entrevista por Leonardo Vinhas
Turba Violenta é um quinteto paulista que já entrega suas intenções sonoras no próprio nome. Essa banda de “punk rock contra o Coiso”, conforme sua própria definição, traz raiva brutal em letra e música, sem medo de ferir sensibilidades ou de irritar esse povo que acha que democracia é ficar em frente de quartel do Exército pedindo “intervenção militar pela liberdade de expressão”.
Vejamos, por exemplo, os versos de “Vidraça de Banco”: “Vidraça de banco vale mais que a tua vida / Não tem ninguém na rua porque / Ninguém quer ser bucha de canhão / Tomar tiro no olho por delito de opinião / Manda quem pode, obedece quem não tem opção”. Ou então “Guilhotina”: “Falta guilhotina na história brasileira / A corja Orleans e Bragança devia ter sido a primeira / Cortem as cabeças da família imperial / (…) Guilhotina, guilhotina, guilhotina / Pra ensinar que é do povo que o poder emana / Ninguém nunca conquistou nada com flauta e ciranda”.
Tem mais, tem mais. Em “Meu Sonho É Ser Quintal”, mandam: “O meu sonho é ser quintal / Meu projeto de país é lamber bolas de trumpista / O meu sonho é que a bandeira brasileira / Fosse azul branca e vermelha / Mas vermelho é comunista”. Tem uma canção anti-Temer chamada “Rodapé da História”, tem a preciosa “Cabeça Vazia Oficina do Olavo” e o clássico instantâneo “O Curioso Caso do Maconheiro Bolsonarista”. E a faixa de abertura se chama “Adélio Bispo”.
Essas e outras pérolas sujas estão em “Mais Rancor, Por Favor”, álbum de estreia do disco, que foi lançado de forma independente pela banda em 2022. A virulência não é sinônimo de tosqueira: o disco tem uma sonoridade que consegue soar cristalina sem qualquer perda de agressividade, mérito do produtor Decapitator Mazzaropi. É punk rock hardcore, sim; não é nada limpinho, mas soa muito, muito bem.
É natural: a Turba nasceu em 2019, em pleno desgoverno Bolsonaro, e seus integrantes não eram o tipo de pessoas que acreditam que a política chicagante do Paulo Guedes era algo merecedor de estátua. Mas no meio do caminho tinha uma pandemia, e as razões para a fúria, o desconforto e a náusea infelizmente só aumentaram.
O Scream & Yell conversou por e-mail com o vocalista Daniel 286, também integrante d’Os Almeida, pra conhecer a gênese dessa pedrada na cara do Bolsonarismo, e o papo, excelente, foi muito além da música, obviamente.
Dois anos para registrar 17 minutos de música. Explica pra gente como um disco punk veloz virou um mini-“Chinese Democracy” do interior paulista, por favor.
Hahahahaha, o problema foi a Covid e a distância. Eu tô em Campinas, e o resto dos caras em São Paulo, então não nos encontramos na pandemia. Quando a situação estava melhor lá, piorava aqui e vice-versa, e eu fiquei muito na nóia de não espalhar vírus, isolei 100%, não lidei muito bem. Essas músicas são do final de 2019, começo de 20. Era para termos gravado em abril de 2020, estava agendado e tudo, o negócio estourou em março, cancelamos. No fim, só conseguimos gravar agora, e com um único ensaio antes da gravação, depois de dois anos só nos vendo virtualmente. E a gravação, mixagem e tal também demorou, um porque somos enrolados e dois porque foi tudo na camaradagem. Nosso amigo Paulera, que produziu, gravou, mixou e masterizou o disco (assinando como Decapitator Mazzaropi) é beatmaker e tem um selo de hip-hop, o Jardim do Flow, e está lançando bastante coisa massa lá, então fomos fazendo conforme dava pra bater as agendas. Demorou, mas ficou legal, valeu o registro.
Muita gente adora usar a palavra “revolução” em postagens de redes sociais, mas se esquecem que uma revolução social é um troço feio, violento, onde pessoas morrem, destruição acontece. “Ninguém nunca conquistou nada com flauta e ciranda” é um recado direto pra essa galera?
Acho que é mais autocrítica do que um recado. Tem um pessoal que se identifica com a ideia de esquerda cirandeira e se ofende com esse refrão, mas ali tem outra camada que não fica tão explícita. O que nós estamos fazendo aqui é música, bicho. Não é com flauta porque ô instrumentinho irritante, mas nós somos uma banda, o que a gente faz é flauta e ciranda, hahaha. Então tem esse lado de autocrítica. Dito isso, gosto dessa tua interpretação também. Essa letra é sobre momentos da história brasileira que deveriam ter sido de ruptura, mas não foram. Agora estamos passando por outro, com o fim do governo Bolsonaro. Não pode haver anistia. As forças de segurança precisam ser refundadas. As forças armadas precisam ser refundadas. Precisamos de justiça de transição. Se não fizermos agora o que não foi feito na redemocratização, da próxima vez não vai demorar 30 anos pra eles voltarem. Mas como fazer isso pacificamente? Como fazer sem que haja uma reação violenta por parte da extrema direita, que está organizada internacionalmente? Não sei.
