entrevista por Leonardo Vinhas
“Cara, como estão as coisas aí? Ouvi falar que tá rolando um tumulto, uma rebelião”. Page Hamilton, o homem que criou e comanda o Helmet, inverte a “ordem natural” e começa a entrevista fazendo uma pergunta ao jornalista. Era 1 de novembro de 2022, o segundo dia das manifestações golpistas de caminhoneiros apoiadores de (e apoiador por) milicianos no país, em protesto contra a eleição legítima de Luis Inácio Lula da Silva como presidente.
Hamilton disse que o dono da head shop que frequenta, um brasileiro, estava “extremamente tenso” com o que acontecia no país naquele momento (e não era o único brasileiro assim, claro), ao ponto de recomendar ao músico que não viesse para os shows que sua banda tinha. Informado de que o próprio presidente derrotado nas urnas acabava de fazer um pronunciamento onde condenava os atos, Page levantou as mãos para o alto, perguntou “qual é a desse cara, é ser uma cópia ainda pior de um babaca como o Donald Trump?” e disse que a banda “vai de qualquer jeito”. Um ótimo começo de conversa, mas Hamilton queria falar mais – muito mais!
Animado, e com disposição e aparência que não deixam entrever seus 62 anos ou os recentes problemas de saúde, o vocalista passou quase hora falando sobre músicas novas, problemas pessoais, apoiar causas, fascismo, trilhas para cinema, David Bowie e outros assuntos, e ainda pegou a guitarra e o violão para mostrar detalhes das próprias composições e ilustrar alguns de seus pontos de vista.
Uma das bandas mais peculiares do boom de rock pesado dos anos 1990, o Helmet esteve ativo entre 1989 e 1998. Depois de uma dissolução tensa, a banda retomou as atividades em 2004, com Hamilton sendo o único remanescente da formação original – e chegou a fazer um grande show em São Paulo em 2008. A formação se estabilizou em 2010, com a entrada do baixista Dave Case, que se juntou a Hamilton, Dan Beeman (guitarra base, na banda desde 2008) e Kyle Stevenson (baterista nas fileiras helmetianas desde 2006). Mas passemos logo à entrevista. Lembra que o entrevistado começou falando sobre certa “cópia ainda pior de um babaca como Trump”? Então…
Eu não ia perguntar nada do tipo, mas já que você trouxe o assunto à tona com tanto interesse, vamos mergulhar nele. Uma pesquisa recente feita com mil pessoas em 12 capitais apontou que o rock é ouvido por um público majoritariamente branco, mais velho e de maior poder aquisitivo, e uma das analistas do estudo até fala em uma suposta associação entre o classic rock e bolsonaristas. E a gente vê algumas histórias tragicômicas, como caras de extrema direita achando que o Rage Against The Machine é uma banda alinhada com o pensamento deles, esse tipo de coisa. Claro que isso é um recorte de público, e não representa todo mundo. Mas o que você diria para um hipotético fã do Helmet que tenha essa adesão irrestrita à extrema direita?
Bem, nós estamos vindo de uma turnê com o Clutch pelos EUA e vimos que há uma grande porcentagem de MAGAs – esse povo do “Make America Great Again”, os apoiadores de Trump – no público. Eu acho que, quando uma banda fica grande… Nós experimentamos isso com o Helmet [quando a banda tinha mais sucesso comercial]: uma vez foi em Long Beach. Eu parei o show, mandei apontar as luzes para o cara e pedi que ele fosse tirado de lá. O cara que cuidava do meu amp na época chegou e disse pra mim que esse foi um dos momentos de que ele mais tem orgulho na vida, Teve outra vez em Cleveland, Ohio, na qual eu também parei o show e mandei ligar as luzes, porque tinha um cara fazendo essa merda (faz a saudação nazista). A última vez, essa tem uns três ou quatro anos: foi em Hamburgo, na Alemanha. Tinha um garoto, era um molequinho, e o lugar era um lixo total, um pardieiro assustador e maluco. Eu o peguei pelo braço e disse: “ei, cara, não é assim que a gente agita. Eu amo todo mundo, e você é livre para ficar aqui se conseguir coexistir em paz”. Aí ele saiu, e depois voltou, parecendo mais calmo, e ficou na boa o resto do show. O que eu diria para esses caras, e para esse tipo de fã que você mencionou, é: eu não vou te dizer como votar, não vou te dizer no que você tem que acreditar, só vou te dizer que somos todos membros da raça humana. Não tô nem aí para suas afiliações políticas, a religião que você pratica ou a cor da sua pele. A não ser que você machuque mulheres e crianças – ou não machuque PESSOAS, porra – a gente consegue conversar sobre qualquer coisa”. Tenho certeza que em 99% dos casos vou conseguir mostrar que qualquer que seja a bobagem que essa pessoa está cuspindo, ela está equivocada. Tenho amigos, conhecidos, pessoas com quem trabalho, que são apoiadores do Trump, e quando eles vêm dizendo isso ou aquilo, consigo mostrar para eles que não estão falando a verdade.
