori, sobre como aquela tinha sido a primeira vez que muitas pessoas do interior tiveram o primeiro contato com esse tipo de som. E só fiquei sabendo em cima da hora que o livro tinha ganhado o Jabuti de melhor reportagem, não consegui nem vir pro Brasil. Meu pai foi receber o prêmio por mim. Se fosse hoje em dia, teria uma resposta muito mais imediata dos leitores. Mas demorou um tempo pra eu entender que esse livro teve um significado para as pessoas. E não estou falando por causa da qualidade do livro, mas sim que eu acho que ele pegou um momento certo, capturou o espírito de uma época e foi lançado no Brasil em um período em que havia muito pouca informação sobre esse tipo de som. Talvez por isso ele tenha se tornado um livro tão querido, por tanta gente, mas eu não percebia isso. É difícil explicar hoje como a distância e a falta de comunicação fazem a gente perder totalmente o contato, né? Posso te dar um exemplo: eu perdi o rock brasileiro dos anos 90 inteiramente (porque estava vivendo em Los Angeles), eu não sabia o que era o Chico Science, por exemplo, entendeu? É bizarro assim, eu nunca tinha ouvido falar de Raimundos, não era uma coisa que fazia parte do meu universo. Não tinha essa integração tecnológica que desse acesso a essas informações, então eu fiquei meio no vácuo. Parece estranho, mas é verdade.

Realmente, nessa época, se você não tivesse o disco em mãos, não tinha como ouvir aquele artista.
Exatamente. Durante a viagem pra fazer o “Barulho”, eu devo ter comprado uma meia dúzia de cópias do “Nevermind”, porque a cada lugar que eu parava para entrevistar alguém, eu dava um disco para a pessoa. Eu me lembro de dar o disco pro Anthony Kiedis, do Chili Peppers, que – olha que engraçado – naquele mesmo ano fez uma turnê com o Nirvana, mas até então, não tinha ouvido o disco. E apresentei o disco pro Joey Ramone, deixei uma cópia com o Jello Biafra, todo mundo com quem eu falava estava ligado que o Nirvana tinha lançado um disco, assim, especial. A gente não sabia que ia se tornar esse fenômeno que foi. Qualquer pessoa que falar que “ah, eu sabia que ia ser um sucesso assim que eu ouvi” é mentira! E é mentira mesmo, porque não foi um grande lançamento do ponto de vista comercial. Você não ia em todas as lojas e tinha anúncio do Nirvana. A Geffen tinha contratado o Nirvana torcendo pro Nirvana vender mais ou menos a mesma coisa que o Sonic Youth, que era a banda indie que tinha saído de pequenas gravadoras pra ir pra Geffen. Era a referência. Quando o disco começa a estourar é que a BMG começa a botar grana na divulgação. Se você pegar o chart de vendas do Nevermind, vai ver que foi boca a boca, não era com o “Use Your Illusion” (nota: os dois álbuns duplos que o Guns’ N’ Roses lançou em 1991), que tinha anúncio em tudo quanto é lugar.

E o próprio texto sobre o Nirvana deixa isso muito claro: você tinha acertado a entrevista previamente, e quando você chega pra falar com eles depois do show, a banda já está num outro patamar.
É engraçado, porque eles estão em outro patamar, mas eles não se ligam ainda disso, porque a produção do show é uma zona do cacete. Aquilo ali não era a produção de show de banda que estava em primeiro lugar na parada ou que ia chegar ao primeiro lugar. Porra, eles me deixam ficar na frente do palco o show inteiro, filmando. Isso não existe! Imagina se hoje uma grande banda vai fazer um DVD – bom, isso ninguém faz mais, né? – ou alguma coisa pra streaming e vai deixar os jornalistas andando na frente do palco. Não aconteceria nunca! Mas ali, ninguém me tirou. Eu fiquei lá até o final, eu apareço direto no DVD do “Live at Paramount” (do Nirvana, lançado apenas em 2011), é ridículo assim, eu e um outro cinegrafista aparecemos na frente do palco durante o show inteiro. A lotação era 10% do que eles poderiam ter feito naquela época, com uma estrutura super precária. Olha as fotos do show: tem um monte de gente andando atrás do palco, amigos vendo o show.

