texto por Fernando Yokota
Há uma linha de pensamento que vê na ascenção do neofascismo uma janela histórica para que manifestacoes de resistência, em especial nas artes, surjam em meio à terra arrasada. À luz do desastre das eleições estadunidenses de 2016, vozes influentes afirmaram (Amanda Palmer) ou indiretamente sugeriram (Henry Rollins (2)): que a ascenção de alguém como Donald Trump seria bom para o punk rock. Ainda que o preço a ser pago seja injustificável, artistas como o Soul Glo e as Petrol Girls provaram em 2022 que, de fato, em meio ao esterco eventualmente nasce a flor-de-lótus.
“Diaspora Problems” (2022), o último lançamento do Soul Glo, é reflexo da decadência da Filadélfia, cidade de origem do grupo, e da pobreza rampante oriunda das seguidas crises econômicas e da desigualdade social crônica. O álbum é uma metralhadora verborrágica inflamada de raiva que descarrega a desilusão de uma geração diariamente desencorajada a almejar uma vida melhor pela realidade ao som de algo que em momentos remete ao caos sonicamente insolúvel de bandas como Dillinger Escape Plan e Code Orange.
Do outro lado do Atlântico, as Petrol Girls, grupo baseado na Inglaterra, têm em “Baby” (2022) seu terceiro full length. Seu lançamento coincidiu com a decisão da suprema corte dos Estados Unidos que reverteu o entendimento de que a constituição do país garantiria a liberdade individual das mulheres para procurar a interrupção da gravidez, assim fosse o seu desejo, resultado da reinterpretação do caso Roe v. Wade.
Incansáveis militantes feministas, o grupo encabeçado pela vocalista Ren Aldridge dispensa alegorias e vai direto ao ponto falando sobre o direito ao controle do próprio corpo em “Baby, I Had An Abortion” (“baby I had an abortion, and I’m not sorry”) ou a violência policial em “Violent By Design” (“You gotta lotta trust in thugs in uniform, So who is it that you think that they protect you from?”), versos servidos crus, mas com acompanhamentos que vão da guitarra staccato à la Andy Gill em “Preachers” e “Unsettle” aos timbres interessantes em “One Or The Other ou Clown” (esta última fazendo dupla com uma bateria destruidora).
Do gutural à la George Corpsegrinder em “Fucked Up If True” ao hip hop de “Driponomics”, a primeira alegoria que vem à mente para descrever “Diaspora Problems”, do Soul Glo, é a barragem de uma represa de descontentamento se rompendo por meio do grito incontido do vocalista Pierce Jordan.
Nutridos não só pelo neofascismo do partido republicano, mas também pelo delírio político do senso comum estadunidense que assume o status quo do partido democrata como o ideário da esquerda, “Diaspora Problems” é um condensador de raiva de uma geração que é acusada do crime hediondo de serem “flocos de neve comedores de tofu”. Seus acusadores, a tropa de choque do status quo e não raramente em situação tão famélica quanto a dos acusados, vão de pedra a vidraça e são estilhaçados durante os quase quarenta minutos do álbum. Do racismo estrutural no seio da polícia à pretensa esquerda bancada pelo establishment, ninguem sai ileso
Sonicamente falando, “Diaspora Problems” triunfa no quesito em que a maioria falha ao ter êxito em empacotar a raiva e o senso de urgência (como a gritaria incontida em “Thumbsucker” e “Coming Correct Is Cheaper”) em faixas que conseguem ser caóticas e dinâmicas (havendo até lugar para naipe de metais como em “Spitirual Level of Gang Shit”) ao mesmo tempo, mostrando que um esporro bem planejado pode se tornar uma obra de arte.
Tratar álbuns como “Baby” e “Diaspora Problems” como simples produtos de cultura pop é subestimar seu significado e ignorar o fato de que são representantes de uma geração social, econômica e politicamente exausta e a quem o belo, a poesia e a metáfora são luxos indisponíveis, restando apenas o grito primal da aspereza da literalidade. Mas que o ouvinte não se engane: ambos os álbuns são pinturas com traços grossos e agressivos mas ao mesmo tempo são cheios de detalhes e rico no acabamento, como se Hieronymus Bosch e arte rupestre fossem arremessadas num liquidificador.
O establishment, cronicamente penso à direita pela escoliose política aliado à “commoditização” do ego advinda da lógica dos likes do neonarcisismo capitalista pós-redes sociais, não possibilita que as pessoas com um mínimo de senso crítico tomem parte no teatro do falso maniqueísmo político.
O senso de urgência das performances das bandas impossibilita qualquer tentativa de se fazer uma escuta passiva de “Diaspora Problems” ou de “Baby”: ou você se enfurece junto ou você é parte do problema. Para além da injustiça contra mulheres, negros, imigrantes, a comunidade LGBTQIA+, “Baby” e “Diaspora Problems” são o retrato de uma geração inteira que já não tem nada a perder ou a ganhar: os gritos não são apenas de raiva mas um último apelo de jovens que lutam contra o canto da sereia do niilismo.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: instagram.com/fernandoyokota/