E isso sem ser proselitista.
Sim! É claro que eu sou muito político, mas eu não sou um cara tão verbal quanto o pessoal do Rage [Against the Machine], e eu até tive essa conversa com o Zack [de la Rocha, vocalista do RATM] há muitos anos. Falamos sobre quando você sobe num palanque para defender uma causa. A não ser quando seja algo que é óbvio, como ser a favor da escolha da mulher… Porque aí é óbvio, é o direito dela, o corpo dela não é seu. Mas quando é algo como, digamos, o caso de Leonard Peltier, que era um índio norte-americano que foi preso por assassinar dois agentes do FBI. Um dos meus amigos mais queridos, um cara que conheço desde os 10 anos de idade, é um agente do FBI, hoje aposentado. Isso me fez investigar mais profundamente as informações sobre o caso, esse amigo me passou até as transcrições do tribunal, li tudo que havia a respeito, e não havia nada que me fizesse olhar para o caso e acreditar de coração que ele fosse inocente. Então eu não apoio uma causa dessas (nota: Peltier foi condenado em 1977, dois anos depois do crime, e o processo que levou à condenação foi bastante polêmico devido à inconsistências no argumento da promotoria e discrepâncias nas evidências. Peltier segue preso até hoje, apesar de já ser elegível para liberdade condicional). Deus abençoe o Rage Against the Machine, porque eles fazem muitas coisas boas, mas eles apoiaram a causa pela libertação de Peltier, que eu não apoiaria. Tudo que você ler, seja de fontes da esquerda ou da direita, você tem que fazer sua própria investigação e entender. Mas não há espaço para fascismo! A Segunda Guerra Mundial terminou em 1945, caralho! Parem! Parem com isso!” Aqui nos EUA tem essa “alt-right”, que quer um país exclusivo para pessoas brancas. E eu fico: (levanta a voz) “esse país nunca foi branco! Nós roubamos essa terra dos indígenas! Tipo, para! Eu sou descendente de imigrantes. Minha família veio há 250 anos da Escócia, o lado materno da família era galês, e o paterno, escocês. E a família do meu pai acabou tendo cherokees, que são a maior tribo indígena dos EUA. Tenho bisavô que vivia numa reserva indígena, então… O que Hitler fez na Segunda Guerra Mundial foi terrorismo estocástico: “culpem os judeus”. O que Trump fez foi terrorismo estocástico: “culpem os mexicanos”. Se você mandar os descendentes de mexicanos que nasceram nos EUA de volta ao México, esse país desmoronaria! É absurdo, absolutamente absurdo! Tantos dos avanços artísticos e sócio-culturais que aconteceram nos EUA vieram de afro-americanos. Tá ligado? Nossa música, que mudou o mundo, veio dos afro-americanos. O blues, o rock’n’roll, o jazz, o hip hop… tá ligado?