O “Barulho” é focado em bandas que haviam surgido naquele momento ou tinham uma pequena trajetória de respeito. Mas tem três medalhões: Joey Ramone, Jello Biafra e os Cramps. Eu imagino que tem uma questão geográfica que pesou na escolha desses três nomes, mas como o livro se propõe uma certa genealogia do barulho daquele período, deve ter tido gente que você tentou entrevistar e não conseguiu, não?
Tentei sim, mas vamos retroceder só para entender como eram marcadas as entrevistas em 1991. Telefonar era um absurdo! Você não telefonava pra ninguém no exterior porque uma ligação de cinco minutos custava um absurdo. Então você mandava um fax pra gravadoras solicitando a entrevista. Eu queria fazer a Touch and Go em Chicago, queria entrevistar o Jesus Lizard. Nunca recebi resposta da gravadora. Até tentei quando cheguei em Chicago, porque muitas das entrevistas foram concedidas de última hora mesmo. Me lembro que tentei o John Lydon (Sex Pistols / PIL), até escrevo sobre isso no livro. Ele estava fazendo uma turnê por lá, mas exigiu comer em um restaurante com ostras e tal, caro pra cacete, e acabei cancelando a entrevista. Eu teria que dar uma pensada em quem tentei e não consegui… Ó, uma que eu não tentei, mas me ofereceram foi o Pearl Jam. E eu recusei, olha que absurdo (risos). Eles não tinham lançado o “Ten”, e eu só conhecia o Mother Love Bone. Nunca tinha ouvido Pearl Jam. Estava pra Seattle com o interesse único de fazer o Mudhoney, bem mais do que o Nirvana. Eu gostava mais do Mudhoney nessa época. Aí a gravadora, acho que era a Epic, me avisou que ia ter um show de uma banda nova, o Pearl Jam, em São Francisco. E no dia eu estava com o ingresso pra ver o Alice Donut, que é uma banda pequena, que ia tocar em um buraco… Recusei entrevista com o Pearl Jam, pra você ver meu tino comercial (risos) Se eu tivesse aceitado, certamente o Pearl Jam teria um capítulo inteiro no livro. Mas no calor do momento é impossível você definir o que vai fazer sucesso e o que não vai. É impossível definir até se você gosta de um disco ou não na primeira audição, né? Na minha entrevista com o Steve Albini, por exemplo, ele me mostrou um disco do Slint, o “Spiderland”, que achei meio chato (nota: e se tornaria um clássico). Eu não falei isso pra ele, mas escrevi no texto. E hoje o Slint é uma das minhas bandas prediletas! Essa coisa de achar que você nunca vai mudar de opinião, ou acreditar que a sua primeira audição no calor do momento é o que vai definir seu gosto pela vida inteira… não rola. Mas pra responder a sua pergunta: não lembro se tentei (o selo) SST, Black Flag… Não lembro, cara. O que posso te dizer é que muita coisa foi conseguida de última hora, e muita coisa foi marcada porém cancelada na última hora. E tinha tanto show que eu tinha que escolher… Era assim: o Cramps ia fazer um show surpresa em São Francisco, mas no mesmo dia, tinha, sei lá, o L7 tocando não sei onde, outra banda tocando em outro lugar, então eu tinha que escolher. Passei seis ou sete semanas lá, e vi shows todos os dias. Às vezes, eram bandas que não combinavam com o que eu estava fazendo ali, então não tinha por que escrever sobre elas. Na verdade, o livro mesmo não existia ainda, a minha ideia era ir pros Estados Unidos fazer uma série de entrevistas e matérias, e publicá-las na Bizz (nota: o que realmente aconteceu). Só virou livro quando eu voltei para casa e peguei esse material todo e falei, “pô, tem muita coisa legal, de repente dá para juntar tudo num livro”.

