texto de Gabriel Pinheiro
Em 1986, o quadrinista estadunidense Art Spiegelman lançou a primeira parte do que se tornaria uma pedra fundamental das hqs contemporâneas, “Maus”. Em 1992, o trabalho foi vencedor do Pulitzer, primeira e única graphic novel a alcançar tal feito. “Maus” realiza um gesto duplo. A obra dá forma às memórias do pai do artista, sobrevivente – ao lado da esposa e mãe de Art – dos campos de concentração nazistas na Segunda Guerra Mundial. Em paralelo, também busca refletir sobre a própria relação entre pai e filho, marcada pelo trauma, pela distância e pelo silêncio. “Era difícil ter que pensar no meu passado, e era difícil lidar com a presença do meu pai, tanto metafórica quanto efetivamente.”
25 anos depois, em 2011, Art Spiegelman retornou ao seu trabalho mais famoso, em um projeto ambicioso e singular, “Metamaus”, onde analisa e reflete minuciosamente sobre sua obra-prima. Agora, “Metamaus” é, enfim, lançado no Brasil, em uma edição luxuosa pela Quadrinhos na Cia., selo da Companhia das Letras, com tradução do Érico Assis.
A espinha dorsal de “Metamaus” é uma série de conversas gravadas entre Art Spiegelman e a professora Hillary Chute, realizadas entre 2006 e 2010. Hillary teve acesso total ao arquivo do artista, como cadernos de anotações, esboços, artes originais, livros de referência e diários. Aliás, o diálogo também é o que estrutura a narrativa de “Maus”, no caso, sessões gravadas entre pai e filho, Art e Vladek Spiegelman, ao longo de uma década, de 1972 a 1982.
Além de material para o trabalho artístico, as conversas com Vladek também são uma forma de aproximação entre pai e filho. Art diz em “Metamaus” de gravações com o pai que repetiam os mesmos temas e informações: era apenas uma maneira de permanecer próximo do pai e de passar mais tempo com ele. “É irônico que a zona de segurança na relação com meu pai se estabeleceu falando sobre os momentos em que ele esteve menos seguro na vida, e quando só havia riscos e desastres por todos os lados”.
A questão da memória é fundamental nas conversas de Art e Hillary em “Metamaus”. Lembrando do pai, Spiegelman reflete sobre o tempo. Como ele apaga a memória, parece borrar suas bordas. Também, sobre a dor que ela carrega. “O tema de Maus é como recuperar a memória e, enfim, a criação da memória. A história de Maus não é apenas a história de um filho que tem problemas com o pai, e não é apenas a história daquilo pelo que um pai passou. É sobre um cartunista tentar visualizar aquilo pelo que seu pai passou”.
Entre as inúmeras curiosidades que o artista revela no livro, está o quadro sobre o qual mais se debateu no processo de criação de “Maus”: os ratos gritando da fossa-crematório. Ele diz sobre o medo de banalizar o sofrimento judeu, de conferir uma abordagem melodramática, o que o fez desenhar este quadro, repetidamente, dezenas de vezes. Noutro ponto, ele comenta sobre as referências do cinema e da fotografia para o desenvolvimento da obra, citando obras como “Noite e Neblina”, de Alain Resnais, e “Shoah”, de Claude Lanzmann, além de diversos registros fotográficos dos campos, incluindo fotografias clandestinas. Algumas dessas, inclusive, serviram de referência para a criação de quadros de “Maus”.
Art diz de suas viagens de pesquisa para a Auschwitz, sobre a necessidade de entender o funcionamento daquele espaço, toda a sua arquitetura, para o desenvolvimento do quadrinho. “Talvez para superar minha própria aversão, tentei ver Auschwitz da forma mais clara possível. Foi a minha maneira de me forçar a ver aquilo e também de forçar os outros”.
Nas conversas com Hillary Chute, Art Spiegelman também analisa o sucesso e o impacto de “Maus” na cultura, a importância do trabalho na maneira como os quadrinhos passaram a ser percebidos por crítica e público. “Eu fiz um livro para durar, e foi sua estrutura extremamente articulada que serviu como esteio para mim e para a obra”.
Ele diz ter imaginado o sucesso apenas postumamente, sendo tomado de assalto com o sucesso imediato da obra. “De uma forma neurótica, reagi com anedonia ao sucesso de Maus, passando os vinte anos seguintes tentando me esquivar da minha própria realização”. Ele comenta, ainda, sobre o choque de alcançar a fama ao desenhar tantas mortes. “Me deixou doente… aquilo me fez tentar cavar um buraco de rato e sumir”.
Art Spiegelman relembra o incômodo ao ver o segundo volume do quadrinho estrear na lista de livros de ficção mais vendidos do New York Times, o que levou à escrita de uma carta aos editores do jornal. “Bom, se vocês tivessem uma seção de literatura e de não literatura, tudo bem, mas ficção quer dizer que foi inventado, e nesse caso seria um livro bem diferente desse que estou fazendo”.
“Metamaus” ainda conta com uma infinidade de materiais extras ao longo de suas páginas, como esboços inéditos e uma série de outros quadrinhos e tiras criados por Art para diferentes publicações que dialogam com sua obra mais famosa. Há ainda a transcrição integral da primeira série de conversas entre Spiegelman e seu pai em 1972: “Essa é minha história, amigos. Essa era história de eu e meu esposa e por milagre nós dois sobrevive. (…) Esperamos que isso não se repete, em século nenhum, nem para judeus nem para outras”, Vladek diz em uma dessas conversas.
Como se não bastasse a riqueza do material que compõe o livro, “Metamaus” ainda traz encartado um DVD com a versão digital de “Maus” e links para um vasto arquivo de áudios com as entrevistas com Vladek, documentos históricos e ainda mais esboços e anotações do autor. “Metamaus” é um trabalho fundamental para amantes da nona arte e para aqueles que se interessam por processos criativos. Oportunidade única em adentrar a mente de um gênio e conhecer os detalhes que o levaram a criação de sua obra-prima.
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.