texto por Lucas Reis
“Pearl” (2022) é o segundo filme de uma trilogia de horror dirigida por Ti West. O primeiro, “X – A Marca da Morte” (2022), se passava em 1979 e tinha como protagonista Maxine (Mia Goth), uma jovem com desejo pela fama. Na tentativa de se tornar uma estrela, envolve-se em uma produção pornográfica, imaginando que ficaria conhecida pelo público. Ocorre que o sítio em que a produção se instala é de propriedade de Howard e Pearl (também interpretada por Mia Goth), um casal de idosos sinistros. Pearl destacou-se tanto que Ti West resolveu escavar o passado da personagem para entender como aquela senhora se tornou a figura assombrosa que é.
Assim, a obra retorna à 1918, no mesmo sítio de “X – A Marca da Morte”. Naquele momento, o marido de Pearl, Howard, está em combate na guerra e a convivência com a mãe controladora e com o pai doente terminal faz com que a moça se sinta solitária. Mais ainda, uma pandemia faz com que o contato com as outras pessoas seja limitado – ampliando a ansiedade da jovem e o desejo de fugir de casa. Pearl é encantada pelo cinema, sonhando em se tornar uma estrela de filmes a fim de ser conhecida pelo grande público – a relação com Maxine e o sonho com a fama são notórios.
Ao analisar a carreira de West fica evidente que ele tem um conhecimento profundo sobre o cinema de horror e abarrota seus trabalhos de referências ao gênero. Dessa maneira, boa parte da crítica aos seus filmes pregressos estão ligadas a um certo fetichismo. Mesmo em “X – A Marca da Morte” é possível destacar um deleite com sequências correspondentes às de um slasher movie, embora o filme não se alicerce em tais sequências. Em “Pearl”, contudo, Ti West escava o gênero de forma mais profunda e não se detém na superficialidade. Dentre toda a sua obra, esta é a que o realizador melhor consegue refinar seu estilo e trabalhar uma fratura social indo direto ao ponto.
Assim como “Corra”, de Jordan Peele, (2017) que debate o racismo na sociedade americana, ou “O Bebê de Rosemary”, de Roman Polanski (1968), que identifica um sonho utópico equivocado da classe média, “Pearl” reage a um trauma social e vai em suas raízes. Dessa maneira, mesmo que o filme se passe em 1918, a discussão proposta é claramente contemporânea. Afinal, um filme fala mais sobre o período em que foi realizado do que sobre o período que retrata.
O desejo pela fama de Pearl evidencia um narcisismo latente que desemboca em toda a violência perversa da personagem. O sonho de ser uma atriz de cinema, o desejo de ir para a Europa, ter contato com a arte e a possibilidade de viajar o país em uma trupe de teatro são rotas de fuga possíveis para sair do ambiente miserável que a cerca. Contudo, toda a sua aspiração se manifesta na busca pela fama, por ser reconhecida como uma estrela. A insanidade que vai acometendo a personagem é diretamente proporcional à impossibilidade de se tornar reconhecida.
A vaidade é uma manifestação humana, porém as redes sociais são dispositivos que ampliam tal sentimento. A contabilização de seguidores é um capital na sociedade contemporânea e grande parte dos usuários tem como objetivo serem mais conhecidos. Em certo momento do já famoso monólogo de Mia Goth, ela afirma para a cunhada, Mitsy: “Eu só quero que o máximo de pessoas possíveis me amem.”. É verdade que o filme se passa em uma época sem redes sociais, mas a frivolidade é exposta de maneira gritante.
Inclusive, Ti West situa o seu filme durante uma pandemia para não deixar dúvidas sobre o momento que está debatendo. Obviamente, a gripe espanhola aconteceu em 1918, contudo o interesse em fazer um paralelo com o presente é indiscutível. Num momento em que o cinema ainda não sabe lidar com a crise sanitária que deixou todos presos em suas casas durante dois anos, “Pearl” assume em seu horror o contexto pandêmico como catalisador da angústia.
O tormento do desejo pela fama (que também está em “X – A Marca da Morte”) é uma característica tenebrosa do american dream. O discurso de que a chance de sucesso e prosperidade são frutos exclusivamente do trabalho tem um lado sombrio que acomete as pessoas que, porventura, não alcançam seus sonhos. A fratura social se revela naqueles que não atingem os seus objetivos e se frustram, pois, no discurso oficial, essa é uma derrota pessoal. Dessa maneira, a morte de Mitsy é categórica, pois ela conquista o papel que Pearl sonhara. Contudo, suas características físicas (é uma menina loira) são fundamentais para que ela seja selecionada e gere a inveja de quem não foi escolhida.
Em “Pearl”, além das amarras sociais que impedem que o sonho da jovem se consolide, a figura da mãe é de mais um agente repressivo. A mulher é controlada o tempo todo e o ambiente familiar não é o espaço seguro como costuma ser caracterizado. O horror também se estabelece no espaço privado quando a violência é imposta pela figura materna. Assim, a menina é impedida de jantar, caso a mãe entenda ser o melhor a ser feito e vai dormir com fome ou é impedida de dançar mesmo que seja uma atividade prazerosa para ela.
O filme trabalha de forma engenhosa com tudo o que se propõe, mas nada seria tão bem realizado se não fosse Mia Goth. A atriz consegue dar uma dimensão infantil, quase angelical para a personagem e, ao mesmo tempo, ser maligna e amedrontadora. Ti West abusa dos close-ups na moça que tem um rosto expressivo como poucos. Seja nos momentos de intensidade ou mais baixos, Goth se sai absurdamente bem. Além do monólogo já mencionado e o close-up em seu rosto que se tornou meme, há várias sequências extraordinárias. Como no momento em que ela berra em meio ao choro: “eu sou uma estrela”, após não ser selecionada como dançarina ou em uma sequência de sexo com um espantalho, há uma variação entre a doçura e a tenebrosidade que confirmam uma atuação muito acima da média.
Ti West faz o seu melhor trabalho até aqui e deixa uma pérola do cinema de horror que não se costuma ver sempre. O que só faz ampliar o interesse por “Maxxxine”, terceiro filme da trilogia. O filme irá se passar em 1985 e agora, a aspirante a atriz, vai até Hollywood, local em que o american dream foi melhor comercializado, embora nos bastidores, fosse algo muito diferente e, muitas vezes, massacrante. Certamente, haverá material de sobra para mais um trabalho acima da média sobre o desejo pela fama.
– Lucas Reis é pesquisador de cinema brasileiro. Atua como crítico de cinema, histórias em quadrinhos e televisão. Escreve na Revista Aurora Cine.