Você tocou em algo que eu ia perguntar depois, mas vou aproveitar o gancho e me antecipar. Você disse que não gostou do Slint, e também escreve no livro que não gostou do Jesus Lizard, diz que ambas as bandas parecem “um Arrigo Barnabé hardcore”.
(ri) É, achei uma coisa quebrada, meio louca. Em 1991 era difícil entender aquele negócio.

Acho essa mudança de opinião natural, e a pergunta nem é sobre essas bandas. A pergunta é sobre a sua geração, que tinha uma acidez de texto muito sobressalente, que meio que definiu o tom do jornalismo musical daquela época. Lembro, por exemplo, de uma matéria sobre relançamentos de álbuns da Clara Nunes que você aproveita aquele texto para alfinetar o Eddie Vedder (ri). Eu mesmo era adolescente nessa época, leitor da Bizz, e vejo que isso foi formativo, para o bem e para o mal, para muita gente da minha idade. Você acha que isso é natural, ou identifica algum efeito nocivo dessa postura crítica? Claro, não precisa responder por uma geração toda, mas pelo menos do seu caso.
Olha, eu não posso falar por uma geração porque eu não vejo essa união de jornalistas. Tipo assim, eu nunca trabalhei na Bizz, nunca frequentei a sede. Escrevi muito pouco para eles, acho que já foi em 1993 que rolou esse ultimato pra eu parar de escrever pra General e que eu falei foda-se. Em 1992 eu mudo para os Estados Unidos e fico a década de 1990 inteira lá, então eu não tive nenhum contato com outros jornalistas. Se eu vi o Minho K (Celso Pucci) uma vez na minha vida foi muito. De verdade, não é exagero. Só fui ter mais contato com essa galera depois que eu volto pro Brasil, lá por 1999, 2000. Então não posso falar pela redação da Bizz. Mas posso falar por mim. Sempre gostei muito de ler, e por falar inglês desde pequeno (nota: André nasceu em Nova Iorque), tive uma puta sorte, porque eu conseguia ler os semanários ingleses, e muitos livros. Lia muita coisa do Lester Bangs, do Greil Marcus, do Ian MacDonald. Não estou me comparando a esses caras, de jeito nenhum, tá? Naquela época, a gente não tinha muito a noção de como o que você escreveu vai ser percebido por outras pessoas. Isso é uma das piores coisas que pode acontecer a quem escreve sobre música ou sobre cinema, porque acaba tornando o seu texto medíocre, mediano. Pode parecer uma coisa personalista, um pouco egocêntrica? Sim, mas eu não obrigava ninguém a ler as coisas que eu escrevia. E outra coisa que você tem que ver, Leonardo, é que o outro lado eu acho muito pior. O lado da imprensa do qual eu sempre fui contra, essa imprensa de brothers dos caras, especialmente a imprensa carioca dos anos 1980. Você via jornalista na lista de agradecimentos do disco, o brother de banda fazendo matéria sobre a própria banda! Depois que eu fiz um livro sobre o Sepultura (“Sepultura: Toda a História”, em coautoria com Silvio Gomes), nunca mais escrevi sobre eles. Os caras são meus amigos, vou escrever sobre meus amigos? Depois que eu virei amigo do [João] Gordo, eu não escrevi mais sobre o Ratos. Fiz até um livro sobre o Gordo (“Viva la Vida Tosca”), mas você não vai me ver fazendo matéria sobre ele e sobre meus amigos. Eu não faço release, entendeu? Fiz alguns até o começo dos anos 1990, dos quais me arrependi amargamente, porque comecei a pensar: “porra, se estou fazendo release, estou trabalhando para a gravadora, e aí como é que eu vou falar mal de um