Ao vivo: Mato Seco, Chimarruts e The Wailers Band fazem festa reggae em SP

texto por Daniel Tavares
fotos por Fernando Yokota

De 1963 a 1981, Bob Marley and The Wailers, a banda que Bob Marley fundou (e deu nome) com Peter Tosh e Bunny Wailer, conquistou milhões de fãs e ajudou a popularizar o reggae no mundo inteiro. Bob se foi, Tosh também, assim como Bunny, mas o ritmo ficou na cabeça (e nos pés) das pessoas, dando origem a um número incontável de outras bandas, inspiradas nas mensagens de Marley e no ritmo característico, além de rendições da própria Wailers, formadas por estes ou aqueles músicos que participaram em algum momento da banda original, como a The Wailers (algumas vezes mencionada como The Wailers Band) ou a The Original Wailers. A The Wailers, banda que se apresentou no finalzinho do mês passado em São Paulo (mais precisamente no Espaço Unimed em 28 de agosto) foi formada em 1989, por Aston Barrett (codinomeado Family Man), baixista da banda original (e ocasionalmente guitarrista, percussionista e pianista). Hoje, nenhum dos membros originais permanece na banda. Barrett está aposentado, mas deu sua benção ao filho, Aston Barrett Jr, baterista, e este tem viajado o mundo com estes novos Wailers, celebrando o legado de Bob e, também, obviamente, de seu pai e daqueles que com ele tocaram.

A primeira banda no palco da casa de shows na Barra Funda foi a Mato Seco, do ABC Paulista (São Caetano do Sul, mais precisamente), que trouxe seu reggae mais ortodoxo, com mensagens ao mesmo tempo de paz e de resistência, mas sempre buscando propagar positividade. O público embarcou na oração e cantou junto a maioria das músicas. “Acreditamos no poder transformador da música, assim como transformou as nossas vidas, como nos deu um sentido muito melhor, plantando amor em nossos corações”, disse Rodrigo Piccolo, vocalista e guitarrista. “O reggae é isso. Muito obrigado a todos vocês que alimentam e se alimentam dessa música maravilhosa. A próxima música é uma reflexão de como nós (como humanidade) chegamos até aqui na história do planeta, achando que dinheiro compra tudo, mas aí vem a natureza e mostra como somos pequenininhos, como somos insignificantes e que o planeta estaria muito melhor se não tivesse nenhum de nós aqui. Essa é a realidade, mas a nossa soberba não nos deixa enxergar isso. Nos colocamos à parte de tudo, mas a gente entende que não somos à parte, somos parte de um todo. Essa é nossa reflexão e eu acho que é muito claro para cada um aqui que ainda acredita no amor, que ainda acredita no poder do amar, que nós fomos longe demais”, complementou, antes de iniciar o novo single, “Carta da Humanidade (para a humanidade)”, que, apesar do teor, faz questão de terminar de uma forma positiva. ” Ainda é tempo para quem acredita no amor”.

Mato Seco

“Não tem jeito certo de dançar o reggae. O certo é dançar o reggae. Deixar a música te levar”, comenta Rodrigo mais adiante. Ao longo do show que, fora o single novo, focou na história da banda, Rodrigo ainda espalhou mais mensagens de positividade e reflexão. “Você pode escolher a semente que quer plantar, mas a colheita é obrigatória. Por isso, leve amor, leve a luz. É bom amar, se sentir amado. É bom mostrar para as pessoas que nos amam o quanto elas são importantes. A vida é frágil. Certeza só temos duas, da hora da partida e do agora, do maravilhoso tempo que é o agora, o tempo presente”, o que resulta em muitas lanternas de celulares e isqueiros acesos em “Caminho da Luz”.

A seguir, uma versão para o clássico de Jorge Ben Jor, “Jorge da Capadócia”, acústico como todo o resto do show, numa bela versão (apesar de que dessa música é difícil fazer uma versão ruim). Fora os teclados, microfones, equipamentos e cabeamento para a captação dos instrumentos, não havia muita parafernália eletrônica no palco. Os músicos usavam violões ao invés de guitarras. E três percussionistas (às vezes quatro, com o saxofonista/trompetista Lincoln Martins e o próprio Rodrigo tocando algum instrumento pequeno). Adiante, Rodrigo diria “decidimos homenagear nossa história assim, acústico porque de certa forma foi como tudo começou, despretensiosamente”. Rodrigo concluiu o show mandando recado para os políticos, pedindo mais empatia, mas sem citar nomes ou bandeiras.

