texto por Leonardo Vinhas
fotos por Fernando Yokota
Quarta-feira de garoa e temperatura agradável na capital paulistana. Na Audio Club, Rodrigo Amarante e Mayra Andrade, duas atrações do Coala Festival 2022, antecipavam o festival com um aguardado side show que ainda contava com DJ Nyack. As apresentações de Amarante e de Mayra tinham grande expectativa, como comprovaria a reação da audiência em ambas as entradas de palco. Mas tanto os artistas como seus respectivos públicos (e sim, havia quem foi lá apenas para ver um dos artistas sem se importar muito com o outro) se mostraram muito diferentes na maneira de vivenciar a realização dessa expectativa.
Amarante e banda (que incluía outro Los Hermanos, o baterista Rodrigo Barba) subiram ao palco ao som de uma gravação de “Drama”, quase uma vinheta introdutória ao álbum homônimo de 2021, e logo entregaram “Maré”, uma das melhores composições da carreira solo de Amarante. Com seu suingue valorizado pela ótima percussão de Pedro Castanheira, a canção gerou empolgação e poderia até enganar quem não conhece a obra do carioca, levando esse hipotético ouvinte a esperar um show agitado e com alguma emoção à flor da pele.
Mas não. Amarante nunca se mostrou propenso a deixar temperaturas mais elevadas aquecerem suas músicas e seus discos solo. Claro que isso não é um problema per se, mas ao longo do show, ficaria claro como o músico intencionalmente sabota alguns elementos que podem trazer mais calor à sua obra ou mesmo ao show.
O primeiro bloco – com “Maré”, “Tango”, “Tanto” e “Nada em Vão” – chegou com leveza, simpatia e arranjos levemente modificados que se aproximavam mais do indie pop de boa cepa que da MPB pouco penetrável que caracteriza os discos solos de Amarante. Mas o que vem a seguir – “Mon Nom”, “I Can’t Wait” e “Eu com Você” – traz vários dos vícios que dificultam o acesso dos “não-convertidos” ao trabalho do homem: predominância de tonalidades baixas, arranjos ensimesmados, versos que estendem as sílabas ao limite da paciência. O resultado, nesses casos, é uma introspecção de faz-de-conta que mira a sofisticação mas acerta a afetação.
O show inteiro traria a convivência entre esses dois lados do compositor: o pop que podia ser mais pop, e a pretensão travestida de sofisticação. E quando vem uma canção como “O Cometa”, cantada em quase uníssono pelo público presente, ou “Tuyo”, fica mais fácil se dar conta o quanto nós, ouvintes, e o próprio Amarante perdemos. Nessas poucas ocasiões em que coloca seu costado pop ao lado de referências mais rebuscadas, o compositor entrega canções tão elegantes quanto calorosas, e também longevas, dignas de audições repetidas.
Bacana, não? Mas entre as duas aparece uma xaropice como “Tara”, ou, mais adiante, o sambinha sem requebro e preguiçoso de “Maná”, e os clichês ficam óbvios demais. O “não-fã” também não entende por que toda sugestão de que uma fruição será possível se vê sabotada pelo próprio setlist, que encarta duas ótimas releituras de “Um Milhão” e “Tao” entre um bloco solo ao violão extremamente soporífero (“Irene” e “Evaporar”, do Little Joy, ambas em versões mais monótonas que as originais) e uma desinteressante “The End”.
Aliás, esse “fim de show” foi especialmente curioso. Amarante e banda deixaram o palco após “Maná”, que até botou parte do público para dançar, mas logo retorna, provocando: “acharam que ia terminar em festa?”. E vem a citada “The End”, absolutamente anticlimática e sem brilho. Por que não pode terminar em festa? Por que as canções que podem ser simples recebem penduricalhos musicais que as tornam menos tragáveis? Por que temas pop de duas notas precisam ser revestidos de hermetismo? Com frequência, Amarante parece testar a disposição do ouvinte em se envolver com sua música, e leva esse “teste de fidelidade” para o seu show.
Não contente com esse final falso, ele ainda retorna para um segundo “bis”, sozinho ao palco para tocar “O Vento”, o último grande hit dos Los Hermanos, saudado ruidosamente e cantado a plenos pulmões por boa parte do público. E a banda ainda voltaria para “Pode Ser”, gravada originalmente pela Orquestra Imperial, executada sem muita vontade ou entrosamento, de modo que não conseguiu adesão do público nem ao fazer citação da manjadíssima “Descobri que Te Amo Demais”, célebre na interpretação de Zeca Pagodinho.
A impressão que dava era que público e artista tinham batido ponto numa espécie de reencontro pontual, um convescote polido e sem muita emoção. Uma pena, porque não era um público pouco disposto a se envolver, visto que o DJ Nyack conseguiu fazer corpos e sorrisos se mexerem com sua apresentação. Atuando durante a troca de equipamentos de palco, Nyack mandou um set com hits de diversas eras da MPB, conseguindo unir pop massivo e artistas cult de forma natural, dissolvendo qualquer resquício de frieza, apatia ou preguiça que pudesse ter se formado entre os presentes. Não é à toa que o Coala destaca os DJs como atrações individuais em seu lineup: com sets desse naipe, é um show à parte mesmo.
