entrevista por Luiz Mazetto
Apesar de ter sido lançado no final de outubro, o segundo álbum do supergrupo de thrash metal/hardcore Dead Cross, intitulado simplesmente “II” (Ipecac Records), já estava na minha lista de melhores lançamentos de 2022 desde o meio do ano, em julho, quando o álbum foi anunciado juntamente com o poderoso single “Reign of Terror”. Isso porque além de contar com uma formação impressionante, que traz Mike Patton (Faith No More, Mr Bungle, Tomahawk, Fantômas) nos vocais, Dave Lombardo (Slayer, Testament, Fantômas, Mr Bungle) na bateria, Justin Pearson (Retox, The Locust, Head Wound City) no baixo e Michael Crain (Retox, Cunts) na guitarra, a banda já tinha me conquistado lá em 2017 com seu primeiro álbum autointitulado. Ou seja, era garantia de coisa boa.
Mas se no primeiro trabalho, a banda da Califórnia, nos EUA, tinha jogado de forma talvez um pouco mais “segura”, com um som mais direto e calcado no crossover entre thrash metal e hardcore que seus integrantes já conhecem tão bem, o segundo disco traz uma banda mais aberta a experimentações, o que fica claro logo na abertura com a estranha “Love Without Love”, e também em melodias mais peculiares, na adição mais do que bem-vinda de Pearson como segundo vocalista, e em linhas de bateria que mostram toda a versatilidade e genialidade de Lombardo atrás de um kit. No entanto, isso não quer dizer que o disco não é tão pesado quanto o primeiro. Na verdade é até mais, só que aqui há uma busca para ir além do que já tinha sido feito na estreia.
Na entrevista abaixo, o gente finíssima guitarrista Michael Crain (que também toca no Retox e no Cunts) fala sobre a importância do novo disco do Dead Cross em sua vida, como foi gravar o álbum logo após se recuperar de um agressivo tratamento contra o câncer, que, segundo o próprio, o deixou muito perto da morte, revela como foi trabalhar novamente com o produtor Ross Robinson (Sepultura, At the Drive In, Korn), conta quais discos e bandas mudaram a sua vida e revela que, sim, já tocou Slayer com Dave Lombardo nos ensaios do Dead Cross, e muito mais. Confira abaixo!
No press release, você diz que não consegue nem começar a colocar em palavras a importância desse álbum para você. Pensa que é o disco mais importante que já lançou em sua carreira?
Acho que sim, se eu pensar sobre isso. Provavelmente é sim.
Quando você descobriu pela primeira vez que tinha câncer, em 2019, já tinha escrito alguma música para esse disco novo? Ou todas vieram depois do diagnóstico?
Não, nós tínhamos escrito algumas das músicas em 2018, já tínhamos começado a trabalhar em material novo. Mas a maioria do restante do material veio de riffs ou partes que eu tinha guardado. E todo o trabalho final e real veio no estúdio, depois de eu ter feito meu tratamento para o câncer.
E como você costuma trabalhar com o Dead Cross? Você cria os riffs e as músicas sozinho e depois leva as ideias para o Justin e o Dave? Ou vocês se juntam em uma sala ou estúdio para pensar e avançar com as músicas?
Se pudermos todos nos encontrarmos, então fazemos isso. Mas normalmente eu levo riffs para os outros caras. Ou já fiz sessões apenas com o Dave. Também já fizemos sessões comigo, o Justin e o Dave. Então não há uma maneira definida para fazermos as coisas. Mas como guitarrista estou sempre criando riffs. E acho que qualquer tipo de música com um som orientado por riffs, como o metal em especial, virá a partir dos riffs do guitarrista – se é que isso faz sentido.
Você já estava acostumado a tocar com o Justin antes, mas como foi para você começar a tocar com o Dave Lombardo, que é uma lenda da bateria para o metal e o hardcore?
Ah sim, isso definitivamente… A primeira vez que toquei com o Dave foi no estúdio do Ross (Robinson) e foi para um projeto de uma demo para outra pessoa, e eu lembro de ficar me beliscando o tempo todo, do tipo “Puta que pariu, puta que pariu, você finalmente está tocando com o Dave Lombardo”. Porque obviamente cresci escutando Slayer e o estilo deles é uma grande influência na maneira como eu toco, entre muitas outras. Mas quando finalmente comecei a tocar com o Dave, foi algo que pareceu muito natural e fácil, no sentido que me liguei a ele muito rapidamente, pude me conectar com ele. Porque já toquei com muita gente na minha vida, com muitos bateristas. E normalmente você consegue dizer logo de cara se você tem química com alguém, ou se vocês estão na mesma página – pelo menos eu consigo. E com o Dave foi realmente muito simples.