Mato Seco

Setlist
1. Vou Pedir a Jah
2. Resistência
3. Vou na fé
4. Tudo nos é dado
5. Carta da Humanidade
6. Caminho da luz
7. Jorge da Capadócia
8. Um novo lugar
9. Navegantes da Ilusão
10. Pedras pesadas


Chimarruts

Logo em seguida chega a gaúcha Chimarruts pedindo “Liberdade pra pensar, liberdade pra cantar, Liberdade pra cantar minha doce, doce música” trazendo consigo um reggae mais pope elétrico. Rafa Machado (voz e guitarra) e Nê (flautas, sax e programações) dividem com uma parte do público (que cantava cada frase) os vocais em algumas canções, embora a resposta ao Mato Seco tenha parecido um tanto maior.

Além dos hits que os fãs traziam na ponta da língua, a Chimarruts mostrou duas músicas novas: “Bom Dia” e uma outra que sequer tinha nome ainda. “As coisas acontecem quando menos se espera. É a vida, é a vida. Só quem tá de boa consegue perceber”, diz o refrão da segunda. Além destas e outras que foram importantes na trajetória da banda, se destacaram “Ana Lua”, em parceria com o conterrâneo Armandinho (e com quem dividem o estilo praia /reggae/ positividade) e o hit “Do Lado de Cá” (mas, já há alguns anos, sem a voz de Tati Portella).

Adiante, sozinho no palco, Rafa lembra o primeiro single (“onde tudo começou pra gente, há 20 anos atrás”), “Chapéu de Palha” e diz: “Eu não sou cantor. Sou só um rapaz latino-americano. Quem tiver feliz vamos se juntar nessa rodinha de violão plugada”. Rolou ainda um trecho de “Pais e Filhos”, da Legião, enquanto volta ao palco o resto da banda. Mas ao invés de cada um se posicionar com seus instrumentos, os demais se juntam a ele. E mais uma vez falam em democracia, sem citar nomes, até que Rafa não se contém e não consegue evitar cantar o nome de seu candidato.

Chimarruts

Setlist
1. Não rola
2. Marujo
3. Se For Embora
4. Iemanjá
5. Bom Dia
6. Pra Ela
7. O Sol
8. Saber Voar
9. Novo Começo
10. Ana Lua
11. (Canção nova, ainda sem nome)
12. Do Lado De Cá
13. Brisa Positiva
14. Chapéu de Palha
15. Versos Simples


The Wailers

Mas é claro que o principal motivo para tirar o público de casa em um domingo tão frio foram a The Wailers tocando o pentateuco (e um pouco mais) do reggae. O surinamês, fenômeno do The Voice holandês, Mitchell Brunings, o respeitável guitarrista Wendel “Junior Jazz” Ferraro, o alicerce do som Owen “Dreadie” Reid no baixo, as competentes vocalistas Tamara “Teena” Barnes e Anne-Marie Thompson, o “dono da banda” Aston Barret Jr. (Family Man’s Son) e um tecladista que mal devia ter idade para ter carta de motorista, mas que dominava seu instrumento subiram ao palco pouco depois das 21h para êxtase do público. Embora tenhamos que lamentar a ausência de Donald Kinsey, do magistral Kinsey Report (se você não conhece essa banda, corra atrás agora) o que se viu no show foi um real desfile de clássicos e perfeito apuro técnico. E a voz de Mitchell realmente impressiona pela semelhança com a do Rei do Reggae, o imortal Bob. E começar com “Lively Up Yourself” e toda a sua excelência instrumental foi realmente começar com o pé direito.

Mitchell arrisca várias palavras em português (obviamente seguindo um roteiro para o qual já tinha se preparado antes, substituindo apenas o nome da cidade). “Isso, Sao Paulo. Mais forte. Fala galera de São Paulo, fala comigo” e já mandou um dos maiores sucessos conhecidos na voz de Marley, “Is This Love”. Jr. Jazz, além de ter sua carreira solo também foi vocalista em alguns trabalhos. Ele também tem um trabalho formidável no “Easy Stars All Stars”, uma das bandas de reggae mais legais que já surgiram, conhecidos pelos covers de sucessos de Beatles, Radiohead e Pink Floyd (incluindo o “The Dark Side of The Moon” inteiro) em ritmo reggae. O guitarrista assume os vocais em “Irie”, de “I.d.”, o primeiro álbum desta Wailers. “Vocês entendem quando eu digo ‘Irie’. É quando você se sente muito bem, especialmente depois de shhhh”, deixou o complemento no ar, como fumaça.

