entrevista por Bruno Capelas
Quarenta anos de estrada – e muitos outros virão, se a saúde permitir. Esse é o espírito por trás de “Barão 40”, projeto que comemora as quatro décadas de existência da banda carioca Barão Vermelho. Dividido em quatro partes – “Acústico”, “Blues & Baladas”, “Sucessos” e “Clássicos” –, o projeto está disponível em áudio (nas plataformas de streaming) e vídeo (em uma série especial produzida pelo Canal Bis) para o deleite de quem busca uma retrospectiva de um dos conjuntos mais simbólicos do rock nacional.
“É um momento maduro do Barão – mas também, se [a gente] não estivesse maduro com 60 anos, ia ser demais, né?”, brinca o baterista Guto Goffi, membro fundador do Barão, sobre o projeto e a nova fase da banda, iniciada em 2017 com a chegada de Rodrigo Suricato para os vocais. Acredite se quiser, caro leitor: o “novato” já tem quase o dobro de tempo nos microfones da banda do que Cazuza, que ocupou o posto entre 1982 e julho de 1985. “Quando o Suricato chega na banda como cantor, decidimos dar a camisa 10 para ele. Ele retribuiu dizendo que o time de coração dele é o Barão”, diz Guto.
Lançado ao longo do mês de setembro, o especial foi aberto com o episódio “Acústico”, que para Guto é a primeira vez que o Barão se debruçou sobre o formato desplugado de forma dedicada – na visão do baterista, a gravação do “Acústico MTV” que a banda fez em 1992 (e só foi lançado como DVD mais de uma década depois) foi como se o Barão fosse “jogar uma pelada na casa do Chico Buarque”. “Na época a gente estava fazendo dez anos e achamos que fazer um acústico numa banda de guitarras ia matar a gente. Fugimos, mas acabamos fazendo o programa. Só não investimos naquilo para ser um disco, diferentemente de agora”, conta.
Na entrevista a seguir, Guto Goffi conta mais sobre o novo projeto e a turnê que o Barão tem feito pelo País entremeando canções elétricas e arranjos com violões. Aos 60 anos, ele também diz sonhar em seguir o exemplo dos Rolling Stones e tocar por mais duas décadas, mas acha difícil concretizar a ambição. “O rock’n’roll é que nem futebol de salão: é correria, meu irmão. Tem que correr, pegar a bola, marcar, receber, ir lá fazer o gol, voltar correndo porque o outro time vai atacar. É frenético, então que estar bem de saúde”, brinca.
Episódios da história do Barão, como as saídas de Cazuza e Frejat, as brigas com gravadoras e a relação de amizade com outros grupos do rock brasileiro dos anos 1980 estão na pauta. “Acho que a nossa geração do rock fez muito pouco esse exercício de frequentar as outras bandas. Sempre uma banda falava mal da outra, pô”, reclama Guto, que lista ainda neste papo seus discos da ilha deserta e os bateristas que todo iniciante precisa ouvir (atenção, haters: Ringo Starr é um deles).
O cenário político de 2022 não fica de fora da conversa – e o baterista nem pestaneja ao dizer, ao contrário do que alguns especulam nas redes sociais, que Cazuza estaria do lado certo nestas eleições. “O Cazuza era um cara que combatia a caretice! Ele jamais estaria aliado a uma extrema-direita ou a gente que gosta de violência, que defende armas e guerras”, diz.
O Barão está comemorando 40 anos de carreira em 2022. No “BRock – o rock brasileiro dos anos 1980”, livro do Arthur Dapieve, você tem uma fala que marca muito o início do grupo: “Um dia a gente era amigo de escola que combinou que ia ter uma banda”. E quatro décadas depois, você ainda está na mesma banda. Qual é a sensação, Guto?