disco dessa gravadora?” Era um momento em que algumas pessoas, e eu posso me incluir, tentavam fazer uma coisa diferente do que estava rolando. Eu trabalhava no Jornal do Brasil no final dos anos 1980 e via aquela coisa incestuosa de crítico no camarim dando abraço em um músico sobre o qual ele vai escrever depois. Isso me deixava puto! E um cara de 22, 23 anos às vezes não tem o discernimento para medir as consequências, né? Então se você me perguntar se tem coisas que eu mudaria, claro que tem! Tem textos que são extremamente agressivos, que eu acho que eu passei totalmente do ponto, mas o que eu posso fazer se já está escrito? As coisas que a gente faz, certas ou erradas, ficam de alguma maneira eternizadas. Você meio que tem que viver com isso. Ao mesmo tempo, eu sempre gostei mais de fazer reportagens do que crítica, e eu vejo o “Barulho” muito mais como uma reportagem do que como uma coisa de crítico. O meu barato sempre foi a reportagem, nunca cheguei em lugar nenhum e falei “eu quero ser crítico de música”. Eu não sou músico, eu não tenho conhecimento teórico de música. As pessoas começaram a me pedir os textos, eu comecei a fazer, e as pessoas começaram a gostar. Acho que essa pecha ficou por alguns casos isolados, como o da Marina [Lima], que ficou sem falar com a BIZZ durante anos por causa de um texto que eu fiz sobre um show dela. E tem o célebre caso dos Titãs (nota: uma resenha ácida de “Titanomaquia”, escrita como um diálogo ficcional entre os integrantes da banda). Eu estava morando em Los Angeles quando fiz aquele texto, não soube nem da repercussão. Você pode achar que é mentira, mas eu não tinha contato diário com a redação da Bizz, então não sabia de nada. Depois que eu fui saber que chegaram um monte de cartas dos fãs, que Titãs queimaram a revista num show (nota: na verdade, eles rasgaram um exemplar da revista no palco e pediram ao público, que havia recebido as revistas gratuitamente numa ação de marketing, que rasgassem também). Agora, o que é melhor: isso ou o cara que vai lá no camarim para dar um abraço na banda e depois faz um texto elogioso? Porra, qual o problema de você não gostar do disco de uma pessoa? Sabe, se alguém falar assim, “olha, teu livro é uma merda”, beleza, eu não vou ficar puto. Se falar “você é um mau caráter”, aí eu vou ficar puto. Uma coisa é uma opinião sobre o seu trabalho, sobre a sua qualidade como escritor ou como músico, outra coisa é uma avaliação do seu caráter. Já tive um monte de gente que falou mal de coisas que eu fiz sobre trabalho, e que são meus amigos. O Thiago Ney fez uma crítica na Folha uma vez sobre um festival que eu produzi e falou mal do som, falou mal das bandas. Você acha que eu vou deixar de falar com o Thiago Ney por causa disso? A gente é amigo até hoje. É uma coisa tão infantil isso de ficar melindrado. Sabe, os Titãs estão aí lotando o Allianz Parque, e os caras vão ficar putos com crítica de rock? Isso é porque estavam acostumados a um monte de amigos indo nos shows e falando “nossa, vocês são foda”. E vamos falar a verdade: eu não ouço o “Titanomaquia” desde aquela época, mas que era patético uma banda com 15 anos de estrada pegar um produtor de grunge em 1994 ou 95 (nota: na verdade, 1993, quando o Titãs tinha 11 anos de carreira) para fazer um disco com aquela pegada, isso era. Pô, fala sério! Os caras não precisavam disso.

