entrevista por João Paulo Barreto
Em uma visita fílmica à Itália, vemos Sam Dalmas caminhar absorto em pensamentos na noite de Roma em “O Pássaro das Plumas de Cristal” (1970), um dos clássicos da filmografia de Dario Argento, operário/cineasta italiano e um dos principais nomes do giallo, gênero cinematográfico europeu com foco em tramas soturnas, envolvendo, muitas vezes, crimes sanguinolentos e, em várias películas, histórias de terror. No lugar errado, na hora errada, o escritor Dalmas, vivido por Tony Musante, testemunha um crime do qual acaba por se tornar suspeito pela polícia local.
Corta para a noite de uma Salvador sombria, e Claudio, personagem de Marcus Curvelo (quase um sósia de Tony Musante), caminha absorto em pensamentos semelhantes aos de Sam no Centro soteropolitano. Antes, uma figura misteriosa surge e passa a persegui-lo com uma navalha em punho. Vestida de noiva, com máscara e luvas negras, ela define, com sua presença que beira o horripilante, a ambientação do terror e do suspense que remete, em solo nordestino, ao adorado gênero “amarelo” das obras criadas por nomes de italianos como o próprio Argento e por Mario Bava. Trabalhos esses que, também, em sua atmosferas refletem-se em longas dirigidos por de Brian De Palma, Walter Hill e Martin Scorsese durante a prolífica década de 1970.
“Claudio”, o giallo baiano de Calebe Lopes, é um filme/clipe que ilustra, dentro da estética do gênero cinematográfico italiano, o EP lançado pela cantora Nana Lacrima, cujo trabalho nas três faixas que compõem o lançamento (“Tema di Claudio”,” Claudio, Tu” e “Nuda in Mezzo Alla Cittá”), casa de modo exato com a densa ambientação cujo cinema setentista foi inspiração para Calebe na criação de suas imagens.
“Eu queria fazer um filme tipo Brian De Palma, mesclando influências hitchcockianas, de Dario Argento e de Mario Bava. E aí surgiu essa oportunidade com o trabalho de Nana, que já veio pronto. Ela já tinha composto as músicas do EP como músicas de giallo, influenciadas por trilhas de Enio Morricone e por Goblin, que é a banda que fez as músicas de vários filmes de Dario Argento. Essa proposta veio e eu abracei”, relembra Calebe, ao comentar a aproximação com o projeto e suas influências na criação. “Me pareceu uma oportunidade, inicialmente, de fazer um clipe com essa estética, mas, ao mesmo tempo, eu comecei a tentar enxergar que poderia ser uma coisa a mais. Não sei se seria um filme, mas seria uma coisa maior. Teria um escopo maior, uma duração maior, já que ela queria fazer um clipe para o EP inteiro, com as três músicas”, complementa. O resultado final acabou sendo o de um curta metragem.
Explorar os aspectos urbanos da capital baiana dentro dessa estética do cinema giallo, mas que, também, reflete muito do que foi feito em obras da chamada Nova Hollywood, movimento que revolucionou o audiovisual estadunidense entre 1969 e 1980, era um desafio que ainda não havia sido enfrentado pelo diretor. “Eu tenho me interessado muito por tentar retratar melhor Salvador nos filmes. Porque sempre foi uma coisa muito nula nos curtas que eu fazia. Eram curtas que pareciam que se passavam em qualquer lugar. Não tinham uma identidade muito fixa de onde é que se passavam. E eu, também, comecei a me interessar mais por paisagens noturnas, que é uma coisa que remete a outro tipo de cinema do qual eu gosto muito, que é o da Nova Hollywood. Aquela fase dos anos 1970 no cinema americano, thriller policial, muito noturno, muito sujo”, explica.
Unir aquelas imagens à proposta trazida pela música de Nana Lacrima foi um ponto cuja soma precisa coincidiu bastante com as influências da cantora e do diretor. “O EP sempre foi pensado como se fosse uma única música em três partes, mas ele vem separado em três músicas. É muito cinematográfico. A primeira tem muito som diegético, tem muito folley, tem som de passos, de grito, da noite. Ouvindo aquilo, fui começando a imaginar coisas a partir do que esse som me trazia, me provocava”, pontua Calebe.