É engraçado: 40 anos para uma banda de rock é uma coisa quase impossível, é muito raro de acontecer. Os Beatles duraram dez anos. Não são só quatro décadas em si, porque a quantidade de coisas que acontece no mundo e na nossa vida em cada uma dessas décadas é gigante. É assustador. Eu acabei de fazer 60 anos, comecei com 20 no Barão. Para nós, é uma felicidade ter esse tanto de oportunidades, ter essa terceira formação, pós-Frejat e com o Maurício Barros por perto, dando continuidade a uma coisa que a gente construiu. O Maurício foi meu grande amigo ali no início do Barão, quando viemos a São Paulo ver o show do Queen no Morumbi [em 1981], voltamos de lá embasbacados e combinamos de fazer a nossa banda – e tinha de ser uma banda com um vocalista. Fomos nós dois que escolhemos o nome Barão Vermelho e todo mundo que entrou foi convidado para entrar nesse tal de Barão Vermelho. O Dé foi o terceiro, depois o Frejat, por fim o Cazuza. A partir dali a gente viveu aquele sonho juvenil, ter uma banda de rock, foram os melhores anos das nossas vidas, pelo menos até a saída do Cazuza. Depois a gente sustentou a segunda formação, com o Frejat cantando. Ele é um excelente cantor, mas no início as pessoas ficavam na dúvida, “pô, mas sem o Cazuza não tem jeito”. Teve jeito, o Barão prosperou nesse tempo todo, foram quase três décadas com o Frejat cantando. E com a saída dele, nós tivemos uma nova versão desse elo de irmandade que são as bandas de rock, apostamos numa terceira versão dessa mesma velha história.
Aproveitando que você tocou no assunto, queria falar dessa época que o Frejat assumiu os vocais. Em vários lugares, eu li que qualquer um dos quatro poderia assumir, não foi um processo natural o Frejat assumir. Como é que foi isso?
O Frejat era autor de muitas das músicas do Barão em parceria com o Cazuza. Ele acha que o fato de ter composto as músicas já trouxesse uma intimidade para ele cantar aquelas linhas melódicas. O pessoal conheceu essas melodias pela voz do Cazuza, mas o Frejat foi o criador de muitas delas. Mas sim, a gente fez um ensaio assim meio karaokê, em que todo mundo cantou. Eu lembro que o Maurício cantou uma música, eu outra, o Dé também e o Frejat por último. E aí ele ficou sendo o novo vocalista, o porta-voz dessa formação, já no “Declare Guerra” (1986), que é o primeiro disco sem o Cazuza. E nesse disco, o Maurício também canta uma música, sinalizando que também tinha vontade de cantar também.
Quando o Frejat decidiu sair, vocês fizeram esse karaokê de novo ou o Suricato já estava por perto?
Dessa vez, não. O Frejat saiu porque queria seguir com a carreira solo, não ia mais seguir com o Barão. Quando ele me disse, fiquei chateado para caramba, lógico, mas perguntei se a gente podia continuar com o grupo. Ele me disse para ficar à vontade, então a primeira pessoa que eu convidei para voltar para a banda foi o Maurício Barros. Ele saiu em 1987 do grupo e três anos depois, ele voltou ao Barão como músico convidado. Ele não foi readmitido como sócio diretor, membro oficial, ficou sempre como convidado, de 1990 até 2017. Ele participou de todos os discos, todas as turnês, mas só em 2017 é que teve de volta esse título de dono do grupo, quando o Frejat decidiu sair. Ao fazer isso, eu acabei tirando o Maurício do Frejat, porque ele era tecladista do Frejat solo o tempo todo, foi produtor dos discos, fazia músicas com eles, mexeu essa panela toda. O Maurício voltou com muita vontade, se juntando a mim, ao Fernando e ao Rodrigo Santos. Aí o Rodrigo queria cantar, pediu para ser o cantor. Eu falei: “pô, mas você já canta Barão por aí, toda semana tem você cantando Barão, qual vai ser a novidade pras pessoas?”. Cantor careca não dá, pelo amor de Deus!
Já basta o Phil Collins…
Deixa ele lá que está ótimo! E aí o Maurício sugeriu o Rodrigo Suricato para ser o vocalista. Eu já tinha visto o Suri cantar na banda dele, achava interessante, achava que era uma grande revelação do rock dos últimos tempos no Brasil, não tinha visto ninguém com aquela linguagem de guitarra e de cantar. Fiquei bem interessado: antes mesmo do Frejat sair do Barão, eu tinha recebido um vídeo do Suricato num camarim cantando “Flores do Mal”, uma música minha e do Frejat. Achei legal, mas isso foi um ano antes do Frejat sair, aí que o Maurício foi lembrar do nome dele. Na hora, topamos, até porque o Suricato tem uma relação afetiva com o Barão. Ele está chegando agora, mas já ama o Barão desde criança, os irmãos mais velhos compravam os discos, ouviam juntos em casa. Quando ele chega na banda, como cantor, decidimos dar a camisa 10 para ele, para cantar e tocar guitarra ali junto com o Fernando. E ele fala: meu time de coração é o Barão Vermelho. Essa afetividade também soma para gente criar uma relação e as coisas começarem a funcionar.