Bem, não faz muito tempo, um artigo da revista Movin Up apontava a crítica brasileira como uma grande ação entre amigos. E a prova de que o autor, Mauricio Angelo, estava certo é que muita gente ficou puta com esse texto (risos).
Essa coisa demonstra uma profunda imaturidade da cena como um todo. As pessoas ficam melindradas, porque o Brasil é esse país da coisa cordial, bacaninha, da patota. Jornalista que quer fazer parte da cena, cara? Pelamor! Todo mundo é adulto. Quem está na chuva é para se molhar, né? Eu vou escrever sobre bandas e não vou querer ter reação? Agora, o que posso garantir é que não era uma coisa de falar mal sempre para gerar reação ou ter atenção. Até porque, vou te falar, as matérias que são mais legais, que você tem a melhor reação, são trabalhos em que você descobre alguma coisa que o público não sabe, ou quando você mostra um disco pela primeira vez, entendeu. Eu fiz [a série] “A história secreta do pop brasileiro” (disponível nos canais da Claro TV. Prime Video e Looke), tem um episódio dos Carbonos, que foi a maior repercussão que eu já tive, um monte de gente falando “pô, não conhecia a banda, que foda”. Foi legal pra caramba.

As bandas retratadas no “Barulho”, em sua maioria, tinham um discurso contra as grandes gravadoras, algo que era bem frequente naquela época. Parte dos textos do período também ecoava isso. Porém, já há um bom tempo – aparentemente, desde o período em que você estava trabalhando no “Pavões Misteriosos” – você coloca as grandes gravadoras como essenciais para que alguns grandes discos estivessem sendo realizados. Você diria, então, que aquele combate travado naquele período foi uma luta equivocada, ou fazia sentido no contexto da época?
Eu não concordo com a premissa da pergunta. Acho que é o contrário: o Nirvana só fez o sucesso que fez porque estava na Geffen, porque teve um clipe na MTV. Existiam bandas tão talentosas quanto o Nirvana que não saíram das pequenas gravadoras. Por que o Nirvana faz um puta sucesso? Porque ele consegue, digamos, não ofender os puristas do underground e ao mesmo tempo atrair a menina de 14 anos que acha o Kurt Cobain lindo – com todo o respeito às meninas de 14 anos que acham o Cobain lindo. O segredo do disco foi esse. O clipe era muito bem-feito, a música, apesar de ser abrasiva, tinha uma coisa meio polida por causa da produção do Butch Vig. Qualquer pessoa podia ouvir o “Nevermind”. Teve versão em forró de “Come As You Are”, o Sambô gravou “Smells Like Teen Spirit” em samba.

Mas o discurso existia. O próprio Cobain apareceu na capa da Rolling Stone com a camiseta “Corporate Magazines Still Suck”, muitas bandas falavam mal do Sonic Youth por terem assinado com a Geffen, o slogan da SST era “corporate rock still sucks”, tinha uma banda acusando a outra de “se vender”.
Tudo jogo de cena, porque o Nirvana só assinou com a Geffen porque o Sonic Youth tinha assinado. E depois que eles assinam, as grandes gravadoras vão atrás das bandas menores, e quase todas foram contratadas por grandes gravadores. Bicho, Flaming Lips foi contratado pela Warner, e nos anos 1980, o show deles era todo mundo pelado, tomando ácido, botando fogo no palco. O Butthole Surfers foi contratado pela Atlantic. O Butthole Surfers!

