texto de Marco Antonio Barbosa
fotos de Fernando Yokota
O momento mágico de qualquer show do Deafheaven – talvez de toda a carreira da banda – é o drop na seção melódica de “Dream House”, antes da porradaria recomeçar. É um respiro em meio ao inferno de decibéis, que induz o ouvinte a uma sensação única de vertigem; o momento em que o tsunami sonoro recua e enxergamos o horizonte por um breve momento, pressentindo que o maremoto vai retornar a qualquer momento.
Na versão de estúdio, ocorre lá pelos 5m45s da canção. No único show que o quinteto americano fez em sua passagem pelo Brasil em 2023, no Fabrique Club (SP), na noite do dia 12 de março, tivemos que esperar até a última música do bis. Isso não significa que faltaram paroxismos de emoção e pura sinestesia no set, muito pelo contrário…
Muito pelo contrário. “Emoção” é a palavra de ordem com o Deafheaven, e não faltou emoção no show do dia 12. Há, decerto, outras – não muitas – bandas tão ou mais extremas que o grupo liderado pelo cantor (sic) George Clarke. Em teoria, não é difícil combinar riffões de death metal, bateria estilo trem desgovernado, vocais que desafiam o limite de qualquer garganta e teclados atmosféricos estrategicamente distribuídos.
Mais complicado é reproduzir o senso de dinâmica e a complexa musicalidade que as canções da banda conjuram. Berrar e enfiar o cacete na bateria é mole; usar esses elementos para sugerir beleza e introspecção em meio a canções brutalmente refinadas… não é qualquer um que consegue.
No Fabrique Club, antes do início do show, havia uma palpável tensão no ar. Qual Deafheaven ouviríamos? A violência quase caricatural dos primeiros álbuns ou o som mais sutil e próximo de um indie padrão do último disco, “Infinite Granite” (2021)? A abertura pende totalmente para a primeira vertente, com a monolítica tríade “Black Brick”, “Irresistible” e “Sunbather”.
Enquanto os guitarristas Shiv Mehra (o com cara de indiano-técnico-de-TI) e Kerry McCoy (o com a camiseta do Radiohead) desciam o cacete em suas Les Paul, cada um num flanco, George Clarke dominava a cena com inegável teatralidade. Entre caretas psicóticas e sorrisos idem, impressionou pela intensidade da performance. E pelo espaço generoso concedido aos meninos e meninas que, já na primeira música, se aventuravam a subir no palco para dar mosh.
O sofrimento ao rasgar as cordas vocais era palpável, mas nas pausas entre as canções, não havia qualquer sinal de rouquidão. Seria mais jogo de cena? Não: assim como as muralhas de guitarras ou as múltiplas avalanches desencadeadas pelo baterista Daniel Tracy, o estilo extremo de Clarke é um dos instrumentos que o Deafheaven emprega para impactar seus fãs com emoção verdadeira – mas nunca monocórdia. Prova disso é a troca de marcha imprimida depois das primeiras músicas, quando a banda incursiona pelas canções mais domesticadas de “Infinite Granite”: a transição é fluida, sem traumas. Os riffs menos monstruosos, os dedilhados mais elaborados, as melodias definidas em vez de apenas sugeridas, os refrãos discerníveis são tão genuínos quanto a artilharia pesada dos primeiros álbuns.
Há mais de uma maneira de tocar a alma de um post-headbanger e Clarke sabe disso: ao introduzir “Shellstar”, do último álbum, ele diz, com um sorriso maroto: “Quem conhecer essa, pode puxar a pessoa amada para dançar um pouco…”. A música é recebida como se fosse um megahit radiofônico. Assim como a bruma de synths subsônicos de “Great Mass of Color” e o envolvente interplay de guitarras na introdução de “Canary Yellow”. Cantando “de verdade” em vez de gritar, Clarke segue dominando a massa com um gestual que (aliado à roupa toda preta) até poderia ser mal interpretado como evocações fascistóides. Mas fascistas seriam incapazes de cantar letras sobre horizontes evanescentes e lilases balançando ao vento.
E é a hora do setlist de dinâmica impecável retomar ao inferno para o bis, com “Brought to the Water” e a já citada “Dream House”. E voltamos sorrindo. Transe, apoteose, êxtase induzidos pelo brutalismo (e felizmente o som bem equalizado do Fabrique nos permite ouvir todos os muitos detalhes dos arranjos). “Eu quero sonhar”, esgoela-se um exultante Clarke, com força suficiente para romper tímpanos e estraçalhar corações. Sonhar acordado, pois durma-se com um barulho desses.
Se os críticos ainda cortam um dobrado para classificar o som do Deafheaven – pós-metal? Deathgaze? – a banda da abertura, a curitibana terraplana, é mais facilmente categorizável. Eles eram garotos (e uma garota) que, como eu, amavam My Bloody Valentine & Slowdive. Palmeando o lado mais narcoléptico do shoegaze, o quarteto impressiona pela massa sonora, em especial quando botam as alavancas das guitarras pra funcionar e emulam (tanto quanto possível) o gliding típico do MBV. Ainda podem e devem evoluir, especialmente na construção de melodias. Mas demonstraram maturidade suficiente para não se intimidarem, abrindo para uma de suas influências declaradas (eles mesmos admitiram no palco).
– Marco Antonio Barbosa é jornalista (medium.com/telhado-de-vidro) e músico (http://borealis.art.br).
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: instagram.com/fernandoyokota/