O nome da banda já não deixava dúvida, e o título do disco bate mais forte na tecla do rancor e da agressividade. Por outro lado, rancor e agressividade não faltam às hostes da extrema direita que a banda crítica. Imagino que vocês estejam cientes da aparente contradição, então queria perguntar se vocês acham que truculência se combate com truculência.
Não. Nós não estamos pregando violência, estamos retratando a violência. Estamos retratando o neofascismo brasileiro e fascismo é um negócio violento, truculento e horrível. O bolsonarismo é violento e horrível, é coisa de gente horrível. Não estamos pregando truculência, mas, ao mesmo tempo, a gente não pode conciliar com esses caras. Tem que ter rancor sim. Estamos cientes da contradição e a gente tenta deixar as letras da Turba nesse limite, mesmo. É intencional. E tem também a questão do som. Punk rock/hardcore é um som historicamente agressivo, a gente só está dialogando com as convenções do gênero.
Mesmo sem ter feito muitos shows como banda, imagino que os integrantes do Turba Violenta ainda se mantenham presentes em shows e afins. Como anda o cenário punk, musical e tematicamente? Tá comportado, reacionário, mobilizado, efervescente, insignificante…?
Acho que está como sempre esteve. Muita banda boa que infelizmente não alcança tanta gente. Galera no corre. A diferença é que agora a gente sabe quem é reaça, quem sempre foi, quem se escondia atrás do “contra tudo e contra todos”, mas no fundo era facho. Mas acho que isso é em todo lugar, não é exclusividade da “cena”. Pelo menos as coisas tão mais às claras.
O risco é um dos elementos originais do rock ‘n’ roll. Com um disco desses, vocês se expõem bastante, o risco é presente, já que hoje em dia precisa de muito pouco para tomar uma porrada ou tiro. Esse risco preocupa vocês de algum modo?
Preocupar, preocupa. Estaria mentindo se dissesse que não. Sinal dos tempos, né? Consequência de colocar a milícia no poder. Consequência de colocar a extrema direita no poder, de colocar os milicos no poder, mais uma vez. Consequência de tirarem a presidente do cargo porque sim, e entregarem o país para o mercado. O que eles querem é que a gente tenha medo e se autocensure, mas nós temos mais indignação do que juízo.
Que outros discos vocês escutaram recentemente que, no entender de vocês, trazem a mesma confrontação direta? O último do Ratos me parece a escolha mais óbvia, mas quem mais anda pulando com os dois pés no peito do familifacismo nacional?
O último dos Ratos de Porão, “Necropolítica”, e o último do Mukeka di Rato, “Boiada Suicida”. Fodidos, os dois. Pra mim, não por acaso, as maiores bandas de punk e hardcore nacionais em atividade. Teve o “Ponto Cego”, do Dead Fish, de 2019, com letras muito boas sobre o golpe. Tem um split massa do Bocapodre, aqui de Campinas, com o Jacau, da Bahia, que depois também lançou um 7 polegadas chamado “Tropical Nazismo”. Recomendo a “Admirável Gado Burro”, do Bocapodre, desse split. Tem um disco foda do rapper Mema Fita que saiu recentemente, também, chama “Fase Vermelha”. O Paulera, que produziu nosso disco (no hip-hop ele assina como Noturno84), mixou e masterizou todas as faixas, e fez o beat da “Defenda o SUS”. A capa é maravilhosa, com o Bolsonaro andando de jet ski com a morte na garupa, num mar vermelho-sangue. Esses são todos discos temáticos, como o nosso. E tem um monte de banda massa: Surra, Manger Cadavre?, Porno Massacre, Vida Ruim, Leptospirose, Facada, que já era Facada antes da facada. Aqui em Campinas tem o Bong Brigade, que tem uma música que se chama “O Mundo É Um Lugar Melhor Sem Você”, que é praticamente o “We Are The World” antibolsonarista, e tem o Kill Baidek, que lançou um dos meus discos preferidos desse ano, “Meritocapetocracia”.
A velocidade e a brevidade são elementos inescapáveis ao som da Turba. Ok, isso faz parte da herança de boa parte do punk, mas considerando o mundo que vivemos, não custa perguntar: tem a ver também com o fato de as pessoas não terem saco para nada que não seja breve e direto?
Cara, pro tipo de som que a gente faz, 9 músicas em 17 minutos não é um disco curto, não. “Maconheiro” é longa, “Guilhotina” é super longa. O certo era ela ter uma estrofe a menos, na real, mas nós não quisemos cortar a letra. Inclusive tô querendo aumentar ela pra também cortar as cabeças dos bilionários, hahaha.
Leonardo Vinhas é jornalista, escritor e produtor cultural. Colabora com o Scream & Yell desde 2000, onde também assina a coluna Conexão Latina. É também colaborador eventual dos sites Music Non Stop (Brasil) e Zona de Obras (Espanha).