texto por João Paulo Barreto
“É mais fácil cultuar os mortos que os vivos”. A frase é de uma canção de Zeca Baleiro. Recentemente, ao pensar em Sixto Rodriguez e sua trajetória de vida, cujo aniversário de 80 anos aconteceu no último dia 10 de julho, essa letra me veio à mente. Sixto Rodriguez, que lançou dois discos arrebatadores em 1970 e 1971, mas em seu ingrato e racista Estados Unidos da América, nada para além dos limites de sua cidade, a fria Detroit, alcançou. Sixto Rodriguez, que passou anos trabalhando como pedreiro e demolidor na construção civil, enquanto, sem saber, era ídolo de toda uma geração do outro lado do Atlântico. Sixto Rodriguez, que para todo um país da magnitude da África do Sul, era maior e vendia mais discos do que Elvis Presley. Sixto Rodriguez, que, ainda vivo, era cultuado como se tivesse, realmente, cometido suicido com fósforo e gasolina em cima de um palco sujo e mal iluminado em algum inferninho de Detroit, fazendo valer, assim, os versos cantados por Baleiro décadas depois.
A simbologia da comparação proposta aqui entre ele e alguém do impacto midiático de Elvis é algo que vai além do simplório achismo, para além da simplória ideia comparativa entre a capacidade de influenciar/causar as mesmas mudanças culturais que o Rei do Rock, ou até mesmo o equivalente caucasiano de Rodriguez em termos de capacidade de composição e singularidade vocal, mas que, estando no lugar certo e na hora certa, deixou de ser Robert Zimmerman para se tornar Bob Dylan.
A análise entre a ausência de reconhecimento em solo americano de alguém como Rodriguez comparada a nomes tão importantes quanto Presley e Zimmerman não busca apenas a surpresa diante da injustiça que lhe acometeu, mas, sim, uma reflexão sobre a fragilidade e a fugacidade da fama, além, claro, acerca da desonestidade vinda do meio empresarial artístico. Em certo momento do brilhante documentário escrito e dirigido pelo sueco Malik Bendjelloul, o vencedor do Oscar “Searching for Sugar Man” (2012), Rodriguez é arguido sobre as possíveis “mudanças para melhor” que a sua vida teria caso sua gigantesca aclamação na África do Sul chegasse até ele ainda durante os anos 1970 e 1980. A réplica do homem que passou quase toda sua vida sem saber o quão gigantesca era sua própria lenda se constrói diante da plenitude que apenas a maturidade traz: “não sei se teria sido para melhor”.
É o tipo de resposta de alguém que, há mais de dez anos, com quase 70, quando gravou esse depoimento para o filme que desnuda sua trajetória, já sabia das possíveis armadilhas que o deslumbramento diante da fama poderia trazer (não a toa, apenas dias antes de seu aniversário de 80 anos ele começou a receber os royalties de seu sucesso). Mas é impossível não imaginar uma realidade alternativa na qual Rodriguez, com sua ascendência cultural perceptivelmente diversa da “aceitável” na racista América, torna-se o porta-voz de todo um país ainda assombrado pelo guerra do Vietnã, pela corrupção política de Nixon, pelos conflitos étnicos e pelas outras turbulências sessentistas a balançá-lo há cinquenta anos.
Vivendo onde nasceu, na capital do estado do Michigan, Detroit, decadente cidade ao nordeste dos Estados Unidos, na congelante e quase inóspita fronteira com o Canadá, Rodriguez (cujo nome entrega a citada ascendência mexicana oriunda de seu pai, enquanto seus traços faciais, a herança nativo-americana vinda de sua mãe), lançou-se em uma carreira musical no final dos anos 1960, já com quase 30 anos idade. Aos 25, em 1967, sob a alcunha de Rod Riguez (uma necessidade de se adaptar ao mercado linguisticamente ignorante de seu país), lançou o single “I’ll Slip Away”.
Após criar certo burburinho na cena local, com apresentações em bares como The Sewer, cuja tradução literal (O Esgoto) entrega a autoestima do lugar, voltaria a gravar somente três anos depois, em 1970, quando entregou a obra-prima “Cold Fact” e, no ano seguinte, sua opus magnum intitulada “Coming from Reallity”. Empresário e produtor esperavam pelo boom. Nada aconteceu. Talvez tenha havido algum erro publicitário. Talvez seu estilo de letras com um cunho de análise social e político remetesse demais ao citado Dylan. Os anos 1960 haviam acabado recentemente. Nas rádios, o rock britânico do Led Zeppelin, Deep Purple e David Bowie, juntamente aos estadunidenses Crosby, Stills, Nash and Young, Allman Brothers e Velvet Underground, para citar apenas três de cada lado do Atlântico, atacavam pesado.
Alguns artistas possuem a capacidade de, com suas letras, alcançar de maneira profunda a consciência de seus ouvintes. Soa como uma romantização barata afirmar isso, mas não é. Hoje, quando qualquer um almeja a fama instantânea (geralmente fugaz e baseada na mediocridade) através da internet, pensar que alguém como Rodriguez passou quase 40 anos até que seu talento fosse reconhecido mundialmente é daquele tipo de fato que nos causa assombro. Quando, em 1997, ele foi “encontrado” pelo jornalista e pesquisador musical, Craig Bartholomew-Strydom, que o procurava em um período no qual a internet engatinhava e quando o autor precisou buscar pelas pistas que o músico desaparecido deixara em suas letras gravadas, gradativamente o quebra-cabeças de onde estava Rodriguez começou a demonstrar um norte.
Após esse contato, uma primeira visita à África do Sul na mesma época, naquele distante final de década, shows com ingressos esgotados e um primeiro encontro no qual a plateia apenas o aplaudia e saudava por longos e longos minutos enquanto o contrabaixo de “I Wonder” parecia marcar os batimentos cardíacos daqueles que estavam presentes àquele momento único da História da Música.
Sixto Rodriguez, que não cometera suicídio com gasolina e fósforo em algum palco mal iluminado de Detroit, tampouco estourara os próprios miolos no mesmo palco ou cedera à violência mortal do preço cobrado pelo coice de uma agulha em seu braço. Sixto Rodriguez que, mesmo tardiamente, teve seu talento reconhecido mundialmente, apenas olhou sorrindo abismado para aquela plateia branca e caucasiana da África do Sul, que usou suas letras como um incentivo na luta contra o Apartheid nas décadas anteriores.
Sixto “Sugarman” Rodriguez olhou para aquelas pessoas a saudá-lo e disse: “obrigado por me manter vivo”. Da maneira mais surpreendente possível, aquele senhor que agora completou 80 anos se tornou imortal.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.