Que ainda pôs o John Paul Jones para produzir (risos – no caso, o álbum “Independent Worm Saloon”, de 1993).
Era perigoso ir no show do Butthole Surfers. Era pancadaria o show inteiro, o Gibby [Haynes, vocalista] batia com garrafa de cerveja na cabeça das pessoas… Se eles assinavam com o Atlantic, então acabou esse muro aí entre entre alternativo e mainstream. Pô, o Melvins foi contratado pela Atlantic e produzido supostamente pelo próprio Cobain no [álbum] “Houdini” (nota: o “supostamente” é porque os Melvins declararam que, apesar de receber crédito de coprodutor, Cobain estava demasiadamente drogado e fora de si para produzir qualquer coisa, tendo sido demitido no meio da produção). Todo mundo foi contratado. Algumas pessoas não toparam. O Steve Albini não topou, mas produziu um monte de disco para grandes gravadoras: produziu Nirvana, Breeders, Pixies (nota: no caso desses dois últimos, foram discos produzidos para o selo 4AD, parte do Beggars Group). Eu acho que os únicos assim que realmente falaram “não, a gente não vai” foi aquela turma da [pequena gravadora] Dischord, do Ian MacKaye. Meat Puppets, Circle Jerks… Todo mundo foi contratado. Eu acho a coisa do Nirvana muito jogo de cena. Eles estavam realmente desconfortáveis com aquela situação de ter que ir em evento corporativo. Eu estava no MTV Video Music Awards em que rolou aquela briga com o Axl Rose [em 1992], e estava claro que eles eram os peixes fora d’água, mas você acha que eles não estavam gostando de fazer esse papel? Se o cara não está gostando, ele não vai. As pessoas que trabalham com o Steve Albini dizem que se toca o telefone e a pessoa se identifica como alguém de uma grande gravadora, ele bate o telefone na cara da pessoa na hora. Não quer nem falar, pra não ser tentado pelo que ele vai ouvir, entendeu? Então acho que era meio jogo de cena. Acho não: tenho certeza.

Você falou do Steve Albini, e eu lembro que o texto dele não saiu na edição original do “Barulho”, mas sim na Bizz. Mas a maior parte do material novo do livro é foto, e não texto. Você tinha fitas de entrevistas não publicadas, chegou a tentar resgatar algum material?
Eu não sei nem se eu tenho mais as fitas originais das entrevistas. Mas acho que todas as entrevistas que eu fiz naquela época foram usadas no livro. E algumas coisas ficaram muito datadas. Eu entrevistei, por exemplo, o Jim Nash, da Wax Trax, que é uma gravadora que eu nem sei se existe. Usei a segunda parte para colocar fotos legais que eu tenho desde 88, algumas raras. como o Iggy Pop no Canecão em 1988, o Buddy Guy no Canecão em 1989, uma foto muito importante do reencontro do Paulo Coelho com o Raul Seixas depois de 13 anos sem se verem, e que é a última foto dos dois juntos… Mas não tenho grandes matérias que não saíam. Eu poderia, por exemplo, ter colocado a matéria sobre o GG Allin, mas não coloquei, eu fiz um texto sobre quem ele era e tem quatro ou seis páginas de fotos dele. Mas não tem muito texto novo, não.

Na época do lançamento do livro, o Jello Biafra veio para o Brasil. Numa entrevista que ele deu para o Scream & Yell, ele conta a história da seguinte forma:
“Havia um escritor que fez um livro, um jornalista na verdade (Jello refere-se a André Barcinski). Ele tinha vindo para os Estados Unidos e entrevistou um monte de pessoas diferentes do rock e escreveu sobre isso. Era uma publicação sobre a viagem e fotos que ele fez (a vinda de Jello teve a ver com divulgação do livro “Barulho – Uma viagem pelo underground do rock americano”) entrevistando o pessoal. E ele me convidou para passar uns dias no Brasil, chamou o Al Jourgensen também. Tipo: umas férias gratuitas se ajudasse na divulgação da obra. O Al não quis fazer. Mas, enfim… Chegando no Brasil descobri que estava sendo anunciado show meu, e ninguém havia me comunicado ou pedido para eu tocar. Não fiquei muito feliz, mas pensei que seria pior se me negasse a fazer. Então, fui em frente e foi bem divertido tocar, fazer novas amizades com os caras do Sepultura e do Ratos de Porão… (e com o Renato Russo, que era um rockstar aí. Eu sabia que a Legião Urbana era uma banda grande, mas não imaginava que era tanto)…