Para comemorar esses 40 anos, vocês estão lançado um especial com quatro partes: “Acústico”, “Blues & Baladas”, “Sucessos” e “Clássicos”. Como foi chegar nesse formato, até porque tem um monte de blues do Barão que são clássicos, como é que funcionou isso?
Nós começamos pelo “Acústico”, foi algo que a gente sempre teve vontade de fazer. Chegamos a fazer um piloto há 30 anos para a MTV, mas que nunca foi lançado como um disco de carreira…
Só saiu como DVD, né?
É, exatamente, chegou a sair num box que tinha esse pequeno Acústico para a MTV, mas sentíamos que ainda queríamos ter um disco nesse formato, ainda mais para aproveitar o talento do Suricato com os instrumentos de corda. Sabíamos que ia vir um resultado bom desse encontro da obra do Barão com a sonoridade acústica. Os primeiros ensaios foram acústicos, e quanto tudo engrenou, percebemos que poderíamos fazer quatro discos, trazendo o repertório do Barão da forma mais abrangente o possível para os dias de hoje. Se você fizer uma comparação númerica, a gente deve ter gravado em torno de 150 músicas nesses 40 anos. Nesses quatro discos, temos 26 músicas, é um sexto de tudo que a gente fez. Sempre vai ser pouco, mas dentro do consenso e do bom exercício democrático, fomos conseguindo achar as músicas que combinavam com cada tema e construímos esse produto. Além dos discos, esse especial também virou uma série do Canal Bis, chamada “Barão 40”, com quatro episódios. E nós vamos levar para a estrada esse material todo, ficamos muito felizes com o resultado. É um momento maduro do Barão – mas também, se não estivesse maduro com 60 anos, ia ser demais, né?
É verdade…
E acho que as músicas foram muito bem defendidas, não tem exibicionismo de ninguém, tocamos para elas soarem grandiosas, bacanas. Tem vários arranjos novos, como o de “Maior Abandonado” na versão acústica, bem diferente do original, mas poderoso, ainda mais com a participação de Samuel Rosa. Outra foi “Por Você”, que tem o Chico César e o Marcelo Caldi, no acordeão. Os dois fizeram uma coisa de louco, levaram a música para outra esfera. Para mim, é uma das grandes pérolas desse encontro dos 40 anos.
Além do Samuel Rosa e do Chico César, que você já citou, tem outras participações nesse especial: o Frejat e a Jade Baraldo. Como foi convidar esses dois nomes? Foi tudo bem com o Frejat?
O Frejat foi o primeiro nome que nós pensamos. Pela história dele no grupo e também para mostrar que não havia nenhuma rusga entre nós. Foi muito importante, generoso da parte dele ter aceitado, de certa forma ele avaliza essa nova formação. E foi ele que escolheu a música, “Pro Dia Nascer Feliz”, um grande hit dele. Já o Samuel veio porque a gente queria ter alguém da geração posterior ao Barão – e isso ficou muito claro porque ele diz que nós somos professores dele, quando ele ouviu “Maior Abandonado” no rádio ele (percebeu que) teria chance de fazer canções em português. Parece que foi um chamado para ele, então foi muito bonito ter ele nessa nova versão. O Chico César é um craque da MPB, eu gosto dele desde o “Mama África”, e ele tem uma atitude rock’n’roll nas redes sociais, batalhando as ideias dele, então isso se comunicava muito com o Barão. A gente sempre prezou pela atitude, pela poesia, pela liberdade, isso sempre foi claro nas músicas do Barão. E ele nos deu uma surpresa em “Por Você”. Aí faltava uma mulher. A gente chegou a convidar a Paula Toller, mas ela estava ocupada nas datas que a gente ia gravar. E aí fomos pensando, até que o Suricato sugeriu a Jade Baraldo, que estava crescendo em popularidade, no trabalho dela. Eu não a conhecia, mas foi uma ótima surpresa. Achei que ficou muito parecido com aquele encontro dos Stones com a Christina Aguilera, que foi maravilhosa, ela mostra a calcinha ali cantando, pô, achei aquilo rock’n’roll demais. E depois é que eu soube que a Jade foi a Bete Balanço no musical “Casas de Cazuza”. As coisas foram se fechando, dando certo, e estamos aí.