A sintonia entre a compositora e o cineasta ficou evidente quando a influência da obra de Argento surgiu como um ponto em comum. “Lembro que passei pra ela ‘O Pássaro das Plumas de Cristal’, que tem muitos planos em ruas vazias. E ela tinha pensado a mesma coisa. Havíamos pensado exatamente os mesmos planos do mesmo filme”, recorda-se Calebe. “E eu queria que a noite fosse meio esverdeada como ‘Taxi Driver’ (1976), como ‘Caçador de Morte’ (1978), de Walter Hill. Um dos planos iniciais em ‘Claudio’, que é quando a noiva aparece pela primeira vez, é um zoom muito longo, saindo de um prédio. A câmera a encontra no meio da rua e vai dando um zoom. Aquilo ali é inspirado por ‘A Conversação’ (1974), do Coppola. São filmes que não têm exatamente a ver com giallo, mas estão nessa mesma estética da noite suja”, esclarece.
Tema da Mostra Tiradentes desse ano, Cinema Mutirão é uma característica com a qual a filmografia de Calebe Lopes tem familiaridade. “Quando a gente pensa o cinema brasileiro dos últimos anos, principalmente de curta metragem, depois de tantos golpes contra a Cultura e contra o próprio cinema e contra os financiamentos, a gente sabe que durante os últimos anos tiveram que se organizar vários tipos de cinema de mutirão pra continuar se fazendo filmes”, pontua.
No artifício de criação do cinema como arte coletiva, essa ideia de mutirão pode ser vista como uma das definições para o processo de execução desse trabalho. Calebe explica: “Essa ideia de coletividade é que faz o cinema. E ‘Claudio’ é isso. Tínhamos um orçamento pequeno. E, por conta disso, uma equipe pequena na qual não havia funções engessadas. Todo mundo meio que participava. A própria Nana produz o filme. E ela foi atrás, colocando a mão na massa em muita coisa. Ela tem uma participação criativa e prática do set muito grande”, salienta o diretor.
Calebe finaliza explicando como é importante ter um primeiro filme dirigido por ele selecionado para a Mostra de Tiradentes. E vai além, pontuando a importância disso no mesmo ano que o cinema baiano é homenageado pela presença de Glenda Nicácio e Ary Rosa. “Anteriormente, a (produtora) Olho de Vidro já tinha participado de Tiradentes com ‘Onze Minutos’, que Hilda (Lopes) dirigiu e eu montei. Mas com um filme dirigido por mim, é a primeira vez. É massa estar nessa leva. É massa estar no mesmo ano em que Ary e Glenda estão sendo homenageados. Eu acho que é um momento importante do cinema baiano. E, ao mesmo tempo, é interessante ver que o cinema experimental tem espaço”, comemora.
Neste papo com o Scream & Yell, o jovem realizador aborda o processo de criação de “Claudio”, além de aprofundar a influência do giallo e do cinema setentista da Nova Hollywood em sua carreira. Confira!
Calebe, há uma perceptível influência do giallo não somente em seu mais recente trabalho, “Claudio”, como em diversos outros curtas metragens dirigidos por você. Filmando desde a adolescência, como a marca desse cinema chegou a você?
O giallo está muito atrelado à minha própria relação com o cinema de gênero. Como sempre gosto de falar, fui uma criança evangélica. Eu não podia assistir a filmes de terror, filme policial, filmes com violência. Então, durante boa parte da minha vida, este tipo de filme, e até mesmo literatura, era algo muito proibido para mim. Mas foi ali no final da infância, aos dez anos mais ou menos, que conheci Arthur Conan Doyle, Edgard Allan Poe e Agatha Christie. E comecei a ler muito. Minha adolescência inteira, passei lendo Poe e Agatha Christie. E Poe tem tudo a ver com o cinema giallo. Só que eu não fazia ideia de que isso existia. A partir dessa literatura que comecei a ter contato com o cinema de gênero, porque fui atrás de filmes que eram adaptações de Edgar Allan Poe e de Agatha Christie. Comecei a ver alguns clássicos e isso, automaticamente, já me puxou para o cinema noir. Quando eu estava pesquisando filmes dessa época, dos anos 1940 e 1950, ali no final, já em 1960, surge ‘Psicose’, que foi um filme que me marcou muito, pois me levou a querer ver mais coisas de Alfred Hitchcock. Talvez ele seja a principal referência para o cinema giallo. Porque está tudo ali. Desde a pulsão de morte, à própria sensualidade, o erotismo, a sexualidade muito forte. Todo o tratamento psicanalítico das tramas, também. Hitchcock é, talvez, a base para o que vem a ser o cinema giallo. E aí, de Hitchcock. fui conhecer Mario Bava, Dario Argento e, posteriormente, Brian De Palma, que é um cineasta que bebeu muito de giallo e de Hitchcock. Então, fui notando que as coisas iam se retroalimentando. Conforme o tempo foi passado, sempre foi um tipo de cinema que me interessou por causa desses elementos. Esse tratamento gráfico e estilizado da violência sempre me interessou. Por gosto mesmo, eu nunca curti violência gráfica realista no cinema. Quando comecei a fazer os filmes, fui descobrindo que essa artificialidade do cinema me interessava. O cinema enquanto farsa. Enquanto algo brega. Enquanto mentira, mesmo.
