de Ismael Machado
Faltava só uma semana pro concurso, quando os gambé, tudo gorilão, entraram arregaçando. Foi pipoco pra tudo que é lado. Meu irmão, meu mano, ficou lá no valão, demorou pra gente catá ele. Ninguém deixou a mãe ver a cara dele. Tava destruída. A mãe é foda, forte pra caralho, guerreira, mas não era justo.
Se falou em cancelar o bagulho, mas o concurso de dança é tradição. Ano passado meu brother levou. Foi com um som do James Brown, tá ligado? Saca o cara?
Esse ano ele queria repetir a dose. Tinha um otário aí que ele sabia, tava fazendo uns passos de Michael Jackson e dizia que esse ano não tinha pra ninguém. O mano dava a letra: esse Michael Jackson virou branquelo, traíra.
Ele não abria pra ninguém qual era a desse ano. Eu sabia. Eu dei uma espiada. Só na manha. Quando a gente voltou do cemitério, eu levei uma ideia com minha irmã. Disse que nóis ia fazer o certo, o bonito pelo mano. Ela ia me dá uma força. Foi uma semana no suor. Na moita.
No dia da festa, ninguém esperava, mas eu cheguei chegando. Passei o som pro DJ. E aí, véio, quando o MC anunciou, não teve pra ninguém. Com a cara do meu irmão no peito da camiseta, fui pro meio do salão e dei os papos, bem alto, ‘essa é pra ti mano’.
Minha irmã não sabia se ria ou chorava. Sei que o troféu tá lá em casa, junto da foto do mano.
A música? Ah, véio, era do Prince. “When doves cry”, tá ligado?
– Ismael Machado é escritor, roteirista e diretor audiovisual. Publicou cinco livros e é ganhador de 12 prêmios jornalísticos. Roteirista dos longas documentários “Soldados do Araguaia” e “Na Fronteira do Fim do Mundo” e da série documental “Ubuntu, a partilha quilombola“.