texto por Renan Guerra
“Boiling Point” (2021), de Philip Barantini, fez uma bela carreira em festivais e premiações desde o ano passado, incluindo aí quatro prêmios no British Independent Film Awards e quatro indicações ao BAFTA Awards. Depois de uma certa espera (lá fora o filme já está disponível na Netflix desde março desse ano), o longa chegou agora em poucas salas de cinema brasileiras sob o título de “O Chef” – nome meio comum, se considerarmos que já há outro filme chamado “Chef”, de Jon Favreau, 2014, e que a tradução de “Boiling Point”, “Ponto de Ebulição”, seria um ótimo nome para todas as tensões que vemos na tela. Enfim, questões de tradução e lançamento a parte, o ponto é: se você ainda não viu “O Chef”, tente assistir o quanto antes nos cinemas, pois é uma experiência imersiva maravilhosa.
O longa acompanha o chef de cozinha Andy (Stephen Graham) em uma noite movimentada em seu restaurante, em que a tensão do trabalho colide com os problemas pessoais dos personagens, gerando um filme extremamente tenso, em que o espectador acompanha o movimento da cozinha e do salão do restaurante através de uma câmera que passeia entre chef, souis chef, confeiteiros, barmans, garçons e clientes, num ritmo extremamente bem coordenado e que nos coloca dentro dessa história de forma que ficamos atordoados. O fluxo é tão rápido e tenso e tão bem roteiriziado que o espectador fica nervoso quando uma garçonete tem que voltar a uma mesa de clientes mal-educados ou quando um prato ainda não está pronto ou mesmo um ingrediente está em falta.
Tudo isso é possível graças ao roteiro extremamente bem amarrado, que tem um recorte temporal muito específico e consegue reunir personagens complexos em um mesmo espaço, em que suas questões se embatem e se sobrepoem, tudo apresentado com requientes técnicos de um filme que foi gravado em um único plano-sequência. Primeiro vamos falar sobre o roteiro: Philip Barantini e James Cummings criaram um roteiro guia com todos os pontos do filme bem estabelecidos, com um arco narrativo bem detalhado de cada personagem e com um desenrolar bem definidor das ações, porém os diálogos eram abertos para a improvisação do elenco. No script de cada personagem havia apenas bullet points para os diálogos, que foram desenvolvidos ao lado do elenco em três semanas de ensaio.
Para o plano-sequência, a ideia deles era gravar oito takes do filme em quatro dias, isto é, duas vezes por noite eles gravariam todo o filme e aí depois seria definido o take final. A data inicial de gravação era 16 de março de 2020. Eles gravaram dois takes nessa noite, que não estavam 100% bons, porém no meio da madrugada, a produção descobriu que o dia seguinte seria o último dia de gravação. Em função da COVID-19, eles tiveram que fazer acontecer naquela segunda noite. Com mais dois takes, o primeiro take gravado nessa segunda noite foi o escolhido para se tornar o filme que vemos hoje nas telas.
Gravado em um restaurante real, a produção teve que se adaptar com os espaços pequenos da cozinha e com a captação de áudio do local. Todo o equipamento utilizado foi pensado para alcançar a melhor qualidade possível dentro desse espaço pequeno e isso é eficaz nas passagens da câmera pela cozinha, com sua luz branca e muito mais forte, para o espaço do salão, com uma luz mais baixa e acolhedora. O resultado de áudio é surpreendente, pois conseguimos essencialmente ter aquela sensação de restaurante, com pequenas conversas ao fundo, tilintar de copos, barulhos de talheres e tudo mais – na sala de cinema, fica aquela sensação como se tivesse sempre um burburinho em nosso entorno, o que só aumenta a tensão.
E você deve estar perguntando: quanta tensão há em um filme de restaurante? O que há pra se acompanhar em uma hora e tanto em uma cozinha? “O Chef” parte de experiências reais de Philip Barantini, que trabalhou em restaurantes antes de ir pra trás das câmeras, e conta essa história que está no campo das relações humanas: como lidar com o outro num espaço de stress? Como lidar com os nossos próprios problemas perante os problemas do outro? No final das contas, “O Chef” é um filme sobre o universo de trabalho, sobre como somos submetidos a relações negativas, até violentas, em ambientes de trabalho, por que é isso que se espera, dentro do sistema do trabalhador. E esse cenário do filme poderia ser transposto para tantos outros espaços e ainda teríamos as mesmas relações a se repetir.
Tudo o que citamos acima, desde o roteiro, direção e as questões técnicas, se sustenta, no final das contas, devido a um elenco bem afinado que cria essa sensação de equipe de trabalho, com amizades, romances e rixas. Destaca-se a atuação firme e intensa de Vinette Robinson, atriz com carreira na TV inglesa e aparições em séries como “Sherlock”, “Black Mirror” e “Doctor Who”, e que aqui interpreta a sous chef Carly. A espinha dorsal do filme, porém, está em Stephen Graham, ator famoso por filmes como “This Is England” (2006) e “Snatch – Porcos e Diamantes” (2000), que aqui dá vida ao chef Andy. Graham cria nuances e complexidades para o seu personagem, nos causando encanto mesmo nas falhas de Andy.
“O Chef” é um filme poderoso, interessante em suas minúcias e que emociona por sua verdade ao filmar a cozinha de um restaurante chique com bem menos glamour do que os reality shows de TV costumam mostrar. Não perca.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.
Adorei o filme, valeu pela dica