Quanto mais falso e farsesco, melhor, então.
Isso. Não me interessavam filmes naturalistas, realistas, dos quais comecei a me distanciar. Nos curtas que dirigia, ficava cada vez mais me aproximando dos filmes que trabalhavam essa artificialidade. O cinema dos anos 1960 e 1970, em especial o cinema giallo italiano, tem uma característica que me marcou muito e que chamou muito a minha atenção: o sangue, nesse cinema, é tinta guache. É um sangue vermelho vivo que não parece de maneira nenhuma com o sangue do corpo humano. Era um sangue que só existia no cinema. E aí eu entendi que isso tinha tudo a ver com o tipo de filme que eu queria fazer. Que era justamente isso, de negar um tratamento realista por acreditar que o cinema pode tudo. O cinema pode ir aonde a vida não pode ir. E aí passei alguns anos querendo fazer alguma coisa giallo, mas nunca vi uma ideia que me atraísse. Nunca surgia alguma coisa muito boa que me movesse a isso. De uns tempos pra cá, essa vontade se aprofundou justamente por mergulhar na filmografia de Brian De Palma. Vendo De Palma, dá pra você compreender melhor Htchcock, dá pra você compreender melhor o giallo. Ele sintetiza tudo muito bem. E ele tem um interesse muito particular pela imagem. É quase que um cineasta experimental. Porque ele está muito mais interessado com a imagem, com a mis-en- scène, do que com o roteiro ou qualquer outra preocupação que, geralmente, temos quando fazemos um filme. Inicialmente era isso. Eu queria fazer um filme tipo Brian De Palma, que fosse mesclando essas influências hitchcockianas, de Dario Argento e de Mario Bava. Eram os cineastas que eu mais gostava. E aí surgiu essa oportunidade com o trabalho de Nana, que já veio pronto. Ela já tinha composto as músicas do EP como músicas de giallo, influenciadas por trilhas de Enio Morricone e por Goblin, que é a banda que fez as músicas de vários filmes de Dario Argento. Essa proposta veio e eu abracei. Me pareceu uma oportunidade, inicialmente, de fazer um clipe com essa estética, mas, ao mesmo tempo, eu comecei a tentar enxergar que poderia ser uma coisa a mais. Não sei se seria um filme, mas seria uma coisa maior. Teria um escopo maior, uma duração maior, já que ela queria fazer um clipe para o EP inteiro, com as três músicas.
Enxergar em Salvador, na sua arquitetura e nos aspectos da cidade, as possibilidades de criação de uma atmosfera giallo, foi difícil? Como foi ter essa percepção da capital baiana como um local com essas características para o curta/clipe que ilustra o EP lançando por Nana Lacrima?
Vendo os filmes do giallo, comecei a tentar linkar a arquitetura deles com coisas daqui de Salvador, que é uma coisa minha já há um tempo. Costumo assistir a filmes europeus e perceber na arquitetura de países como Itália e Portugal coisas muito parecidas com o Centro aqui de Salvador, com o Pelourinho, com o Carmo. Eu sempre tenho impressões assim quando estou vendo algum filme desse tipo. De que tem ruas muito parecidas, de que poderia ser uma rua de Salvador aquela rua da Itália. Inicialmente, Nana queria gravar na Itália. Após conversarmos, veio a ideia de ser aqui em Salvador porque ela já estava vindo para cá. Eu levei essa ideia de aproveitarmos o Centro por causa dessa percepção pregressa de que tinha a ver, de que essa região de Salvador dialogava com essa paisagem da Itália dos anos 1960. E paralelo a isso, tem as minhas próprias vontades e desejos enquanto cineasta. Tenho me interessado muito por tentar retratar melhor Salvador nos filmes. Porque sempre foi uma coisa muito nula nos curtas que eu fazia. Eram curtas que pareciam que se passavam em qualquer lugar. Não tinham uma identidade muito fixa de onde é que se passavam. E eu, também, comecei a me interessar mais por paisagens noturnas, que é uma coisa que remete a outro tipo de cinema do qual eu gosto muito, que é o da Nova Hollywood. Aquela fase dos anos 1970 no cinema americano, thriller policial americano, muito noturno, muito sujo.