É engraçado que, para muitas pessoas que foram adolescentes no começo dos anos 90, como eu, parecia que viveríamos em um mundo em que as fronteiras não teriam tanta importância. O Muro de Berlim tinha caído, a Guerra Fria tinha terminado, houve a formação da então Comunidade Econômica Europeia. Havia esperança de que as coisas seriam diferentes. Em contrapartida, quem ouvia rock nessa época, tinha a impressão que os EUA eram o pior lugar do Ocidente para se viver (risos), com bandas como o Bad Religion falando em terraplanistas e fanáticos religiosos, quase todo o rap e hip-hop falando do racismo…
Bom, ainda que eu não suba num palanque e não fale muito em política, pelo menos não além do que cabe no Helmet, você pega uma canção como “Driving Nowhere”, que está no [álbum] “Aftertaste” (de 1997), e tem algumas observações pessoais ali de quem nasceu nos EUA e tem pai republicano, mãe republicana, irmão gay que também é republicano, e irmã republicana. Mas na época o conservadorismo tinha mais a ver com questões fiscais, e não sobre fazer um expurgo no país, entende? Trump falava coisas sobre os mexicanos serem traficantes e prostitutas, e outras merdas do tipo, e havia comediantes e comentaristas que diziam que esses comentários acabariam com ele. Mas não, havia pessoas que abraçavam e acreditavam nisso! Umas 70 milhões de pessoas! Quer dizer, é gente pra cacete! Então sim, talvez não fôssemos um país assustador, mas nos tornamos! Fomos de 300 milhões de armas pré-Trump para 400 milhões. Ou seja, temos mais armas que cidadãos nesse país! (nota: a população dos EUA é de cerca de 331 milhões de pessoas, segundo estimativas de 2021). 400 milhões de armas! Não há necessidade para nós, civis, termos uma AR-15 semiautomática, que é arma que destroçou crianças no massacre de Uvalde, no Texas [em 24 de maio de 2022, onde 19 crianças e dois professores foram assassinados]. Elas não puderam ser identificadas! Isso é nojento! Eu cresci no sul do Oregon, e eu caçava (nota: a prática é legalizada e normatizada no Estado), ganhei uma espingarda calibre 12 no meu aniversário de 12 anos. Jamais pensei em apontá-la para um ser humano e, além disso, eu odiava caçar. Mas eu obviamente abriria mão do meu direito de portar armas para salvar uma criança, sabe? Quer dizer, veja Sandy Hook, veja Parkland: todos esses tiroteios, são só crianças indo para a escola! Elas não estão machucando ninguém! Temos problemas, sim, mas eles não se resolvem desfigurando o rosto de uma pessoa. Por mais idiota que eu ache que esse pessoal de extrema direita é, eu gostaria de sentar com eles e dizer que isso é insanidade. Eu tenho até olhado umas casas na Espanha (risos), porque eu não sei se quero viver em um país com tantas armas, e tanta gente achando que está tudo bem apontá-las para outro ser humano, especialmente uma criança. Mas eu tenho fé no ser humano, fé de que conseguimos fazer a coisa certa. Conheço mais pessoas boas que pessoas más. Nós ainda somos mais numerosos que ele, mas eles são muito barulhentos e muito vocais. Donald Trump é a pior coisa a acontecer a este país durante todo meu tempo de vida. É a pior coisa! Ele não tem interesse algum em mim ou em qualquer outra pessoa, ele não tem interesse em fazer valer a constituição, ele não tem interesse na democracia ou nos Estados Unidos. “Make America Great Again” significa “vamos ver quanto dinheiro eu posso ganhar com esse país”. Ele tem tantas práticas de negócios suspeitos, que eu espero que sejam desbaratadas. Parece que serão, felizmente. Ele é um ser humano terrível, e queria perguntar às pessoas que o apoiam – e muitas são pessoas boas! – como elas não se dão conta que ele não está nem aí para elas. Ele sequer cumprimentaria essas pessoas, o que dizer ajudá-las em questões fiscais ou políticas. Eu estava acompanhando a eleição brasileira bem de perto, e, como eu disse, eu tenho fé no ser humano, talvez essa eleição seja um sinal. Talvez isso influencie nosso país e não deixe o fascismo e outros merdas como esse [Viktor] Órban (primeiro-ministro da Hungria) tomarem conta.
Bem, não sei se isso te dá mais esperança, mas apesar de ainda ter muitos apoiadores, Bolsonaro teve rejeição recorde na nossa história. Nunca um presidente foi tão rejeitado, tampouco derrotado na tentativa de reeleição. Mas como temos um limite de tempo, vamos falar de música (risos). Os shows do Helmet sempre foram muito intensos, muito mais que os discos. Inclusive vocês fizeram um show na praia quando vieram aqui pela primeira vez que foi lendário…
[empolgado] Em Florianópolis? Uau, essa é uma das melhores memórias da minha vida! (nota: o show aconteceu em 1994, na praia de Canasvieiras, como parte do festival M2000 Summer Concerts, cujo bizarro lineup incluía Cidadão Quem, Dr. Sin, Anything Box, Deborah Blando, Robin S, Fito Páez e o Helmet como headliner). Eu me lembro que me disseram que tinha umas 150 mil pessoas até o fim da praia, uma loucura!