The Wailers

Brunings reassume os vocais para mais clássicos que tiveram a voz de Bob, “Positive Vibration”, “Satisfy my Soul” (e Clapton) “I Shot the Sheriff”, gerando muitos gritos, assobios, algazarra. “Oi, São Paulo você quer reggae music”, arrisca em português. “Destiny”, mais uma da carreira propriamente dita dos Wailers, é cantada pelo chefe, o baterista Aston Barrett Jr, com o auxílio das backing vocais (e do próprio Brunings se juntando ao duo de cantoras). E, nessa alternância, chega a vez de um dos maiores sucessos de Bob (que no Brasil ganhara voz e letra de Gilberto Gil), “No Woman No Cry”, que emocionou a plateia (nem precisava mudar aqui o nome de Trenchtown para São Paulo).

“São Paulo, vocês amam reggae music? Vocês amam os Wailers? Porque os Wailers ama vocês [SIC]” arrisca novamente Brunings entre mais um e outro sucesso jamaicano. Desnecessário dizer que o público canta junto em praticamente todos eles, como em “Buffalo Soldier”, explodindo especialmente na hora do “io io io – io io ioio”. E vamos da música dos três passarinhos colada a “One Love” e um “é nóis”, finalmente algo realmente fora de algum script. É isso aí. TMJ. Em “Jammin'” todos os olhares se voltam para o jovem tecladista (não conseguimos descobrir o seu nome nos sites da banda – se você souber, pode nos ajudar com um comentário). E como um John Lord do reggae ele mostra que não é à toa que conquistou seu espaço na banda. Depois é hora de Aston fazer seu solo também, seguido da extrovertida Teena e da mais contida Ane Marie e de Jr. Jazz, maltratando os pedais sem pena.

The Wailers

Enfim, o show passou muito rápido. Poderia ter mais. Afinal, a música de Bob é uma fonte inesgotável de prazer e mesmo novas descobertas em meio à tanta sonoridade conhecida desde as infâncias. Todos, menos o baixista Owen Reid, saem do palco. Ele nem sai, na verdade, mas vem mais para a frente agitar e se comunicar com o público (ficara o show inteiro em seu posto ao lado da bateria). A ele se juntam Michael, afirmando, em inglês, que o Rreggae é amor, paz e unidade. Concordamos. “Vocês querem mais um? Mais dois? Mais vinte?” E, misturando inglês e português, “Então, porque amamos vocês, vamos tocar mais três”. E pediu celulares acesos. Agora, com o palco completamente às escuras, mas o Espaço Unimed completamente iluminado pelos celulares, Michael, Owen e Jr Jazz (que havia retornado) tocam de forma geradora de lágrimas a canção que apresentou o surinamês ao mundo na Holanda, “Redemption Song”. Como é fácil de deduzir, foi um belo momento. E, agora, com o resto da banda de volta ao palco, parecem terminar o show com “One World, One Prayer”, principal single e música que abre seu disco novo, “One World”. Mas ainda havia uma última surpresa. Michael menciona a Mato Seco e a Chimarruts e os dois cantores vem para o palco para “Could You Be Loved”, tornando tudo (ainda mais) uma festa reggae. Os três vocalistas dividem os vocais, mas também brincam no palco. No fim, tudo é festa. É o amor pela música do Bob.

Apesar de algumas ausências como “Get Up Stand Up” e “Stir It Up” e de um show um tanto engessado, como se ainda estivessem encontrando o seu lugar, sua própria personalidade (é preciso homenagear Robert Nesta, mas a linha entre o tributo e a imitação é tênue), com a excelência técnica e o apelo emocional do repertório, o saldo da noite foi bem positivo. Novas e antigas gerações de Wailers, novas e antigas gerações de regueiros mundo afora continuarão levantando um pé após o outro e abraçando a música de Bob Marley, de Peter Tosh, de Bunny Wailer, de Family Man, dos Wailers.

The Wailers

Setlist
1. Lively Up Yourself
2. Is This Love
3. Irie
4. Positive Vibration
5. Satisfy My Soul
6. I Shot the Sheriff
7. Destiny
8. No Woman, No Cry
9. Kinky Reggae
10. Rat Race
11. Buffalo Soldier
12. Coming in From the Cold
13. Three Little Birds
14. One Love
15. Jamming

16. Redemption Song
17. One World, One Prayer
18. Could You Be Loved

The Wailers

– Daniel Tavares (Facebook) é jornalista e mora em Fortaleza. Colabora com o Scream & Yell desde 2014.

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