texto por Paolo Bardelli
A grandeza de “Sea Change”, de Beck, é evidente desde seu lançamento em 24 de setembro de 2002, mas também aumentou ao longo do tempo. Em seu aniversário de 20 anos, o álbum, depois de tantas temporadas, assume o inevitável contorno de “clássico”, também por causa de seu som pouco datável: poderia ser um álbum de Nick Drake mais bem gravado, portanto pertence a uma era indefinida que vai dos anos 70 até hoje.
O pano de fundo de “Sea Change”, e sua inspiração, é bem conhecido: surge como uma forma de “consertar” o coração de Beck Hansen destruído pelo fim de um relacionamento de nove anos com a estilista Leigh Limon, que estava tendo um caso com um membro da banda Whiskey Biscuit, de Los Angeles – Beck descobriu a traição três semanas antes de seu aniversário de 30 anos, em 2000, e escreveu a maioria das canções em uma semana, deixando-as guardadas até março de 2002, quando começou a registrar o álbum ciente de que o sentimento melancólico daquelas músicas não era apenas seu, mas universal. Também é marcante a (quase) singularidade do (oitavo) álbum em sua discografia é bem conhecida, pois aparece logo após o arrebatador “Midnite Vultures” (1999) e antes do evolutivo “Guero” (2005), como uma espécie de parênteses necessária para mandar embora os fantasmas de sua ex em um passeio emocional na frente de todo o público.
Na realidade, Beck se reconectou às fontes daquele elixir da vida que a maioria das pessoas vai beber, àquela força vital que leva ao restabelecimento do equilíbrio interno após o luto e que cada um deve encontrar dentro de si quando certas coisas acontecem, em 2014 com “Morning Phase”, mas era mais um desejo de fotografar aqueles movimentos da alma, da alternância normal dos dias e das estações, como elementos da natureza, enquanto “Sea Change” registra o grito abafado numa resignação (dolorosa) composta em contato direto, real, vivido e tangível com um sentimento.
Hoje, 20 anos depois portanto, permanece a música cristalina, aquelas melodias que conseguem ser incrivelmente melancólicas e doces, como se a perda também tivesse levado à necessidade de ser calmo, desapegado, de não enlouquecer, com arranjos de cordas lânguidos que tornam tudo ainda mais emocional.
A produção maníaca e muito lúcida de Nigel Godrich (evidentemente em seu climax de carreira, entre “Kid A”, de 2000, do Radiohead, – “Talkie Walkie”, de 2004, do Air, e “Chaos and Creation in the Backyard”, de 2005, de Paul McCartney) destaca violões tão maravilhosamente equalizados que poderia fazer de “Sea Change” o álbum a ser usado para ouvir a renderização da sonoridade hi-fi de um aparelho no momento da compra (função anteriormente concedida a discos como “Brothers in Arms”, do Dire Straits, ou “The Nightfly”, de Donald Fagen), elementos que estão à nossa frente ao nos aproximarmos deste trabalho inesquecível.
Mas, sobretudo, as letras de Beck em “Sea Change” permanecem definitivamente dilacerantes e depressivas, ainda que equilibradas, ao escrutinar a morte de um sentimento (“Already Dead” é uma das que traz mais referências à morte) também tentando (timidamente) olhar – se não para a frente – para outro lado. A mudança necessária, a “mudança do mar”, é evocada em “Little One”, onde há alguém está se afogando em “ondas estranhas que nos empurram em todas as direções”, percebe que “nada é seguro” para aceitar deixar-se levar: “vamos flutuar”.
Drown, drown, sailors run aground
In a sea change, nothing is safe
And strange waves push us every way
In a stolen boat, we’ll float away
Mas primeiro é preciso se conscientizar da situação, num turbilhão incessante de humores cujo único denominador é o estranhamento, e é difícil “se virar”: “Esses dias eu mal consigo / E nem tento”, canta Beck em “Golden Age:
These day I barely get by
I don’t even try
enquanto então o sujeito da letra sai e dirige à noite para não pensar, para “esfriar sua cabeça dolorida” (“Cool your aching head”).
A imagem mais metafórica, a da barreira que o separa do mundo dela, está em “Guess I’m Doing Fine”: ele está na janela, olha para fora, há um passarinho cantando, mas ele não consegue ouvi-lo (“Há um pássaro azul na minha janela / não consigo ouvir as músicas que ele canta”) uma representação da divisão definitiva entre eles (uma canção da banda italiana Marlene Kuntz, “E poi il buio”, traz uma definição que encaixa a perfeição: “Devem ter dividido o mundo em dois e acho que estou do lado errado” ).
A consciência de estar passando por um momento do qual você não pode escapar, que você tem que enfrentar, fica clara em “Lonesome Tears”, porque Hansen está cansado de chorar, ele entende que não precisa daquelas “lágrimas solitárias”, mas ao mesmo tempo percebe que elas são permanentes como uma tatuagem, que “elas não podem ser apagadas”:
These tears just can’t erase
I don’t need them anymore
Às vezes surge claramente um grande cansaço (“Estou cansado de lutar”, canta em “Lost Cause”), mas também um entendimento que provavelmente só leva tempo porque “não há muito a dizer” e “não há muito para fazer”, todo mundo “jogou seu jogo” e agora você só precisa descansar (de “End of the Day”):
Not a lot to say / Not a lot to do
You played the game
You owe nothing to yourself
Rest a day
For tomorrow you can’t tell
Um episódio a parte é “It’s All in Your Mind“, single já lançado em outra versão em 1995 e, portanto, uma música que não pode ser estritamente relacionada aos temas do álbum: geralmente interpretada como um diálogo paranoico entre duas personalidades, “It’s All in Your Mind“ também pode ser interpretada como um pedido de ajuda a um amigo que, por outro lado, não pôde estar perto naquele momento, e se comportou como todo mundo:
You’re all scared and stiff
Mas, como que para confirmar uma lógica de álbum conceitual que serpenteia em uma direção, “Round the Bend” e “Sunday Sun” são as escolhidas para contar o final desta história, que é a única possível para quem tem um pouco de autoestima: lamber as feridas e recomeçar, olhar para o que está “além da curva”, pois “a vida continua onde tem que ir”:
We don’t have to worry
Life goes where it does
e não há mais nada a fazer senão esperar o “sol de domingo”, aquele dia que inevitavelmente ficará vazio sem a amada, mas que ainda pode estar quente, com um pouco de sol:
There’s no other ending
Sunday sun
É justo voltar a este álbum porque o que Beck canta aqui é universal, é a transcrição dolorosa de uma fase humana entre a dor e a acomodação tímida, porque onde há tanto amor há também a possibilidade de igual sofrimento. É um equilíbrio precário, sutil, uma corda bamba que pode se romper a qualquer momento, deixando-nos agarrados ao vazio, que o cantor e compositor de Los Angeles quis assim preencher, deixando-nos participar de sua forma de superação – ansioso para o início de uma nova fase brilhante.
Deixe a idade de ouro começar.
Ps. Uma curiosidade: para recriar “Sea Change” ao vivo, Beck saiu em turnê com os Flaming Lips, que abriam a noite com um show próprio e depois se transformavam na banda de apoio de Beck para recriar o álbum ao vivo. O segundo vídeo, logo abaixo, é um registro de um show completo de Beck com os Flaming Lips em 2002.
Texto publicado originalmente no site italiano Kalporz, parceiro de conteúdo do Scream & Yell. As fotos deste artigo, obra de Autumn De Wilde, foram tiradas durante a gravação de “Sea Change”.