E o lineup era uma loucura, cheio de tecnopop, dance music de FM e até um popstar argentino…
Pois é, eu me lembro que esse argentino… como era o nome dele mesmo?
Fito Páez.
Então, esse cara. Era quase classic rock. Me lembro dele, tocando com uma Les Paul branca. Eu pensava que, estando na América do Sul, o Brasil e a Argentina teriam coisas muito próximas musicalmente. Porque, você sabe, você pega a nossa grande música, a Motown e o jazz, e aí pega a grande música brasileira, a bossa nova com “Girl from Ipanema” e todo o sucesso que fez… Isso nos influenciou! Willie Bobo pegou muita influência disso, Dizzy Gillespie fez umas coisas lindas cruzando o jazz com a música brasileira, e tinha um gênio como Tom Jobim, com esse vocabulário harmônico imenso… Um dos meus crushes da vida é – não sei se vou pronunciar certo – Elis Regina. Sei que ela já faleceu faz tempo, o disco dela com o Tom Jobim (“Elis & Tom”, de 1974) é uma obra-prima (se emociona), é incrível… Um arrependimento que eu tenho é de quando estávamos em SP às vésperas de pegar o vôo de volta para casa. De manhã, eu descobri que ia ter um show em algum lugar ao ar livre em que iam tocar Antônio Carlos Jobim, Dorival Caymmi e Chico Buarque. Esses três… Hm, não sei se eram eles. Chico com certeza. Dorival Caymmi já não tenho essa certeza… Mas enfim, ficamos todos “oh meu Deus! Isso nunca vai acontecer de novo na minha vida!” Eu deveria ter cancelado o vôo e visto, e agora todos se foram… Opa, o Chico ainda está vivo, certo?
Ao vivo e na ativa.
Ele é fantástico! Quando eu estive aí, comprei muita música. Ainda era CD na época, e dava para achar muita coisa que não se encontra aqui nos Estados Unidos.
Voltando aos shows: vi alguns vídeos de apresentações recentes de vocês, e parece que a energia continua alta. Eu falava dia desses com o editor do Scream & Yell como tem sido difícil escrever sobre shows, pois a maioria tem sido muito intensa, como se as pessoas estivessem precisando botar coisas para fora, quase uma catarse, tanto na plateia como no palco. Não somos psicólogos, mas acho que podemos dizer que estamos todos saindo de um trauma coletivo pós-pandemia. Você tem observado isso nos shows que vocês têm feito?
Nessa tour [com o Clutch] somos a banda de abertura, e eu nunca tinha sentido uma resposta como a que tivemos enquanto banda de abertura em toda a minha vida. No começo pensei que era porque era uma combinação realmente boa de bandas, mas… Veja, eu tenho confiança na minha banda, em 2019 comemoramos 30 anos de Helmet e fizemos 30 shows com sets de 30 canções na Europa, e 30 shows com sets de 30 canções nos EUA também. Então foram 60 shows, dominamos um monte de canções, a banda está muito, muito entrosada. Eu amo os caras como irmãos musicais e estamos muito unidos, então estamos em grande forma. Em Orlando, na Florida, tocamos pouco antes da passagem do furacão [em setembro de 2022], e foi intenso! A plateia foi incrível! Teve vários shows que se sobressaíram para mim, como os de Charlotte, Toronto, Boston… Em Nova Iorque, tivemos uma plateia incrível, mas o lugar era péssimo. Mas teve um show em Salt Lake City que foi intenso como nunca tinha sido por lá (arregala os olhos). A plateia estava junto, sabe? Estavam ali com a gente… Em Oklahoma City, em Houston… Bem, ali o público é sempre ótimo, mas eles estavam dez vezes mais empolgados! Eu li que, pós-pandemia, as pessoas estão tão prontas para música ao vivo, que quando vêem uma banda que é boa no que faz… Porque olha, a gente é estritamente música, sabe? Não tem um “espetáculo”, eu obviamente tenho um cabelo muito bacana (passa a mão na cabeça desprovida de fios de cabelo), tocamos só de