resenhas por Leonardo Tissot
2022 (e o Jair) já foram embora. Mas alguns lançamentos do ano passado ainda reverberam neste 2023 — dois deles dedicados aos fãs da nona arte: os livros “HQ: uma pequena história dos quadrinhos para uso das novas gerações” (Edições Sesc e Editora Veneta), de Rogério de Campos, e “Balões de Pensamento 2: Ideias que vêm dos quadrinhos” (Balão Editorial), de Érico Assis.
O primeiro propõe uma série de “origens” dos quadrinhos, que partem desde os primórdios com os bophas (sacerdotes contadores de histórias que circulavam pela Índia desde o Século V a.C.), passando pelas técnicas pioneiras de impressão e produção de papel dos chineses, até as criações do professor suíço Rodolphe Töpffer.
Um dos muitos pontos interessantes levantados pelo jornalista, tradutor e editor Rogério de Campos nas páginas de “HQ” diz respeito às adaptações cinematográficas de quadrinhos, que começaram muito antes de Marlon Brando enviar o bebê Kal-El para a Terra em “Superman — O Filme”, de 1978. Aliás, de acordo com o autor, o próprio cinema surge a partir das HQs.
“Vários recursos da linguagem cinematográfica do século XX, como os closes, a câmera subjetiva e as variações de enquadramento já eram usados nos quadrinhos do século XIX”, escreve. A primeira adaptação de uma HQ para o cinema propriamente dita, no entanto, é “L’Arrouser Arrosé”, filmada em Lyon em 1895 pelos irmãos Lumiére. O filme é inspirado nos quadrinhos alemães criados quase uma década antes por Herman Vogel.
O Brasil também tem papel importante na história das HQs. O primeiro quadrinho publicado no país foi “O namoro, quadros ao vivo, por S… o Cio”, em 1855. De autoria de Sébastien Auguste Sisson, francês que vivia há três anos no Brasil, a obra marca a estreia do formato por aqui.
Outra figura central desses primeiros anos é Angelo Agostini, que após se dedicar a publicações jornalísticas em quadrinhos, lança “As Aventuras de Zé Caipora” em 1864, dando início à HQ infanto-juvenil — antes mesmo que os americanos dominassem o gênero (e o mercado nacional). Aliás, esse domínio só viria bem mais adiante, quando nomes como Adolfo Aizen, Victor Civita e Roberto Marinho formatariam os quadrinhos como negócio no país, afirma Campos. “Três americanófilos, cada um à sua maneira”, provoca o autor.
A resistência naturalmente veio, e um dos exemplos mais curiosos é o da Cooperativa Editora e de Trabalho de Porto Alegre (CETPA), patrocinada pelo então governador gaúcho Leonel Brizola, nos anos 1960. A organização contava com nomes do quilate de Renato Canini e Flávio Colin, que tinham a missão de criar quadrinhos nacionalistas, em contraponto à dominante produção dos Estados Unidos.
Campos ainda dedica muitas linhas aos mercados argentino, italiano, japonês e francês, sempre com curiosidade enciclopédica e concisão jornalística para abordar cada assunto — os textos são entrelaçados por reproduções de quadrinhos como “Berlim”, “Kent State” e “Encruzilhada”, para ficar em três exemplos.
Depois de 160 páginas que passam voando, “HQ” chega ao fim sem jamais deixar de lado o entretenimento, mas também dá uma senhora aula sobre as histórias em (e a história dos) quadrinhos.
Já em “Balões de Pensamento 2”, por sua vez, Érico Assis dá sequência à republicação de artigos originalmente apresentados em seu blog no site da editora Companhia das Letras. Desta vez, o período abordado varia entre 2013 e 2015.
Ainda que não conte com material inédito — com a exceção da arte de Alexandre S. Lourenço (de “Robôs Gigantes”), que ilustra as páginas de “Balões” —, o livro é recomendadíssimo por retratar em textos ágeis as mudanças pelas quais os quadrinhos (obras, artistas, premiações, mercado) vêm passando nos últimos anos. Cada artigo é comentado ao final pelo próprio autor, com atualizações a respeito do tema abordado, sempre que necessário.
Entre os destaques das quase 300 páginas de “Balões 2” estão artigos mais pessoais, como as vivências de Assis com a internet — desde as jurássicas conexões discadas até o pioneirismo dos fóruns do UOL no debate sobre quadrinhos, e ainda os caminhos digitais que o levaram ao Omelete e à carreira como jornalista e tradutor. Também chamam a atenção as análises sobre o mercado e o capítulo final do livro, com suas propostas para o quadrinho brasileiro.
Velhas discussões ressurgem com bem-vindas pitadas de sarcasmo: questões como “quadrinho é literatura?”, os tratados a respeito da (ir)relevância de uma mídia historicamente considerada “menor” e as reflexões sobre o quanto as HQs “já não são só coisa de criança” não foram deixadas de lado.
“Dizer que você lia (ou lê) gibis, principalmente se hoje você contribui com uma arte mais séria — todas as outras —, ainda é uma coisa que sai dos lábios com um tom de transgressão, de audácia, de desafio aos baluartes intelectuais. É como um chef dizer que se inspirou no McDonald’s”, ironiza.
Tanto para quem já leu o primeiro “Balões” quanto para quem nunca ouviu falar em Assis, o livro é uma oportunidade e tanto de conhecer mais de perto o mundo dos quadrinhos de forma aprofundada e, ao mesmo tempo, leve e divertida — aliás, como as melhores HQs costumam ser.
– Leonardo Tissot (www.leonardotissot.com) é jornalista e produtor de conteúdo. Leia outros textos de Leonardo no Scream & Yell.