Bem, eu queria ouvir o seu lado dessa história.
(risos) Vamos lá, vamos pensar. 1992, tá? O Ministry era uma banda gigante, tinha lançado “Psalm 69”, era uma banda com clipe na MTV, e Paul Barker (então baixista da banda) veio ao Brasil e não tocou no show. Quer dizer, ninguém foi obrigado a tocar no show. O que estava anunciado era: show dos Ratos de Porão e Sepultura, com lançamento do meu livro, e quem comprasse o livro entrava de graça. Não tinha nem ingresso. E o Jello adorou tocar! Esse papo de que ele foi forçado a tocar… O cara é forçado a tocar e depois pega um ônibus, vai para São Paulo para tocar também com essas bandas? Isso faz algum sentido? Na boa, Leonardo, ele foi tão “forçado a tocar” que cantou junto com o Mano Negra nos arcos da Lapa, entendeu? É o punk falando, sabe? Eu não vou ficar chateado porque eu amo o Jello, ele é um cara foda, e achei super legal ele vir, mas dizer que ele foi forçado a tocar… porra. Vê o vídeo, cara! Ele tá pirando de tocar, felizaço. Ele nunca tinha tocado no Brasil.

Não foi um show pra ganhar dinheiro. Posso estar viajando, mas nem sei se teve cobrança de ingresso nesse dia, realmente acho que o ingresso era o próprio livro. A minha combinação com o Circo Voador foi algo na linha de “deixa a gente fazer a festa que a gente se vira com o resto”. O pessoal do Sepultura e do Ratos foi de ônibus pro Rio, numa boa, voltou de ônibus pra São Paulo, o Jello voltou com eles, passou uns dias na casa do Igor e do Max em São Paulo, teve um monte de festa. Ele conheceu um monte de gente cara. Faz o menor sentido, entendeu? Se ele fosse para passar férias, ele teria ficado no Rio e não teria ido para São Paulo para tocar no Aeroanta, né? Só fiquei chateado porque ficou parecendo que foi uma coisa do tipo: “trouxemos o Jello Biafra para um show”, como se eu estivesse promovendo um show. A editora Paulicéia gastou muito dinheiro a fundo perdido, trouxe o Paul Barker, que não fez nada, só fez entrevista de lançamento, não tocou nenhum dia, não apareceu em lugar nenhum. O Al [Jourgensen, líder do Ministry] deveria ter vindo, mas ele cancelou em cima da hora, estava numa clínica numa rehab de metadona e não pôde vir. Eu li essa declaração do Jello na época, e depois achei engraçado, acho que é conveniente para ele falar esse tipo de coisa, mas é óbvio que ele não foi explorado por um produtor inescrupuloso (risos). Só para acabar: foi nessa turnê que o Sepultura combinou com o Jello de participar do CD “Alternative 100” (nota: na verdade, “Virus 100”), que foi o centésimo lançamento da Alternative Tentacles e era um tributo aos Dead Kennedys (nota: do qual também participam Faith No More, L7, Mojo Nixon e vários outros). O Sepultura era uma banda grande, e eles gravam “Drug Me” para esse disco. Quer dizer, eles ficaram tão amigos, foi um negócio tão legal, que eles fizeram essa versão (nota: posteriormente, Jello participaria do álbum “Chaos A.D.”, do Sepultura).

Leonardo Vinhas é jornalista, escritor e produtor cultural. Colabora com o Scream & Yell desde 2000, onde também assina a coluna Conexão Latina. É também colaborador eventual dos sites Music Non Stop (Brasil) e Zona de Obras (Espanha).

One thought on “Entrevista: André Barcinski fala sobre a reedição luxuosa do livro “Barulho”, de jornalismo e crítica musical, e mais

  1. Não vejo a hora de pegar essa edição. Minha única critica é a capa, a mesma (foto) do livro do Marcelo Orozco…

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