texto de João Paulo Barreto
Há dois anos, em abril de 2020, quando a penúltima temporada de “Better Call Saul” estreou, esta crítica atrelava a série estrelada por Bob Odenkirk à sagacidade da escrita e à estrutura narrativa por trás de “Breaking Bad”, local de origem do personagem Saul Goodman. Naquele ponto, apesar da percepção já consolidada de estarmos diante de algo especial e único em sua originalidade, perceber o spin-off como algo sem as amarras de sua gênese era algo que, não diria difícil, mas que suscitava constantes comparações de seus distintos modos de desenvolvimento dramático. Claro que ao escrever aquelas duas laudas na ocasião, apenas o primeiro episódio do quinto ano consecutivo de série havia sido assistido e a trajetória daquele grupo de personagens pelo áspero deserto de Albuquerque, no Novo México, ainda traria muitas surpresas e choques.
Assim, dois meses depois, com o show chegando à marca de 50 episódios em seis anos (em 2019, houve um intervalo de um ano), qualquer sinal de sombras da série que tinha Walter White como protagonista se esvaiu. Ao final da temporada número cinco, “Better Call Saul” se consolidou como um ponto de virada narrativo e de entretenimento, chamando a atenção de nomes como o de Stephen King, que se manifestou no Twitter acerca de um dos episódios.
Naquele período tenebroso de pandemia há dois anos, o seriado serviu como um alento para fãs de cultura pop confinados em casa e atentos a tesouros que surgiam no entretenimento doméstico. E ela ainda ia além: seus personagens, antes suportes para a soberba atuação de Bryan Cranston, se tornaram, cada um deles, figuras de um desenvolvimento individual, profundo e arrebatador. Isso denotou um cuidado ímpar por parte da equipe de roteiristas, que preferiu a parcimônia de um passo-a-passo crescente na escrita dos arcos de seus personagens do que entregar de cara o ouro e ficar somente como uma cópia do que já conhecíamos em “Breaking Bad”.
A começar, claro, pelo próprio Jimmy McGill, inicialmente restrito a comparações para com o bem-sucedido advogado Chuck McGill, seu irmão mais velho vivido por Michael McKean. No decorrer de todos os episódios, vemos Jimmy, conhecido desde a adolescência como “Slippin Jimmy” (Jimmy Escorregadio) gradativamente se tornar Saul. Sem pressa, Peter Gould e Vince Gilligan, criadores, foram desenhando essa curva dramática de 180 graus atravessada pelo personagem de Odenkirk. Aos poucos, entendemos (e nos tornamos solidários) a razão dele chutar o balde e se focar em seu talento impressionante como um advogado atento às brechas legais que o sistema de advocacia estadunidense oferece a profissionais competentes. E não é apenas o bacharel em Direito que vemos absorver as pancadas preconceituosas diante de seus esforços, mas o próprio ser humano James McGill.
De um caráter bondoso, mas que se perde diante da ausência de conflitos éticos quando o nome do jogo é levar vantagem em golpes e malandragens pequenas, Jimmy tem seu carisma e personalidade magnética sempre colocada como fator preponderante para conquistar confianças. Mas um dos pontos que melhor exemplificam o modo como essa simpatia de Jimmy se destaca no texto de “Better Call Saul” está no modo como apenas canalhas são o foco de McGill/Goodman. Ou seja, é impossível não torcer e nutrir afeto por esse anti-herói. Mas, aos poucos, no decorrer da série, esse magnetismo atrai tubarões no lugar dos pequenos peixes que habitualmente caíam na rede do pilantra. É quando a fatura que vimos ser cobrada ao final de “Breaking Bad” chega e o preço, como percebemos, é alto.
Essa dívida, ao ser cobrada a Jimmy, parece, inclusive, que trará respingos em pessoas ao seu redor. E, claro, me refiro a Kim Wexler, a não menos brilhante advogada e par romântico de Jimmy, vivida por Rhea Seehorn. Há diversas incertezas quanto ao que acontecerá com aquela figura que gosta de flertar com os riscos dos pequenos golpes propostos por seu namorado, mas que, já nesse começo de sexta temporada, demonstra-se sagaz e menos “escorregadia” que Jimmy, surgindo sem sutilezas e direto ao ponto quando o que ela quer é o que está em jogo.
Repleta de rimas visuais e temáticas que, para o espectador atento, percebê-las torna o tempo depositado em frente à TV ainda mais valioso, a saga de Jimmy McGill traz momentos de puro regozijo. Observe, por exemplo, como quando, em um dos derradeiros episódios da quinta temporada, vemos Mike Ehrmantraut (Jonathan Banks) se aquecer no deserto com uma manta espacial. Aos olhos de um arrependido Jimmy, tal imagem a remeter a seu irmão mais velho, soa como um “eu avisei” doloroso.
Já em outro ponto, quando um ainda saudável Hector Salamanca (Mark Margolis) aparece em um restaurante para cobrar um favor, a escolha de enquadramento cria uma ilusão de óptica que já o coloca sentado em algo que remete a uma cadeira de rodas, sendo este um vislumbre para seu futuro merecidamente trágico e uma noção exata da perspicácia de seus diretores.
Com mais 11 episódios derradeiros (de um total de 13), a última temporada de “Better Call Saul” estreou no meio de abril na Netflix. Seu trajeto desde 2015 até esse momento foi o de uma longa espera por uma fusão entre ela e “Breaking Bad”, cujos acontecimentos se mesclarão aos da atual série. Após intervalos que totalizaram três anos e um ataque cardíaco que levou seu ator principal do set para o hospital, vai ser ao mesmo tempo recompensador e doloroso ver chegar ao fim esse presente aos que valorizam a boa escrita de roteiros.
Vince Gilligan, que havia recusado ofertas milionárias para mais temporadas de “Breaking Bad”, afirmou em seu texto de apresentação do box em blu-ray que estar com aqueles personagens era como estar em uma festa na companhia de bons amigos. Mas justificou as recusas de maneira sagaz ao dizer que pior do que deixar uma festa muito cedo, é ficar mais tempo do que o necessário. E é exatamente por isso que tanto a saga de Heisenberg quanto a de Saul Goodman ficarão para a posteridade.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.
Texto muito bom! Parabéns
A última temporada está um espetáculo visual e narrativo. Obra-prima.
Minha serie preferida de todos os tempos é Dr.House , porem Better Call Saul está no mesmo patamar ou se não melhor, o segundo episodio da 6 temporada é o melhor episodio de serie que ja vi na vida, uma obra prima.