texto por Renan Guerra
A velocidade se tornou um epítome do consumo de cultura pop atual: é preciso se ouvir o novo disco assim que sai no Spotify; entre cada disco é preciso uma avalanche de singles, feats e clipes; bem como é fundamental viralizar nas redes, virar trend noTikTok e existir de forma sábia nos charts e nas críticas musicais. É uma rede complexa, mas da qual a Rosalía é uma nativa. Entre o elogiado “El Mal Querer” (2018) e o novo “Motomamí” (2022), ela seguiu toda a cartilha – quase ao ponto de se perder em mares revoltos.
A cantora espanhola fez feats aqui e acolá, frequentou alguns dos mais importantes e badalados eventos e festivais (o Scream & Yell a viu no Primavera Porto), fez ponta em filme do Almodóvar, foi vista ao lado das Kardashians e gerou memes e trends no TikTok. E é a partir dessa experiência veloz que nasce “Motomamí”. O disco é um fruto óbvio do nosso tempo, dos sons quebradiços que nos constroem e da velocidade com que deglutimos referências, ritmos e possibilidades. E, mesmo nativo desse universo veloz, “Motomamí” ainda nos pede outro tempo de audição.
Ao primeiro play, o disco soa positivamente estranho, porém é preciso desvendar o universo de Rosalía, é preciso entender como cada pedaço vai formando esse todo que habita “Motomamí”. Samples, misturas de ritmos e costuras de referências formam um disco pop bastante estranho num passo ousado após a artista ter conquistado o estrelato internacional. Normalmente, muitos investiriam em possibilidades mais palatáveis para o mercado estadunidense, isto é, coisas mais básicas e até óbvias, pois é o que costuma estourar no maior mercado do mundo – vide a diferença entre os trabalhos em inglês e espanhol de Shakira, por exemplo.
Rosalía, porém, vai na contramão: segue cantando em espanhol, opta pelo contato com produtores outsiders e constrói canções quebradiças, estranhas e quase histriônicas. Uma playlist feita pela própria artista dá conta de uma gama de referências: John Coltrane, David Bowie, Daddy Yanke, Burial, Björk, Nico, Pink Floyd, Kate Bush, Aphex Twin, Frank Ocean e mais um monte de nomes díspares formam esse caldeirão criativo que inspira Rosalía. E isso transparece no disco em canções que passeiam por gêneros como reggaeton, pop, flamenco, balada romântica, bachata, champeta, hip-hop e os sub-gêneros da música eletrônica.
“Saoko”, a faixa de abertura, por exemplo, é uma faixa que conversa com o que há de mais alternativo do reggaeton, trazendo elementos da música industrial e do jazz, porém ainda assim fazendo referência a Daddy Yankee e Wisin, nomes seminais do estilo. “La Fama”, que traz participação de The Weeknd, é uma espécie de bachata, ritmo típico da República Dominicana que mescla influências de bolero, tango e outros gêneros latinos. “Bizcochito” é uma champeta, ritmo colombiano que se mescla com sonoridades afro-cubanas. Já “G3 N15” e “Hentai” conversam com o universo das baladas mais melancólicas – “Hentai”, aliás, é uma das mais belas do disco, com uma delicadeza atroz ao dizer as coisas mais sexuais possíveis, algo que poderia dar completamente errado, mas que fica lindo aqui.
“CUUUUuuuuuute” é talvez um das canções mais singulares do disco e que exemplifica esse “caos organizado” de “Motomami”. Batidas eletrônicas repicadas com samples de baterias de escola de samba dão um tom à voz mecanizada de Rosalía, algo quase cyberpunk. As baterias de escola de samba chegaram ao disco via CDs piratas comprados pela argentina Tayhana em uma excelente história contada por Felipe Maia no Uol Tab. Em entrevista ao New York Times, fala-se também que a faixa seria uma canção de amor inspirada pelo caráter épico de “Wuthering Heights”, de Kate Bush.
“Motomami” consegue unir uma gama de referências e de interpolações e ainda assim soar coeso e extremamente pessoal. Com uma lista longa de produtores, que inclui nomes como El Guincho, The Neptunes, Michael Uzowuru e Frank Dukes, o que se sobressai ainda é a persona de Rosalía, cada vez mais demarcada e delimitada. Sua estética está mais afiada e se desdobra em belos vídeos, vide o clipe de “Saoko”, que usa a câmera de forma assombrosa, e o de “Motomami”, que é simples e sedutor. Sua divulgação, obviamente, passou por visualizers, lives no tiktok e tudo mais que é preciso se fazer atualmente, porém tudo tão bem amarrado que nos leva a consumir cada pequeno novo movimento de Rosalía.
“Motomami” é a prova de que Rosalía sabe dirigir muito bem em meio as curvas sinuosas da internet e faz isso com bom gosto, com talento e com autenticidade. Enquanto ela acelera, muitos outros artistas pop ficam na beira da estrada tentando pinçar algo para fazer igual na próxima estação.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.