jeans, tênis e camiseta… As pessoas vêm pela música, e ficam animadas demais com ela. Espero que, quando eu estiver aí, seja assim também. Sinto que três anos foram um tempo muito longo para ficar sem fazer turnês para mim. Eu passei por todo o tipo de questões pessoais e problemas de saúde, eu acabei sendo internado no hospital porque eu estava só usando muito disso (pega a garrafa de cerveja) e tinha parado de comer, tinha emagrecido a ponto de pesar só 63 quilos, tiveram que abrir meu abdômen e fazer uma cirurgia… Quer dizer, eu estava um lixo! Eu vinha fazendo turnês desde 1989 – 1988, se você contar meu tempo no Band of Susans. Ou seja, sempre fez parte da minha vida: tocar ao vivo, fazer um disco, compor para um filme, gravar uma trilhar, tocar em projetos, toquei com David Bowie (na turnê do álbum “… hours”), toquei com Joe Henry (no álbum “Trampoline”). Mas o Helmet é uma banda ao vivo, sempre foi, e isso foi tirado de nós, de uma hora pra outra. E isso me destruiu. Foi tão, tão duro pra mim. Tantas pessoas vêm me dizer que viveram tempos difíceis na pandemia, e eu as entendo, sabe? Porque me pegou. Nós não somos como o Foo Fighters ou o Metallica, que têm zilhões de dólares e podem ir al e ganhar um milhão de dólares (ri). Pô, a gente toca em clubes! (risos) Podemos ter plateias de 200 pessoas, ou de 1200, saca? Os promotores de shows também estão tentando ganhar dinheiro, e têm muitas bandas precisando voltar a tocar, então eles estão tentando encontrar um equilíbrio para ter show para todo mundo. Somos muito gratos por termos conseguido esses shows. Em julho abrimos seis shows da turnê conjunta do Korn e do Evanescence (nota: na verdade, foi em agosto), e agora tivemos essa turnê com o Clutch e o Quicksand, e tem essa coisa da América Latina a caminho. Então eu concordo contigo: é uma liberação. As pessoas estão prontas para isso.
(depois de uma brevíssima pausa para Page pegar outra long neck, retomamos a conversa)
Voltar às turnês ajudou você a se sentir melhor depois de todo esse período pesado?
Me sinto ótimo. Fiz a cirurgia em 13 de julho, foram quatro horas com minha barriga aberta, um lance nojento, nem quero entrar em detalhes. Demorei muito para me recuperar, mais do que eu imaginava que seria necessário. Pensei que em poucos dias estaria de volta, mas depois de ficar aberto por quatro horas, todo cheio de pontos, não foi fácil voltar a cantar. Certas notas faziam os pontos repuxarem, era doloroso. Mas é esquisito, porque quando voltei, a cada show fui ficando melhor, cada vez melhor fisicamente. E me sentindo melhor também, mais forte a cada show, também emocionalmente. Eu me sinto completamente rejuvenescido. Financeiramente, vai levar uns dois anos para eu me recuperar: eu perdi dois filmes [que faria a trilha sonora], perdi toda a renda de turnês e de merchandising. Mas meu espírito, minha alma musical… (se emociona) Estou trabalhando nessa peça, escrevendo essa peça para uma escola de Memphis, no Tennessee, que é para a orquestra escolar mais antiga do país. Estou trabalhando em novas canções do Helmet, fiz um show com uns garotos em Nashville, no Tennessee, e foi sensacional. Quer dizer, faz sentido dizer que “voltei ao normal”? Porque é assim que me sinto. Deixa até eu bater na madeira para que continue assim (de fato, ele bate na mesa). Vamos para a Austrália e para a Nova Zelândia no ano que vem, e depois vamos gravar um disco novo.
E vamos falar desse disco, mas antes eu queria falar de outra coisa. Como você já deixou bem claro, você vai muito além do Helmet, com as trilhas, toda a sua história com o jazz e música avant-garde. Enquanto compositor, como são essas atividades para você?