É claro que o Dave é mais conhecido por seu trabalho com o Slayer e o Testament e outras bandas de metal, mas ele é um músico muito versátil e sempre tocou em projetos bem diferentes, como o próprio Fantômas e, mais recentemente, o Mr. Bungle, ambos com o Mike Patton. Por isso, queria saber se tocar com um baterista tão versátil como o Dave abriu possibilidades para você enquanto você estava compondo e pensando em novas ideias para as músicas?
Com certeza. Ele certamente não fica preso em um tipo de som específico, ele possui um ouvido realmente impressionante. Também temos de lembrar que o Ross Robinson tem uma grande influência nessas sessões de composição, e ter um grande produtor faz toda a diferença do mundo.
Vocês já tinham gravado com o Ross no primeiro álbum do Dead Cross e agora vocês trouxeram de volta os artistas responsáveis pela capa. Essa foi uma ideia no sentido de ter o ambiente mais familiar possível, ainda mais em circunstâncias tão desafiadoras?
Sim. Sobre a arte, os artistas criam, os músicos criam. Acho que o Erick, que fez a arte do disco, já estava trabalhando em ideias e as enviou para o Justin, que então as enviou para nós. Não sei se foi algo necessariamente planejado, foi algo que apenas aconteceu. Foi algo como “Ah é, isso é totalmente perfeito. Está totalmente alinhado com o que a gente queria”. Quer dizer, é a arte dele nos dois discos, então faz sentido que elas tenham o mesmo estilo.
Em uma entrevista recente para a Rolling Stone, o Mike Patton falou sobre a banda ser uma “aventura musical” e algo que o faz “sorrir bastante”. Você concorda com isso? Olhando de fora, sinto que há uma grande liberdade para testar coisas diferentes, especialmente neste disco novo, em que há músicas com mais experimentações e mais melodia, e vocês também tem dois vocais em muitas faixas…
É, realmente não há uma maneira definida de fazer as coisas (na banda). Se algo soa bem, então nós exploramos isso. Mas com o Dead Cross nós definitivamente não estamos querendo nos prender a um som específico. Nós nos encaixamos em um som específico, mas apenas porque somos as mesmas pessoas tocando essa música, são as mesmas mãos tocando os mesmos instrumentos a partir dos mesmos cérebros e das mesmas emoções.
Nesta mesma entrevista, Patton afirmou que quando ficou sabendo sobre o seu diagnóstico, pensou que vocês talvez “guardassem” o disco em uma gaveta por algum tempo, mas que você foi quem disse “Não, eu preciso fazer esse disco, ele vai me curar, vai me fazer me sentir melhor, vai me curar de alguma maneira”. As pessoas costumam falar sobre o poder da música nas nossas vidas, e você e esse disco são um exemplo real disso. Por isso, queria saber como você vê esse disco e esse processo na sua vida.
Bom, eis o que aconteceu. Vamos ver, acho que em 2018 nós fizemos a turnê europeia. Depois que voltamos dessa turnê, eu obviamente comecei a escrever material novo, eu e o Justin e o Dave já tínhamos algumas músicas em que estávamos trabalhando. E a minha outra banda, Cunts, que também está na Ipecac, também tinha começado a compor material novo. Nós queríamos finalizar as músicas para gravar e então fizemos isso. Isso foi em 2018, então nós fizemos isso no início de 2019. E foi também no começo de 2019 que percebi um caroço na minha garganta; não era algo que doía ou me incomodava, mas definitivamente foi um motivo de preocupação. Isso foi cerca de um mês antes de começar a valer o novo plano de saúde que eu tinha acabado de fazer, um bom plano de saúde. Então eu fui e fiz uma checagem e, em um primeiro momento, os médicos não acharam que era nada sério, mas eles disseram “Bom, você tem o seguro de saúde”… Aliás, uma observação: imagino que deve ser muito entediante para você porque tudo nos EUA é tão ligado ao capitalismo, você precisa pagar para ficar saudável aqui, o que é algo revoltante. Mas ok, vou deixar isso de lado por enquanto (risos). Então removi o caroço, isso deve ter sido por volta de abril. Enquanto isso, nós estávamos mixando e masterizando o disco do Cunts, estávamos cuidado disso. Ao mesmo tempo, talvez o Mr. Bungle estivesse gravando, não me lembro exatamente – talvez tenha sido depois do meu tratamento. De qualquer forma, fiz uma cirurgia para retirar o caroço. Ah é, lembrei, foi um pouco depois da cirurgia que fizemos a masterização do disco do Cunts. E então