E com isso, os ânimos ficaram ainda mais elevados para receber Mayra Andrade. O “ainda mais” se justifica com facilidade: bastou a banda tocar duas notas de “Afeto” para o público reconhecer a canção e cantar seu onomatopéico refrão, deixando inequívoco o quanto aquele momento era aguardado. A canção abre o álbum “Manga” (2019), e a série de shows no Brasil – que começava ali no palco da Audio, se não contarmos a participação da cabo-verdiana no show de Criolo no Rock in Rio – era a despedida da turnê desse grande disco.
Como tal, o grosso do repertório foi de hits do disco. Alguns deles, como “Vapor di Imigrason” e “Pull Up”, eram cantados (e gritados) por um público que parecia estar esperando por ver essas canções sendo executadas em um palco há anos. E talvez estivesse mesmo, já que shows que estavam programados para rolar no Brasil em 2019 acabaram cancelados por problemas de produção. Mas é mais fácil apostar que, dentro de um universo mais limitado em termos numéricos, Mayra Andrade é mesmo a bola da vez: uma grande artista em um grande momento, reconhecida e admirada por um público que se mostra ávido em curtir esse pop cheio de temperos.
E sim, o termo “pop” é extremamente pertinente. E deixa evidente a diferença entre Amarante e Mayra: enquanto o primeiro dificulta o acesso à sua música ora com floreios musicais desnecessários, ora com pedantismo, Mayra usa a sofisticação a favor de uma entrega mais melódica, assimilável e duradoura. Sua banda, formada por músicos franceses (a cantora, hoje baseada em Lisboa, residiu em Paris por muitos anos), é excepcional, com destaque para o tecladista (que atua como um carismático sideman) e para o guitarrista – um baixista e um baterista (com um kit imenso que combina percussões acústicas e eletrônicas) completam o time. Mas não atuam com virtuosismo nem se entregam a exercícios estéticos que só fazem sentido para quem está no palco. Ao contrário, criam uma rica textura sonora para que Mayra possa deixar seu canto e seu apuro melódico guiarem as canções.
O entrosamento entre todos esses elementos ocorre durante o show todo, mas é explicitado em três momentos em especial: o primeiro é em “Tan Kalakatan”, que Mayra já havia executado no Rock In Rio com a banda de Criolo. Se lá houve quem dissesse que a canção “esfriou” a apresentação, na noite paulistana ela foi um dos pontos altos, mostrando que mesmo a introspecção pode ser calorosa, e com espaço suficiente para Mayra caprichar nas modulações de sua voz em curtos e poderosos scats.
Já “Manga”, a canção, ganhou mais groove, alguns breques instrumentais inesperados, e um andamento um pouco mais veloz, sem que isso subtraísse sua sensualidade (“vocês sabem o que quer dizer a ‘manga’ nessa canção, né?”, provocou a cantora). Nunca tantos brasileiros entoaram palavras em crioulo cabo-verdiano tão bem, e com tanta entrega, como naquele momento. O terceiro ponto alto da química musical entre Mayra e seus músicos foi seu retorno para o bis, com uma arrepiante versão à blues norte-africano. Mesmo ela tendo registrado uma versão do clássico de Dominguinhos acompanhada de Hamilton de Holanda e Yamandu Costa, a versão pegou quase todo mundo de surpresa, e não foi pouca gente que ficou visivelmente emocionada ali.
Mayra Andrade e sua banda fizeram um show cheio de vida, pulsante e sensual. Foi uma apresentação de música e pela música. Não havia necessidade de forçar catarse ou de criar instantâneos que funcionassem bem em mídias sociais: a ideia era apresentar um trabalho artístico belo e consistente, que permitisse um diálogo entre seus criadores e públicos – um intento cumprido com louvor, e melhorado pelo excelente trabalho do técnico de som Hervé, que acompanha a cantora.
A única nota destoante foi a participação de BK, que subiu ao palco para dividir as vozes em “Paraíso que me Cerca”, faixa que consta no EP “Cidade do Pecado” (2021), do rapper carioca. A mistura já não deu muita liga no estúdio, mas no palco as diferenças estéticas ficaram ainda mais gritantes, e o encontro gerou apenas aplausos polidos. Nada que desabonasse o rapper ou comprometesse o show, diga-se.
Saindo com chuva à 1h30 da manhã ficava claro que, enquanto side show de um festival, o Coala havia começado muito bem, cumprindo gáudio seu propósito de entretenimento (e mandando mal ao não considerar o público que depende de transporte público). Mas como música não é, ou não deveria ser, apenas entretenimento, cabe espaço para pensar mais nas diferenças das propostas da noite. E se depois desse longo texto cabe ainda falar em resumir, o resumo seria esse: enquanto Amarante se vê tentado a escapar para um umbiguismo pedante e elitista, Mayra Andrade consegue falar com muito mais gente sem vulgarizar sua criação.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/
O trabalho do Amarante nos Los Hermanos é muito bom mas o trabalho solo dele é um tédio só. Ver a grama crescer é mais emocionante que ouvir suas músicas solo