Dos quatro especiais, o primeiro é o “Acústico”. O Barão tem ótimos momentos acústicos, mas acho que a marca do Barão são guitarras muito altas. Por que começar com o Acústico? Foi de propósito?
Foi. A gente tinha esse desejo do álbum “Acústico” há muitos anos e sabia que ia rolar coisa boa. Na turnê, não dá para fazer todo o show acústico, mas vamos embutir o set acústico dentro do show elétrico. Acho que vai ser uma surpresa para o público, mas depois a gente volta para o elétrico para dar aquela arrancada final, terminar o show lá em cima. Não tem como descalibrar o Barão, não tem por que esvaziar esse pneu.
A gente falou bastante do “Acústico MTV”, que nunca saiu direito. Por que não saiu? Foi culpa da MTV?
Vou explicar: quando a Warner nos procurou, dizendo que a MTV queria fazer um “Acústico MTV” com a gente, nós estávamos fazendo dez anos de banda, de rock’n’roll. A gente não queria fazer uma turnê acústica bem nessa marca. Achamos que isso ia matar a banda, pô, o Barão é uma banda de guitarras. E aí nós recusamos a oportunidade de lançar o disco naquela época. Aí veio Gilberto Gil, Titãs, todo mundo fez, maior sucesso, e o Barão ficou afastado porque a gente recusou. Era para o Barão ser o primeiro, mas poxa, comemorar dez anos de guitarra com um show acústico no banquinho? Ia ser decretar a morte. Então a gente fugiu do “Acústico MTV”, mas acabamos fazendo o programa. Fizemos uns três ou quatro ensaios, bolamos aqueles arranjos tipo “Bete Balanço” meio latino (assista acima), em que eu toco timbale, foi um show legal. Quem assistiu à gravação curtiu demais. Virou um programa da MTV que foi exibido e acabou. Mas não foi algo pensado, a gente fez como se fosse ali jogar uma pelada na casa do Chico Buarque, só treinamos uma jogadinha e fomos. Não investimos naquilo para ser um disco, não foram arranjos pensados, estudados, diferentemente desse “Acústico” de agora.
Uma coisa que chama a atenção na carreira do Barão Vermelho é que, diferentemente de outras bandas brasileiras dos anos 1980, vocês fizeram um intercâmbio muito intenso com outros grupos. Vocês têm parcerias ou gravaram músicas dos Titãs, dos Paralamas, do Engenheiros, do Renato Russo… jogavam bola com todo mundo. Por que é que vocês são assim?
Acho que a nossa geração do rock fez muito pouco esse exercício de frequentar as outras bandas. Sempre uma banda falava mal da outra, pô. Mas foi o seguinte: quando o Cazuza saiu do Barão, houve uma generosidade muito grande por parte dos outros membros de bandas, de quem escrevia, tinha facilidade com a palavra. Eles nos ofereceram músicas, Frejat também procurou alguns músicos, para a gente se resguardar de que o nosso primeiro disco sem o Cazuza não teria um declínio na parte de texto. A gente tinha algumas músicas com ele, mas ele levou várias para o primeiro trabalho solo, ficamos meio capengas, então corremos atrás. Eu fiz “Torres de Babel” e “Declare Guerra” com o Ezequiel Neves, o Frejat pediu letra para o Arnaldo Antunes em “Eu Tô Feliz”, que é um funk genial, depois ele continuou a parceria com o Arnaldo em “Quem Me Olha Só”, um blues lindo. O Antônio Cícero deu uma letra pra gente no “Declare Guerra”, que se chama “Bagatelas”, só mesmo um poeta da Academia Brasileira de Letras para usar uma palavra dessas. O Renato Russo passou “Boomerang Blues” pra gente, nós fomos os primeiros a lançar… enfim, as pessoas foram generosas conosco. E junto a isso, começamos a ganhar tempo para criar autonomia e andar sem o Cazuza, começamos a ter uma abertura muito grande de letristas, tem Júlio Barroso, até mesmo a Clarice Lispector a gente musicou em “Que Deus O Venha”. A gente busca substituir essa qualidade de texto do Cazuza, de uma forma mais diversificada, até que eu comece a escrever. Quando a gente chega na fase do “Supermercados da Vida”, do “Carnaval”, eu já estou bem forte nessa parte de letra. Ali, a gente mostra para o Cazuza que a gente ia sobreviver, fazendo coisas com a nossa assinatura. Eu lembro do Cazuza ir no [estúdio] Nas Nuvens quando a gente estava gravando o “Na Calada da Noite”, ele ouviu tudo, ouviu “Tão Longe de Tudo”, lembro dele falar: “porra Guto Goffi, que letra linda do caralho”. “Sonhos pra Voar” ele também adorou. E a partir dali a gente ganhou autonomia para fazer nossas músicas, sem aquela sombra do poeta genial que era o Cazuza, e o negócio flui.