os médicos realizaram uma biópsia apropriada e me disseram “Ei, temos más notícias. Isso é um tumor e você tem câncer”. Então o disco do Cunts estava no processo de fabricação para ser lançado e eu iniciei o tratamento contra o câncer no final de setembro de 2019, que durou até o final de novembro. No final de novembro, eu estava muito doente. O meu tratamento em particular foi muito, muito pesado, realmente ruim. Fiquei muito perto de morrer por causa dos tratamentos, eles me atingiram em cheio. Mas em algum lugar estendi a mão, falei com o Greg (Ackerman) da Ipecac, nós somos amigos, costumamos nos falar. Ou talvez tenha falado com os caras da banda primeiro, Justin, Dave e Mike, tipo “eu amo vocês, caso aconteça algo comigo” e falei para agendarmos sessões no estúdio agora. E eles ficaram “Cara, você tem certeza?” e eu disse “Sim, eu preciso fazer isso, vamos fazer isso”. E eu falei com o Greg e ele também perguntou “Cara, você tem certeza?” e eu disse “Eu nunca estive certo sobre algo na minha vida. Ou você se ocupa morrendo ou se ocupa vivendo.” Então eles agendaram sessões no estúdio. Eu tinha acabado de finalizar o tratamento no final de novembro e nós começamos a gravar no estúdio em dezembro. Eu estava tão doente e com tanta dor que era até difícil ficar de pé em alguns momentos, mas era algo que eu precisava fazer. E me senti muito bem fazendo isso, poder estar de volta no estúdio com os caras e poder dar vida para essas músicas. Foi uma experiência insana e catártica. Isso foi em dezembro de 2019, as sessões de gravação acabaram se estendendo até janeiro de 2020. Nós terminamos e logo em seguida o Cunts saiu em turnê, abrindo para o Melvins.
Então você saiu em turnê logo depois do tratamento? Isso é incrível.
É. O Buzz (vocalista e guitarrista do Melvins) perguntou: “Você tem certeza? Você está saudável para fazer isso?” e era a mesma ideia – “Essas são as coisas que eu amo e que me fazem bem”. Então caímos na estrada com o Melvins, isso foi em fevereiro. Depois voltamos para casa. O Justin e eu tínhamos um projeto de gravação com o Nick Zinner (Yeah Yeah Yeahs), Greg Fox (Liturgy) e a Lisa Mongoa, era um projeto de thrash metal – isso foi em março. Então eu literalmente não parei de me mover. E enquanto estávamos fazendo essa sessão de gravação a pandemia chegou, bum! (risos) Foi quando tudo parou por um tempo. Então essa é a linha do tempo.
Enquanto escutava o disco, pensei em como todas as músicas se conectam bem, em como tudo é intenso, cru e expansivo, mas também há uma dinâmica incrível entre vocês. Pensa que tudo isso pelo que vocês passaram os deixou mais próximos?
Com certeza. Definitivamente enquanto estávamos no estúdio, essa foi realmente uma experiência de conexão. Qualquer disco, especialmente quando você trabalha com o Ross, vai ser uma experiência de conexão, de vínculo. O Ross tem uma maneira muito particular de se envolver muito, seja na parte de gravar os instrumentos, de compor algo, criar arranjos. Vamos apenas dizer que ele tem uma maneira única de unir uma banda. Então isso provavelmente explica muito do que você está falando.
Falando no Ross, você tem algum disco favorito entre os que ele já produziu, tirando os álbuns do Dead Cross?
Ah, Glassjaw, realmente gusto do disco que ele fez com o Glassjaw. Também o “Roots” (1996), do Sepultura, o disco autointitulado do The Cure, o “Relationship of Command” (2000), do At the Drive In. A lista de coisas que ele já produziu é insana.
Aliás, a capa do disco novo do Dead Cross traz uma ilustração de um “papa esqueleto”, e você tem, obviamente, o nome da banda, Dead Cross, e também músicas como “Church of the Motherfuckers” and “Christian Missile Crisis”. Para você, as religiões organizadas são um dos principais problemas do m undo?
Eu tenho certeza de que, obviamente, é um problema, mas há tantos. Eu não sei se isso era algo tão intencional quanto acabou parecendo ser. Sei que o Mike (Patton) realmente gosta de escrever sobre a Igreja Católica. Na verdade, o título da música “Christian Missile Crisis” era para ser o nome de uma banda que eu ia montar com o Justin no final dos anos 1990 – e que acabou nunca dando certo – e acho que o Justin realmente gostou do nome e quis utilizá-lo no disco. Mas agora que você disse isso, eu realmente pensei “Ah é, isso é realmente um tema no nosso legado” (risos).
