texto por Marcelo Costa
fotos por Fernando Yokota
vídeos por Bruno Capelas
Um mês atrás, no começo de fevereiro, Lianne Las Havas esgotou duas noites de mais de mil pessoas no Cine Joia munida apenas de violão (ou guitarra), voz e bom humor. Antes de entrar em cena, porém, muitos duvidavam do formato do show: “Como ela e o público vão se portar num show tão mínimo?”, era a questão que ecoava entre os presentes e a resposta veio embebida em simpatia, classe e virtuosismo apaixonado num show tão improvável quanto histórico. Um mês depois, no começo de março, Evan Dando, o rei do rolê aleatório e cabeça dos cabeças de limão, se apresentaria também sozinho com seu violão em duas noites também sold out, mas no espaço diminuto improvisado para shows no quinto andar do Sesc Avenida Paulista, e para uma plateia muito menor, cerca de 200 pessoas por noite, e o resultado foi o completo oposto de Lianne, o que permite diversas divagações.
Alguém pode dizer que é injusto – e talvez seja – comparar uma artista que, aos 33 anos, vive o auge de sua carreira (“Lianne Las Havas”, seu terceiro disco, lançado em 2020, foi aclamado por crítica e público, aparecendo em diversas listas de melhores do ano) com um compositor que, aos 56 anos, está no ocaso de sua trajetoria (o último disco de inéditas do Lemonheads é de 2006, sendo seguido por dois álbuns de covers, “Varshons” 1 e 2, de, respectivamente, 2009 e 2019), e seus shows são, já há muito tempo, imprevisíveis (de uma maneira não muito boa): em 2004, Evan trouxe sua banda (ele é o único membro fixo) para uma turnê no Brasil e o show na capital paulista foi descrito assim aqui mesmo nesse sitio: “Fantasma do Lemonheads passa rouco por SP”.
A notícia boa é que, 19 anos depois, a voz de Evan Dando está muito melhor do que nessa passagem desastrosa anterior, mas Evan é mais um personagem vivo de uma década marcante que nos tirou para sempre alguns dos melhores do que, necessariamente, um showman. Ou seja, não dá para usar a mesma régua para comparar um show dele com Lianne, por exemplo, pois só o fato de ver o líder dos Lemonheads cantando, causando e se autossabotando ao vivo já é um fragmento de nostalgia (falamos bastante sobre ela aqui) se consolidando no coração de gente que cresceu ouvindo discos maravilhosos como “Lovey” (1990), “It’s a Shame About Ray” (1992), a pérola “Come on Feel the Lemonheads” (1993) e “Car Button Cloth” (1996), e que não está muito preocupado com técnica, qualidade musical e entrega, mas sim com espontaneidade e presença.
Dito tudo isso, as duas apresentações de Evan Dando no Sesc Avenida Paulista foram melhores que as de 2004 no Brasil, ainda que repletas de falhas, canções cantadas pela metade, muitas delas zoadas pelo próprio compositor, que se alternava entre um microfone tradicional e outro, conectado a pedais de efeitos, e ria de canto de boca da zoeira de bagunçar suas próprias melodias alternando cada frase da música entre os dois – isso sem contar as canções desplugadas, em que ele arrancava nada delicadamente o cabo de seu instrumento e ia tocar para a galera no gargarejo (e, tanto na ida quanto na volta, derrubava tudo que não via pela frente, incluindo pedestais e microfones). É um espetáculo meio cômico… e meio triste, mas que tem a seu favor o fato de manter o artista focado na música, seja lá o que isso significa.
No repertório das duas noites, aquilo que ele prometeu no Scream & Yell: “Umas 25 do Lemonheads e solo mais covers”. Do primeiro grupo fizeram parte “The Outdoor Type”, “Into Your Arms” (ainda que ambas pudessem estar no outro grupo), “Hard Drive”, “Hospital”, “My Drug Buddy”, “Rudderless”, “Confetti”, “Being Around” e “It’s a Shame About Ray”. Do segundo, números de Cheap Trick (“He’s A Whore”), Townes van Zandt (“Snow Don’t Fall”, “Pancho and Lefty”), Victoria Williams (“Frying Pan”), Whitney Houston (“How Will I Know”), John Prine (“Speed of the Sound of Loneliness”), Ten Years After (uma versão a capela de “I’d Love To Change The World”) e, claro, Simon & Garfunkel (“Mrs. Robinson”), que contou na sexta com o acréscimo do guitarrista Tex, sobrinho de Antônia (namorada de Evan e filha de Renato Teixeira) e filho de Chico Teixeira, que marcou presença no sábado para tocar “Como La Cigarra” e… o hino “Romaria” com Evan nos backings – quem saiu de casa para ver ao vivo um ícone do bubblegrunge noventista foi deveras surpreendido.
Ainda teve pose de caipirão hippie bravo na sexta com fãs conversando durante as músicas e um injustificável piti no sábado devido ao aviso de que o horário do show estava no limite, mas o que fica dessas duas apresentações capengas, ainda que viscerais de Evan é a sensação de estarmos diante de uma peça publicitária antidrogas pesadas tanto quanto a oportunidade de estar muito próximo de alguém que comeu o pão que ele próprio amassou, mas que, na teoria dos seis graus de separação, estava lá próximo de Kurt Cobain, Eddie Vedder (“tão bonitinho”, provocou ele na entrevista ao Scream & Yell), Noel Gallagher e todo mundo, e agora está entre nós tratando os dentes, indo à praia em Ubatuba, tocando em bares da Vila Madalena, participando de podcast de amigos e fazendo shows inconsequentes como esses, que pecam em quase todos os quesitos da experiência musical, mas batem forte no emocional. Precisa mais?
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: instagram.com/fernandoyokota/
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.