Desses 40 anos, qual foi o momento mais difícil da história do Barão? Imagino que seja a saída do Cazuza…
Cara, o o momento mais difícil foi esse momento de hiato, em que a gente ficou parado e sem saber como mexer essa roda de novo para funcionar, já que a nossa existência estava muito atrelada à disponibilidade do Frejat. A partir do momento que ele diz que vai sair, foi uma carta de alforria, ficamos livres para correr atrás do que a gente queria. Acredito que esses momentos de pão e água, para mim, são os mais tristes, as saídas do Cazuza e do Frejat. Agora, por exemplo, se a saída do Cazuza não tivesse acontecido, eu jamais teria me tornado letrista e teria feito a quantidade de letras que fiz depois que ele saiu do Barão. O Frejat não teria se tornado cantor. E o bacana disso tudo é que se hoje o Cazuza e o Ezequiel estivessem aí, eles estariam participando dessa comemoração dos 40 anos. A gente construiu uma amizade muito boa dentro desse grupo, uma irmandade, uma família mesmo.
O que você acha que o Cazuza estaria fazendo hoje? Tem muita gente que fica conjecturando que se estivesse vivo, ele votaria no Bolsonaro, ia apoiar a Lava-Jato… O que você acha que ele ia estar aprontando hoje?
Jamais, cara! O Cazuza era um cara que combatia a caretice! Ele jamais estaria aliado a uma extrema-direita ou a gente que gosta de violência, que defende armas e guerras. O Cazuza era o oposto disso. Ele era um poeta, um pensador social. Você vê as letras dele depois que ele sai do Barão, são letras políticas, o poder de observação dele da nossa sociedade. Ele provocava, ele conseguiu mexer com muita coisa. Não conseguiu dinamitar a caretice, é muito difícil porque o Brasil é um país muito conservador, a arte está na mão da elite rica. São as pessoas que mexem a arte e são pessoas que não gostam de grandes mudanças, são pessoas conservadoras. Mas o Cazuza estaria no front ainda, fazendo músicas lindas. Ele poderia estar até cantando no Barão, sei lá, se ele enchesse o saco de cantar solo e decidisse voltar para o Barão. Esses dias, eu comentei com a Lucinha [Araújo, mãe de Cazuza] que ele foi um cara muito precoce em tudo. A impressão que eu tenho da passagem dele pelo Barão é que foi um cometa, um meteoro. Tudo nele foi precoce: a descoberta da homossexualidade, o envolvimento com drogas, a passagem dele no Barão foi muito urgente, depois a partida para carreira solo. E eu comentei com a Lucinha disso: “será que ele não sabia que o tempo dele ia ser mínimo aqui na Terra?”. Poxa, eu já vivi quase o dobro do que ele. Eu fiz 60 anos, ele morreu com 33. Dá uma angústia pensar sobre isso, um rapaz que foi ceifado da vida. Tem uma coisa muito séria, muito forte, mas ele conseguiu dizer muita coisa no pouco tempo que esteve aqui, porque ele era um ser iluminado, superior, tinha toda uma coisa… A escola da vida ele já sabia, não precisava ficar aqui sofrendo para aprender.