Eu obviamente tenho muitos amigos que têm bandas, e tudo que eles fazem é a banda deles. Mas não tem como essa banda ser algo que preenche sete dias da semana deles, 365 dias por ano. Tem aquele período em que você faz um álbum, e aquele outro período em que você sai de turnê. E o que você faz com o resto do tempo? Bem, para mim, uma das razões pela qual o Helmet nunca fica parado musicalmente é que eu tenho todas essas outras coisas que me abastecem musicalmente. Eu vou para Nova Iorque no revéillon e vou tocar em um pequeno show de jazz na véspera do Ano Novo, vou tocar em alguns clubes de jazz em Connecticut e arredores, vou tocar em um show solo em que faço uma coisa mais jazzy misturada com alguma coisa do Helmet, aí rola uma canção dos Beatles… Isso é realmente divertido para mim, e tudo que eu pego desses shows, o espírito musical deles, é isso que abastece o Helmet. E é o Helmet que me permitiu fazer todas essas outras coisas. Eu tenho meu diploma de jazz, meu diploma de clássico, e trabalhei e trabalhei e trabalhei nisso. Quando o Helmet começou a dar certo, digo musicalmente, quando tive a visão do que seria o som, com essa coisa da descida de afinação, nós ganhamos dinheiro e viajamos pelo mundo. Isso abriu portas para mim. Posso tocar jazz, e até tocar num casamento (risos), o que quer que seja. Então veio o lance dos filmes, porque as pessoas me conheciam do Helmet. Comecei a trabalhar com o grande compositor Elliot Goldenthal, ele me contratou para esse filme “Fogo contra Fogo” (1996), com Robert De Niro e Al Pacino, e isso é um mundo totalmente diferente. Eu faço uma média de três filmes por ano. O último foi uma série para a Netflix austríaca chamada “Totenfrau”, que é uma série em seis partes realmente intensa, e toquei guitarra em tudo. A trilha é do mesmo compositor que fez a trilha para todos os filmes da série de [três] filmes “A Barraca do Beijo”, que é uma comédia teen, e eu toco guitarra na trilha dos três também. Pro terceiro, o (compositor) Patrick Kirst me ligou quando eu estava dirigindo, e disse: “eu preciso que você cante uma coisa!”. Eu nem tinha comido ainda, mas cheguei em casa, liguei meu estúdio, e ele me mandou uma página de música, dizendo que eu tinha que cantarolar um vocalise. Era difícil cantar no alcance que ele queria, e eu gravei uma oitava abaixo. Mandei pra ele, comi alguma coisa, e aí ele me ligou de volta dizendo que estava lindo, mas que o diretor queria uma oitava mais alta. Quando você faz um vocalise, você não tem muito apoio do diafragma, mas depois de três takes, consegui o que ele queria e mandei. Ele me disse que as pessoas ao redor ouviam e perguntavam: “mas esse é o Page Hamilton?” (largo sorriso) Eu posso cantar bonito, se eu quiser (risos). Se você ouvir a música no final do filme e escutar esse vocalise lindo, esse sou eu. Yeah, o hardcore de Nova Iorque! (risos) Esse tipo de coisa é uma delícia, eu adoro fazer isso! Me sinto sortudo por poder trabalhar em projetos desse tipo. Se eu só tivesse o Helmet, eu não sei. Quer dizer, eu amo o Helmet, mas se isso fosse tudo que eu tivesse musicalmente, não sei se eu ficaria tão animado com ele como eu fico.
E com o Helmet tendo tantas mudanças de lineup ao longo de sua história, você sente que ele ainda é uma banda, em termos colaborativos, ou é o “seu” projeto?