A partir da influência visual de quais outros filmes desse período essa junção de ideias entre você e Nana evoluiu?
Eu e Nana passamos um longo período trocando referências e conversando ideias antes de gravar. Lembro que passei pra “O Pássaro das Plumas de Cristal”, que tem muitos planos em ruas vazias. E ela tinha pensado a mesma coisa. Lembro que ela falou que havíamos pensado exatamente os mesmos planos do mesmo filme. E tem uma proximidade. Mas, ao mesmo tempo, vieram referências também desse cinema americano dos anos 1970. Lembro que eu queria que a noite fosse meio esverdeada como “Taxi Driver”, como “Caçador de Morte”, de Walter Hill. Um dos planos iniciais em “Claudio”, que é o plano no qual aparece pela primeira vez a noiva, é um zoom muito longo, saindo de um prédio. A câmera a encontra no meio da rua e vai dando um zoom. Aquilo ali é inspirado por “A Conversação”, do Coppola. São filmes que não têm exatamente a ver com giallo, mas estão nessa mesma estética da noite suja. E o cenário do Centro de Salvador proporciona isso até mais do que eu imaginava. Porque a gente foi discutindo locações e pesquisando imagens, e tudo mais, mas a gente não teve uma visita de locação prévia. Klaus (Hastenreiter, produtor) passou por alguns lugares de carro, anotou, pensou algumas possibilidades, mas eu não tinha ido. E esse filme/clipe, em especial, tinha essa particularidade de que a gente ia decupar na hora. Então, isso é diferente de todas as outras coisas que fiz em outros filmes. Tem tempo que eu não decupava as coisas assim na hora. Assim, o processo de gravar o filme era, também, de ir encontrando as locações conforme a gente gravava e descobrindo formas de filmá-las com base no que previamente queríamos. Por exemplo, a gente queria fazer esse plano influenciado por “A Conversação” saindo do terraço do Cine Glauber. Isso já estava pré-definido. Usar a escadaria ali da Barroquinha, também, era algo já pré-definido. Mas teve locações que a gente descobriu na hora, porque, também, tem o fator chuva que teve no dia em que estávamos gravando. Então, atrapalhou a locação que a gente tinha pensado. Enfim, teve muita coisa de improviso. Muita coisa de intuitivo, também, nessa escolha de locação.
Mesmo trazendo uma Salvador soturna e noturna, há imagens ensolaradas, também.
Sim. A ideia de filmar durante o dia era, também, para contrastar. Porque eu queria que o filme fosse muito noturno, mas, ao mesmo tempo, a gente tinha essas ideias de trabalhar um flashback. Então, esse flashback tinha que ser o mais distante possível das imagens que a gente estava fazendo, que seriam as imagens da narrativa principal, por assim dizer. Então, são imagens digitais que gravamos com câmera cybershot muito antiga, de qualidade muito vagabunda. E todas as imagens de dia, ensolaradas, uma outra Salvador. Muito distante daquela que havíamos filmado à noite. Mas, enfim, é isso. Acho que tentei encontrar essas semelhanças de arquitetura, porque Salvador acaba sendo, como a Itália, também muito barroca na sua arquitetura. E ao mesmo tempo tentar encontrar semelhanças com o tipo de filme que queríamos fazer.
Como foi a aproximação entre você e Nana? As músicas do EP foram compostas antes do filme? A ideia sempre foi um curta metragem unindo as imagens das três músicas?