Pelo lado oposto, qual é o momento que você tem mais carinho da história do Barão, algo que você gostaria de voltar a viver todos os dias?
O momento de maior felicidade e intensidade é esse início do Barão, com Cazuza, Frejat, Dé, Maurício, a gente ali o tempo todo juntos, numa nave que a gente não sabia para onde ia, mas também não importava. A gente estava naquele sonho juntos, vivendo as descobertas juvenis, tendo uma banda de rock, a gente tinha 18 anos, o Cazuza tinha 23, o Dé com 15 para 16. Arrisco a dizer que foi a melhor época das vidas de todos nós, do Cazuza, do Frejat, do Dé, minha, até do Ezequiel, do Mário Almeida, que era o nosso empresário. Era um momento de muita luz para todo mundo, irradiava, acho difícil alguém ter tido momentos melhores do que aqueles. Mas para mim, esse momento agora também é muito bom. Conseguir ver o Barão crescendo de novo, o trabalho que estamos fazendo desde 2017, levando nossa mensagem nessa terceira formação, fico muito satisfeito de ver isso. O que eu quero é só isso: morrer feliz, né? O dia que chegar meu dia, eu vou poder dizer que fiz parte do sonho juvenil que se consagrou ao longo dos anos, pude viver e criar meus filhos com o dinheiro que a gente ganhou tocando música, com a profissão que eu escolhi.
Os Stones são uma das grandes inspirações do Barão. Se antes a gente não imaginava o Mick Jagger e o Keith Richards com 80 anos em cima de um palco, hoje eles estão aí para provar o contrário. Sua meta é chegar aos 80 tocando, que nem os dois?
Honestamente? Maior inveja, se Deus me der essa oportunidade… mas acredito que eu não tenha esse fôlego todo não, de morrer com 80 anos tocando bateria. O Suricato já me perguntou isso, se eu aguento até os 80. Eu falei que se for tocando Bossa Nova, tocando com vassourinha, até dá. Mas o rock’n’roll, nessa pegada visceral, exige muito fisicamente da gente, de todo mundo que está na estrada. Hoje eu só viajo para os shows um dia antes. Se tem show em Porto Alegre no sábado, na sexta eu já viajo, durmo e acordo lá, tomo café, faço uma boa preparação. Não tenho mais aquele pique de acordar 4h30 da manhã, ir para o Galeão, pegar vôo, chegar 11h da manhã em Porto Alegre, fazer rádio, almoçar, passar som e chegar inteirão para o show às 0h. Não tenho mais essa gasolina toda, mas com algumas precauções e carinho dá para ir tocando bem.
Tem que fazer academia?
Não, eu não faço academia, mas procuro me alimentar bem, não exagerar muito nas drogas também, né? Uma coisa evoluída, uma relação mais saudável com a bebida e com outras coisas, para poder ter um pouco de fôlego. O rock’n’roll é que nem futebol de salão: é correria, meu irmão. Tem que correr, pegar a bola, marcar, receber, ir lá fazer o gol, voltar correndo porque o outro time vai atacar. É frenético, então que estar bem de saúde.
O Barão sempre foi uma banda que teve muitos problemas com gravadoras, muitas tretas, até “Declare Guerra” é um pouco sobre isso. Nos últimos anos, porém, vocês tem organizado seus lançamento por uma empresa de vocês, a NBV. Como é viver essa fase em que vocês são donos da própria carreira?
É muito bom. Eu fico satisfeito de ter feito parte da indústria, foi uma escola para nós, ter gravado na Som Livre, depois na Warner, mas realmente, ter agora a oportunidade de escolher os caminhos, viabilizar a entrada de capital para bancar determinado projeto, tudo isso é muito bom. O bom da gravadora é o que? A grana que eles põe e os caras que estão lá e dizem que são especialistas em vender música, em criar sucesso. Mas na verdade, é o dinheiro que faz isso. É o investimento, é a gravadora chegar e te levar no shopping para comprar umas roupas, te levar nos programas. O artista recebia um suporte que nunca teve. Mas a gente está mais vivido e tem dentro da nossa empresa o recurso para fazer os projetos andarem. Nesse nosso projeto, tivemos aporte de investidores, é um mecenato, que é uma coisa que a arte precisa muito. E também precisamos de apoio do governo, das leis de incentivo públicas, a a arte precisa desse dinheiro. Fico muito feliz de ter pessoas que gostam do Barão e chegam junto para nos ajudar a realizar as coisas.