Olhando pra época em que John (Stanier, baterista) e Henry (Bogdan, baixista) ainda estavam na banda, eles diriam: “é a banda do Page”. Eles foram partes integrais, super importantes para o Helmet, e a banda não soaria a mesma sem eles. Mas… Eu sou o cantor, eu escrevo as canções, eu toco guitarra e faço os arranjos, mas eu ainda preciso de grandes músicos que entendam o que estou fazendo. Uma pessoa pode ser um grande músico tecnicamente e não entender o Helmet, sabe? As pessoas pensam que esse tipo de música é simples, e absolutamente não é. Já teve quem viesse até a gente falando que sabe tocar algumas de nossas canções, e normalmente eles não conseguiam passar da ponte (nota: “ponte” é como se chama uma seção contrastante de uma composição, quase sempre usada para fazer o retorno ao tema original). Por exemplo, “Unsung”. Você quer tocar com a gente? Então vamos lá, vamos tocar “Unsung”. Aí o cara vem e pergunta: como você conta [os tempos]? E eu digo: não conto, eu sinto (cantarola o riff). É 6×4, o tempo muda, mas eu não quero que pareça que o tempo muda, quero que ainda pareça igual. Testei diferentes pessoas, toquei com alguns músicos bem conhecidos que não conseguiam tocar esse tipo de música. Mas as pessoas que conseguem… Você precisa ter essa sensibilidade rítmica, esse soul, esse groove, porque é uma música bastante orientada pela levada. Rolou de tantos músicos que eu admiro, que eu realmente curto – como o Dimebag [Darrell] do Pantera, o Jonathan [Davis] do Korn, ou o Chino [Moreno] dos Deftones, que disseram ser influenciados por mim, que disseram “sem você, nenhum de nós estaria aqui”, sabe? T. M. Stevens, o ex-baixista do Pretenders que já tocou com James Brown e Miles Davis (nota: e que fez um inesquecível show para pouquíssimas pessoas no Teatro do SESI, em São Paulo, em 2010), ele veio no nosso ônibus um dia falando que ele tinha tocado num álbum do Steve Vai que era cheio de coisas meio “Helmetizadas”… Eu tenho orgulho que esse vocabulário tenha sido incluído como parte do rock, sabe? E esse lineup tem me acompanhado há mais tempo que qualquer outro. Dave Case, que é o cara mais “novo”, está na banda há 12 ou 13 anos. Isso é mais tempo do que a existência do lineup original! E o Kyle está aguentando minhas xaropices há uns 16 anos, algo assim. Essa formação soa incrível! Algumas pessoas nunca vão aceitar que exista outra formação que não seja a original, mas se elas nos ouvirem, vão falar “uau, isso é animal”. Já me disseram isso muitas vezes, que não tinham ideia de que fôssemos tão bons. Bem, abra a cabeça, cara. Eu não vou fazer nada medíocre ou que soe uma merda. Tem todas essas canções que eu escrevi e das quais tenho orgulho, e quero que elas soem fantásticas. Tem uma disciplina envolvida, entende? Você tem que entender o vocabulário. Quando eu toquei com o Bowie, eu me diverti tanto, aprendi 30 canções em duas semanas e adorei de verdade, ele é um dos meus heróis de toda a vida. Mas eu senti falta do Helmet. Porque nada preenche esse vazio para mim, não há nada parecido com isso. Tocar em filmes, tocar em programas de TV, produzir bandas, fazer jazz, eu adoro tudo isso, mas o Helmet é muito, muito importante pra mim, sabe? Eu vou fazer enquanto eu conseguir. Eu posso estar desmoronando, já me abriram a barriga, arrebentei o joelho, já tive uma concussão na cabeça, esse tipo de coisa (ri), mas enquanto eu puder subir num palco e tocar, eu vou fazer isso.
Cada álbum do Helmet tem sua identidade bem marcada, mas no último, “Dead to The World” (2016), tem um certo sentido melódico, algumas sensibilidades pop – não pop mainstream, claro, mas tem algo mais arejado, que não era muito presente nos anteriores. Quase uma coisa de arena, até, em uma ou outra canção.