Ela já tinha as músicas prontas. O EP sempre foi pensado como se fosse uma única música em três partes, mas ele vem separado em três músicas. Ela me mandou um arquivo com as três para eu ouvir diretamente. E é muito cinematográfico. A primeira música tem muito som diegético, muito folley, tem som de passos, de grito, da noite, sabe? Ouvindo aquilo, fui começando a imaginar coisas a partir do que esses sons me traziam, me provocavam. Não teve essa ideia, por exemplo, de traduzir exatamente o que as músicas estão falando. Por isso que era uma coisa que eu queria, inicialmente, que não tivesse legendas, por exemplo. Porque eu queria que fossem as imagens que trouxessem e que a música fosse um complemento para essas imagens, sabe? Então, a construção emocional viria de um outro lugar. Não viria do sentido do que está sendo dito. Ainda assim, tem semelhanças e pontos em comum entre as letras das músicas e o que a gente filmou. E aí começou a vir ideias e conversas com Nana sobre ideias que ela gostava, que ela não gostava, e acabou que eu fui rascunhando um roteiro que era, na verdade, um guia de imagens que poderíamos fazer e da história que a gente estava contando. Se eu não me engano, eram duas páginas só com ideias de perseguição, de flashback, quem eram esses personagens, de como seria a cena do carro, coisas assim. Foi um roteiro bem livre. E foi uma experiência interessante. Isso de fazer um filme em que a parte do áudio já vem pronta. Eu não pensei o áudio do filme. Então, ele já vem pronto e aí você tem essa tarefa de construir em cima.
E dirigir Marcus Curvelo, alguém cujo trabalho como diretor e ator já é tão notório. Como foi essa aproximação entre vocês para essa parceria?
Nós gravamos o filme/clipe em março de 2022. Em dezembro de 2021, eu tinha viajado para um festival no Rio Grande do Sul para representar a (produtora) Olho de Vidro em um filme que Klaus tinha dirigido. E Marcus também estava com um filme selecionado. Acabamos indo no mesmo voo e passamos muito tempo conversando lá. E foi se formando uma bela amizade e começamos a pensar em algo para fazermos juntos. Mas ainda não sabíamos o que seria. Quando eu estava, tempos depois, construindo o roteiro com Nana, tinha todo um background dos personagens que acabou não entrando no filme em si. Mas, na minha cabeça, esse cara que a noiva persegue, era um cineasta frustrado. Eu pensava que ele seria uma espécie de esquerdo-macho (risos). E aí começamos a brincar com isso, de pensar esse cineasta frustrado que está sendo perseguido e tudo mais. E lembrei de Curvelo. Pensei: “Caramba, Curvelo é perfeito porque ele tem essa energia, inclusive dos atores de giallo”. A gente estava falando agora sobre “O Pássaro das Plumas de Cristal”, do Argento. Eu acho que o protagonista desse filme lembra muito o Marcus Curvelo. Até fisicamente. O cabelo cacheado, e tudo mais. E ele tem essa cara de cara errado na hora errada, no lugar errado. E, pra mim, tinha tudo a ver. Porque giallo é isso, também. Geralmente, quem vai resolver o mistério é uma pessoa que não tem nada a ver com aquilo e que acaba sendo incluída ali. Nunca é a polícia que resolve. É a pessoa que não tinha nada a ver com a história e que está inclusa ali. E aí, pra mim, ele tinha cara disso. Falei com Nana, e ela me disse que já o conhecia, e que já tinha trabalhado com ele anteriormente. E ela achou incrível a ideia. Em seguida, fui falar com o pessoal da Olho de Vidro, todo mundo gostou, também. Acabamos fazendo o convite. Marcus topou imediatamente e foi muito bom. Porque ele é um cineasta de filmes majoritariamente de comédia. E em “Claudio”, ele faz um negócio sanguinolento, esquisito e com um suspense. E não tem diálogos. Então, era uma coisa muito de fisicalidade, mesmo. E ele levou super a sério, fez super bem. E o tempo todo estava Curvelo caindo, correndo, sangrando, se acabando todo (risos). E ele topou tudo muito bem. E não tinha problema em ir refazendo. Estava sempre bem interessado em fazer o melhor e ir repetindo. Foi uma experiência muito massa. Eu espero fazer mais filmes com ele. Foi muito bom e surpreendente para mim o quanto que ele combinou com a proposta que a gente tinha. No final, acabei brincando com ele dizendo que, agora, era eu quem tinha que atuar em alguma coisa dele.