Guto, se você fosse para uma ilha deserta, quais seriam os cinco discos que você levaria com você?
Meu Deus, que pergunta difícil… Eu tenho que escolher um dos Beatles. Adoro um monte de gente, mas não tem como não levar um dos Beatles. Vou levar um do Martinho da Vila, o “Maravilha de Cenário”, que eu adorava. Foi o primeiro disco que eu comprei quando era criança, a capa do Elifas Andreato. Vou levar o “Construção”, do Chico Buarque, que eu ouvi muito, furei o disco mesmo. “Os Saltimbancos”, um disco da minha infância que tem muita importância para mim. O dos Beatles, qual eu ponho? Vou de “Álbum Branco”.
É bom que é duplo, você ganha mais músicas…
Hehehe, é verdade. E pra fechar, o “Selling England By the Pound”, do Genesis. Mas pô, é difícil, tem o “Synchronicity”, do Police, o “One Man Dog”, do James Taylor, discos do Bob Dylan. Cinco discos é sacanagem, pô, tem o “Secos e Molhados”, que eu também quase furei, eu ouvia muito na adolescência, no playground, com vitrolinha. Tem muitos discos brasileiros que para mim são emblemáticos, e depois é que vem o rock para mim. Primeiro com Yes, Triumvirat, Emerson Lake & Palmer, o próprio Kraftwerk, eu gostava disso em 1976, pô. Coisas precoces, o Led Zeppelin, o Pink Floyd, fora os caras de sempre, Janis Joplin, Jimi Hendrix, Jim Morrison, não dá para esquecer essa galera. Pô, da próxima vez você tem que me avisar antes ao fazer essa pergunta.
Vou continuar sacaneando, então: para um adolescente de 12, 13 anos, que está começando a descobrir que bateria é legal, eu queria que você indicasse cinco nomes para ouvir.
Vamos lá: para mim, o maior baterista de todos os tempos foi o Buddy Rich, um baterista de jazz, animal, um virtuoso. Ele começou desde os 2, 3 anos de idade. Ele tinha pais que eram atores, músicos, ele sapateava já com 3 anos, e levou aquele rudimento de sapateado para a bateria, é um assombro. O Gene Krupa, também, o Carl Palmer foi um baterista que eu curti demais. Tem um baterista brasileiro que eu me amarro, que é meu amigo, o Robertinho Silva, um grande músico. E pra fechar, o Billy Cobham. Tem muitos ritmistas fantásticos… pô, precisa colocar o Ringo! No especial dos Beatles, o “Get Back”, eu fiquei muito impressionado com o Ringo. A ausência dele respeita os outros…
Ele deixa os outros brigarem em paz!
É. Depois, ele sobe ali no telhado, meu irmão, ele entra e toca de uma maneira linda. Um dos outros vem sugerir que ele faça uma batidinha, ele aceita e já sai tocando. Pô, o cara já sabia tudo que ia tocar! É um baterista que tem esse estigma, ele e o Charlie Watts, muita gente acha que eles não são bons bateristas. Mas cara, a bateria não é um instrumento de solo, as pessoas tem que entender que a função da bateria é dar o ritmo para a banda levar a canção. Do início ao fim, os os bateristas que mais trabalham hoje são os que fazem isso, os que funcionam como um metrônomo. Ele entra na música, toca, assina o nome, pega o dinheiro e vai. Agora, os caras que ficam fazendo virada pra caramba, pá e não sei o quê, esses trabalham pouco.
Guto, pra gente fechar planos de 2022, o que que vem por aí nos próximos meses? Além do Flamengo campeão, é claro (a entrevista foi feita antes da final da Copa do Brasil contra o Corinthians)…
O Flamengo é uma grande paixão minha, nossa, o Rodrigo Santos também adora. O Frejat é Flamengo, o Cazuza era Flamengo. O que eu desejo mesmo é que a nossa banda, o Barão, tenha caminho livre para andar, que a gente tenha saúde, se harmonize bem para ter prazer juntos na estrada. Desejo que a gente tenha grandes noites juntos e possa celebrar com o nosso público, reunindo essa tribo de novo para festejar conosco.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.