texto por João Paulo Barreto
“Goodfellas” (“Os Bons Companheiros”, no Brasil), obra-prima que Martin Scorsese lançou em 1990, já passou dos 30 anos (e contando). Isso representa, aliás, muito mais tempo que Henry Hill, pessoa real que inspirou o protagonista do filme, passou dentro do mundo da máfia (25 anos, entre 1955 e 1980). Da mesma forma como a estrada do garoto de 12 anos que começou seu contato com os Ciceros, família de criminosos com atividades nos subúrbios de Nova Iorque, a estrada do filme de Scorsese durante estas três décadas foi de ascensão e alcance de um status de admiração únicos. Aqui, claro, dentro da História do Cinema. No caso de Hill, essa evolução dentro de um glamour criminoso teve um norte diferente. Nesta relação temporal das duas trajetórias, usadas neste preâmbulo como simples ilustração comparativa, a diferença da trágica virada de Henry Hill encontrou sua derrocada de maneira bem menos “brilhante” do que os seus engenhosos e lucrativos esquemas.
Em uma das frases proferidas por Hill (na ‘voice over’ precisa de Ray Liotta, falecido em maio), a definição de sua existência em uma simples bravata: “Se nós queríamos alguma coisa, apenas pegávamos. Se alguém reclamasse, apanhava tanto que nunca mais abriria a boca.” No mesmo contexto, o golpista definia a sua ideia de mundo: “Não havia outra forma de viver para nós. Aqueles que trabalhavam em seus empregos de merda, por um contracheque vagabundo, preocupando-se com boletos e pegando metrô cheio, estavam mortos. Não tinham a nossa coragem.” Na visão deturpada de mundo daquele garoto que crescera em uma casa com outros seis irmãos (um deles paralítico), um pai eletricista (e de temperamento explosivo), uma mãe dona de casa, todos passando dificuldades financeiras, conseguir um destaque social mesmo dentro do crime e se tornar um gangster era “melhor do que se tornar presidente dos Estados Unidos”. A ironia de ver, 30 anos depois, milicianos e pretensos gangsters nos cargos mais altos daquele país e do nosso é de nos fazer lamentar com os dentes trincados.
Na obra baseada em fatos reais, o verdadeiro Henry Hill inspirou o livro escrito pelo jornalista Nicholas Pileggi, que lançara, em 1985, “Wiseguy – Life in a Mafia Family”. Pileggi entrevistou Hill durante anos, após o seu acordo de delação com o departamento de narcóticos dos Estados Unidos. Quando, após a publicação do livro, o telefone tocou na casa de Pileggi e, do outro lado linha, alguém falou: “Aqui é Marty, o diretor”, Pileggi respondeu: “Sei quem você é. Eu venho esperando por uma ligação sua a minha vida toda”. Não para menos. O intenso livro escrito por Pileggi tinha todas as características visuais de uma obra dirigida pelo homem por trás de “Touro Indomável“.
Lá estava a trajetória de um homem solitário (aqui, apesar de seu título retratar uma irrestrita amizade, a figura de Henry Hill acaba desamparada), cuja luta pelo sucesso financeiro e o ato de tornar-se escravo de um consumismo e estilo de vida não poderiam ser ações mantidas de maneira inabalável por muitos anos. Lá estava o desenhar de um país megalomaníaco, de uma realidade opressora, e de um esforço hercúleo de se manter são. Já havíamos presenciado trajetórias semelhantes em “Caminhos Perigosos” (1973) “Alice Não Mora Mais Aqui” (1974) e “Taxi Driver” (1976), obras de Martin Scorsese que também narram aquele esforço de sanidade dentro de uma vida que pode ou não ser honesta. Mas o alcance de reflexão trazido por “Goodfellas” dentro dessa análise de um país e das ambições de um povo era singular, só vindo a ser reprisado à altura por Scorsese na sua outra obra-prima, “O Irlandês” (2019).
A ascensão e queda de Henry Hill são destrinchadas passo a passo. Em uma cena chave do longa, vemos Hill se desesperar e chorar feito uma criança ao saber que Karen, sua esposa (e cúmplice no tráfico de drogas, vivida por Lorraine Bracco), descartou sua última carga de cocaína, aquela cuja venda ia permitir que ele se reerguesse. No desespero, senta-se ao chão do quarto e coloca a mãos no rosto entre as lágrimas de um choro compulsivo dele e de Karen. Scorsese os filma abraçados, no chão. Vistos do alto, acuados contra o canto do quarto, esta é a moldura do final daquele casal que, poucos anos antes, ostentava o glamour. Esta é a queda de ambos.
A ascensão é aquela em que vemos o garoto de vinte e poucos anos estacionar seu Cadillac em mão dupla, de frente a um hidrante, ignorar a fila de acesso e adentrar o glamoroso restaurante Copacabana, em Nova Iorque. De mãos dadas a Karen, entra no recinto pelas portas da cozinha, passa por todos os funcionários que lhe abrem portas enquanto ele distribui notas de US$20, e senta-se à frente do palco, em uma mesa que já lhe esperava pronta. Da rua, do asfalto, da sarjeta lá fora, à mesa mais privilegiada do mais caro restaurante, sob cumprimentos e champanhe oferecidos. Em um plano sequência, a precisa noção de Scorsese ao desenhar para sua audiência quem é Henry Hill na ascensão representada por aquele momento de sua vida. E essa sequência justifica de modo exato a frase do autor e co-roteirista, Nicholas Pileggi, ao falar que esperou por toda a sua vida por aquela ligação do cineasta.
“Os Bons Companheiros”, 32 anos depois, alcança um status de filme pilar da cultura pop e do Cinema. Repleto de momentos e falas simbólicas, como a atuação insana de Joe Pesci, pela qual ganhou um Oscar (o assustador questionar: “funny how?” na famosa cena do restaurante é um dos momentos chave) e o único dois seis a que o filme foi indicado (o Bafta foi mais correto concedendo cinco de oito estatuetas ao filme), ou a elipse temporal de sua abertura rimando à fala central de Hill sobre “sempre ter desejado ser um gangster” junto à percepção, a partir do ecoar das balas do revolver de Jimmy Conway (Robert De Niro), de que aquela sua vida de crimes foi longe demais, são apenas dois exemplos.
Junte a isso uma trilha sonora que se torna marca da pesquisa musical de Martin Scorsese, que, no filme, não utiliza música incidental, apenas canções de artistas solos e bandas clássicas (Tony Bennett, The Shangri-Las, Aretha Franklin, Cream, entre outros). O resultado pode ser visto no momento paranoia de Henry Hill, naquele começo dos anos 1980 regados a pó e prestes a desmoronar, quando Scorsese pontua cada trecho com uma seleção que vai de Harry Nilsson, passando por Mick Jagger, The Who, George Harrison e Muddy Waters. E, ainda, qualquer pessoa que tenha assistido a “Goodfellas” no decorrer das últimas três décadas, é improvável que, ao ouvir os acordes do “Piano Exit” de “Layla”, clássico de Derek and The Dominos, não pense na traição e descarte de amizades que considerava sólidas para Hill e Conway. É esse tipo de quebra de confiança e traição que delineia esse tratado de Cinema.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.