Nesse ano, o tema da Mostra de Cinema de Tiradentes é “Cinema Mutirão”, algo que reflete muito o tipo de cinema que você já vem fazendo há dez anos em Salvador. Ter esse trabalho selecionado para a Mostra se torna algo ainda mais simbólico.
Esse tema da Mostra Tiradentes desse ano é muito interessante. Porque quando a gente pensa o cinema brasileiro dos últimos anos, principalmente de curta metragem, depois de tantos golpes contra a Cultura e contra o próprio cinema e aos financiamentos da Cultura, a gente sabe que durante os últimos anos tiveram que se organizar vários tipos de cinema de mutirão pra continuar se fazendo filmes. O próximo filme que a Olho de Vidro vai lançar, que já está gravado, ele foi escrito durante a pandemia considerando que seria uma equipe minúscula, feito sem dinheiro, só com dois personagens, sabe? Tipo, filme de guerrilha, mesmo. E eu acho que, nos últimos anos, da quarentena pra cá, cresceu ainda mais o número de filmes de guerrilha, filmes caseiros, filmes feitos com amigos. Então, eu acho interessante esse conceito vir agora. Essa ideia de coletividade que faz o cinema. E “Claudio” é isso. Porque tínhamos um orçamento pequeno. E, por conta disso, a gente também tinha uma equipe pequena. E uma equipe também na qual não havia funções engessadas. Todo mundo meio que participava. A própria Nana produz o filme. E ela foi atrás, colocando a mão na massa em muita coisa. Ela tem uma participação criativa e prática, mesmo, do set, muito grande. Lembrei agora que essa foi até uma questão comigo. Porque quando ela veio me chamar pra fazer o clipe e a gente estava tendo ideias, eu estava muito receoso porque nunca havia trabalhado com ela. Eu não sabia como era. E aí eu fui explicar que a equipe teria que ser pequena, e as condições para a gente trabalhar e tudo mais. E ela disse: “Não, fique tranquilo que já estou muito acostumada com a guerrilha.” E na prática foi isso. Ela já estava muito acostumada com guerrilha e correu tudo bem. E, ao mesmo tempo, eu achei interessante que sejam filmes experimentais.
A mostra Panorama, de Tiradentes, traz trabalhos assim, nesse perfil experimental, de fato.
Isso. O próprio “Claudio” eu acho interessante inscrevê-lo como filme experimental porque a tentativa foi justamente essa de borrar os limites entre o que seria vídeo clipe e curta metragem, mas, também, experimentar até onde poderíamos ir em termos estéticos. Eu gosto de falar que ele é um filme que nasce muito na montagem, também. A estrutura dele toda vem muito da montagem. É como eu falei: é um filme que foi decupado na hora. Ele não tinha um roteiro específico e muito detalhado. Não tinha storyboard. Ele não tinha nada. Ele nasceu na montagem. Então, eu e Nana fomos descobrindo muita coisa durante o período de montagem. Eu montava, mandava pra ela, a gente discutia. Eu montava, mandava pra Olho de Vidro, a gente discutia todo mundo. Foi um processo longo. Então, o filme entra nesse caráter experimental justamente por causa disso. Ele foi um filme descoberto na montagem, sabe? E aí é sempre massa, também, a gente ver essa seleção pra Tiradentes. Primeiro porque é sempre uma presença muito boa em um dos grandes festivais do país. Sempre foi uma vontade muito grande minha de participar. É a primeira vez que eu estou participando com um filme dirigido por mim. Anteriormente, a Olho de Vidro já tinha participado com “Onze Minutos”, que Hilda dirigiu e eu montei. Mas com um filme dirigido por mim, é a primeira vez. E é massa estar nessa leva. É massa estar no mesmo ano em que Ary e Glenda estão sendo homenageados. Eu acho que é um momento importante do cinema baiano. E, ao mesmo tempo, é interessante ver que o cinema experimental tem espaço, sabe? Que atualmente, por mais que eu seja um cineasta de filmes de ficção, e é uma coisa que eu quero fazer sempre, eu me sinto uma pessoa que tem experimentado cada vez mais, sabe? Cada vez mais assim. Eu não sei até onde eu vou, mas nas coisas que tenho feito e nas que ainda vou fazer, eu tenho sentido essa necessidade de ir esticando a corda da linguagem pra ver até onde eu consigo ir. Então, é massa estar nesse lugar – e nessa mostra especificamente – esse ano.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.