Sempre gosto de perguntar essa: por favor, me diga três discos que mudaram a sua vida e por que eles fizeram isso.
Hmm, essa é difícil, Ah, meu deus. Deixa eu pensar nisso por um minuto. Ok! O primeiro seria o “Ethereal Killer” (1993), do Hammerhead. Um amigo me mostrou esse disco em 1993 ou 1994. E esse foi um som realmente novo para mim. Era algo obscuro, pesado e agressivo e que realmente falou comigo. Mesmo essa banda não tendo inventado esse tipo de som, foi apenas o disco que eu escutei, e que encapsulava esse som. Isso faz sentido? O fato de eu ter ficado “Uau, isso é brutal para caralho”. Esse disco foi lançado pela Amphetamine Reptile Records, eles lançaram muitas coisas nos anos 1990, eles tinham muitas bandas boas.
Acho que o Today is The Day e o Unsane eram lançados por eles, não?
Sim e sim, exatamente. Então o que mais? Isso é difícil. Para ser totalmente honesto, eu realmente amava o “…And Justice for All” (1988), do Metallica. Amo de verdade os arranjos e as guitarras do Metallica. Quando tinha 18 anos, eu realmente curtia muito esse disco – e a banda também. Aqueles quatro primeiros discos deles, e especialmente para mim naquela época, com a minha idade, o “…And Justice for All”. Porque eu era mais jovem quando as outras coisas tinham sido lançadas; e eu tinha ouvido falar sobre elas, mas ainda não conhecia realmente.
Você chegou a ver o Metallica ao vivo nessa época do “…And Justice for All”?
Sabe de uma coisa? Eu nunca vi um show do Metallica!
Mas eu também gosto bastante desse disco do Metallica, há músicas incríveis como “Blackened” e “Dyers Eve”.
Com certeza. “Blackened” é incrível. Eu realmente praticava tocar guitarra com esse disco, aprendi muitas dessas músicas. E outro disco seria o “South of Heaven” (1988), do Slayer, que é um disco que eu escutei mais vezes do que eu consigo lembrar. Eu realmente fiquei louco com esse álbum.
E você já tocou Slayer com o Dave nos ensaios?
Sim, nós já tocamos sim, cara, “Raining Blood”. É tão divertido (risos). Então esses três discos foram gigantes para mim. Mas o que mais? Estou tentando pensar mais para trás, coisas em que eu era mais jovem. Porque (escolher discos favoritos) é algo que é diferente sempre, que muda a cada semana. Tipo, sabe aquele disco “AM” (2013), do Arctic Monkeys? Eu já ouvi esse disco centenas de vezes e gosto dele tanto quanto desses que mencionei agora. Não é algo que influencia a minha maneira de tocar, mas eu amo o disco. É muito bom! O “In the Flat Field” (1980), do Bauhaus, também foi uma influência gigante. Acho que também o Drive Like Jehu, as guitarras do primeiro disco deles (nota: autointitulado, de 1991) é algo sem igual.
Legal! Ótima lista! Essa é a última pergunta. Do que você tem mais orgulho na sua carreira?
Hmm. Espera um minuto, deixa eu pensar nisso por um momento, Ok? Putz, eu não sei, foram tantos momentos marcantes e tantas coisas em tudo que eu já pude fazer. Talvez determinados shows e performances. Vou lembrar para o resto da minha vida do nosso show (com o Dead Cross) no Hellfest em 2018. Foi muito divertido, de verdade. Esse show pareceu perfeito de verdade para mim. Isso é algo de que sempre vou lembrar. O que mais? Todo disco em que já participei e que foi lançado é uma realização. É algo como “É isso aí”. E isso independentemente de alguém gostar ou não, isso realmente não importa. É sobre não ter medo de arriscar e ver no que vai dar. Você só precisa fazer. Penso que a honestidade é o que mais se sobressai, se é algo sincero, autêntico. Eu posso dizer quando escuto algo. E tenho certeza que você também, você entende de música. Geralmente eu consigo saber isso logo nos primeiros acordes, nos 10 segundos iniciais. Não importa o estilo musical. E é a mesma coisa com um filme ou um programa de TV. Sabe o que quero dizer? Geralmente você consegue perceber muito rapidamente, como “Oh, isso vai ser realmente muito bom” (risos).
– Luiz Mazetto é autor dos livros “Nós Somos a Tempestade – Conversas Sobre o Metal Alternativo dos EUA” e “Nós Somos a Tempestade, Vol 2 – Conversas Sobre o Metal Alternativo pelo Mundo”, ambos pela Edições Ideal. Também colabora coma a Vice Brasil, o CVLT Nation e a Loud! A foto que abre o texto é de Becky Digiglio.