Conforme você melhora como cantor e melhora como compositor, você meio que tenta… Tipo, uma das canções que eu mais gosto no disco, “Red Scare”, tem esse lance meio “Strap It On” (álbum de estreia do Helmet, de 1990), olha só (Page pega a guitarra e toca o riff). Eu estava descobrindo essa coisa rítmica, em que você tem [o compasso] 6×4, as baterias são em 4, e eu toco em 3, um lance assim (batuca a frase de bateria). Aí, enquanto está rolando esse ritmo, tem essa outra coisa (cantarola o riff), e fica entre 5×5 e 5×4. (empolgado) Essas são coisas que eu sinto! Como em “Like I Care” (canção de “Aftertaste”) ou mesmo “Give It” (do “Meantime”, 1992), que é exatamente o mesmo riff rearranjado ritmicamente (toca o riff). Então eu estava dando um zoom nisso tudo, porque conforme eu fui me aprofundando nessa descida de afinação, fui descobrindo toda essa informação harmônica, como acordes que ninguém tinha usado antes no rock, Afinal, por que usariam? Eles não são nerds de jazz. Então, em “Red Scare” eu ouço essa melodia (toca a linha melódica na guitarra), mas os acordes são esses (toca o riff), e eu canto assim (canta um trecho da canção). A guitarra é muito dissonante, mas eu canto de forma melódica. Porque eu sou um cara do jazz, a ideia é fazer algo que também pode ser feita na música erudita, que é tocar a mesma nota em cima de todos os acordes. Isso é algo que rola desde o primeiro dia do Helmet, sabe? (pega o violão e exemplifica). É o chamado “common tone”. Eu consigo tirar informações melódicas disso, digo, eu realmente ouço melodia ali. Eu escuto uma progressão ou uma melodia, e penso em como posso harmonizar. É como em uma peça para orquestra, você tem a melodia em cima e pode tocar qualquer acorde em baixo, dependendo de onde aquele acorde vai. Quanto mais eu experimento e mais eu trabalho em cima de coisas assim, mais meu vocabulário aumenta. Ainda são riffs de música pesada, claro, mas eu não queria ficar na mesma veia, sabe? Quero sempre experimentar com informações harmônicas e, honestamente, meu canto melhorou tanto depois de cantar em 3 mil shows! Fui melhorando, meu alcance se expandiu, e comecei a aprender o que consigo fazer com minha voz. Eu pensava que não conseguiria cantar certas coisas, em ‘Unsung” eu desgostava tanto do som da minha voz que dobrei o vocal. Fiz isso inspirado por John Lennon e Ozzy [Osbourne], eles dobram os vocais e são ótimos! Mas enfim, “Unsung” já tinha esse vocal melódico, meio pop. Até no “Strap It On” tinha uma coisa ou outra nessa linha, até que eu tive conversa com o Dave Sardy, que coproduziu o “Aftertaste”, em que ele me disse que se eu dobrasse todos os vocais melódicos, eu tiraria a emoção deles. Eu entendi o que ele quis dizer: às vezes você só precisa de uma voz, ser mais direto. É bem a coisa de continuar a caminhar para a frente, porque eu me deparei com essa coisa linda, mas não quero ficar preso apenas a ela, sabe? Então eu vou expandindo cada vez mais isso. Eu adoro tocar um lance bem “homem das cavernas” tipo “Rude”, do “Strap It On”, mas eu amo também tocar algo como ‘Red Scare”, que é super complexa.
E isso vai ser algo que vai seguir no próximo álbum?
Não sei o que esperar dele. Eu tenho uns esboços e algumas ideias. Por exemplo, eu escuto a batida de “Jive Turkey”, dos Ohio Players, e desço uma batida, e penso no que posso fazer com isso. Eu estou tomando notas o tempo todo, e acho que as letras estão ficando mais narrativas. No começo eu tinha essa coisa de fluxo de consciência, eu queria que tudo fosse referido três vezes, tipo, eu estou dizendo algo que faz referência à outra coisa e que se refere à uma terceira coisa. Ninguém sabe que caralho eu estou cantando (risos), e na metade do tempo, nem eu. Eu gosto muito do Frank Black, porque as letras dele são assim: Eu não tenho ideia do que ele está cantando, mas soa do cacete!
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.
Excelente entrevista. Parabéns!
Excelente entrevista!!!
Grande entrevista.Parece ser um cara legal
muito boa entrevista! nem sabia dos problemas de saúde que ele teve, a imprensa rockeira gringa tem ignorado cada vez mais a banda ao longo dos anos, é bizarro
nem estava sabendo do show em SP, adoraria ir, uma das poucas bandas que gosto há muitos anos e não vi ao vivo ainda
pena que o festival não liberou para o S&Y uns ingressos para serem sorteados, né?
não estão caros, mas para quem mora um pouco longe já fica complicado pagar também transporte.
se pintar ingresso sobrando eu aceito muito grato!
Demais a entrevista! uma pena que não vou ter como ver esses shows deles…
Que entrevista maravilhosa!