texto por Homero Pivotto Jr.
fotos de Billy Valdez
Um dos clássicos do Kiss homenageia a “cidade motor”, o maior município do estado do Michigan, a “Detroit Rock City”. Porém, a banda mais quente do mundo tem rodado o globo, em princípio pela derradeira vez em seus quase 50 anos de estrada, para transformar outras paragens em cidades do rock. E, nessa jornada, o quarteto composto por The Starchild (Paul Stanley, guitarra e voz), The Demon (Gene Simmons, baixo e voz), The Spaceman (Tommy Thayer, guitarra) e The Catman (Eric Singer, bateria) trouxe seu circo psicótico e pirotécnico de entretenimento para Porto Alegre na terça-feira (26). Em sua terceira passagem pela capital gaúcha, o grupo tocou para cerca de 20 mil fãs (conforme assessoria) na Arena do Grêmio, em um espetáculo de duas horas. A apresentação foi a primeira da perna brasileira da turnê “End of the Road”, e a quarta do conjunto estadunidense ícone do hard rock em 2022 — as anteriores, que também integram a mesma gira pela América do Sul, rolaram em Santiago do Chile (dias 19 e 20 de abril, ambas na Movistar Arena) e Buenos Aires (em 23 de abril, no Campo Argentino de Polo).
O clima era de festa, ainda que se tratando de uma despedida. A excitação de um grande show de rock somada à retomada desse tipo de atividade, após dois anos de pandemia, criou um atmosfera de animação, de reencontros: com os decibéis elevados e com amigos. Criaturas de idades variadas, de crianças a senhoras & senhores, circulavam pelo público. Muitos pintados com a maquiagem dos ídolos, outros tantos em família, com filhos. Gene Simmons já disse em entrevista que as apresentações de sua banda são “como se fosse uma igreja”. O que parece fazer mais sentido agora, já que, de fato, o Kiss Army (exército do Kiss, em tradução livre, como são chamados os admiradores) presente em Porto Alegre testemunhou algo próximo a um culto religioso. Ou um ritual de exorcismo para os tempos de hoje, com momentos de devoção, como cânticos a plenos pulmões junto aos abençados no palco a até choro.
Escalada como ato de abertura, os locais da Hit the Noise fizeram barulho. Dos bons! Em cerca de meia hora, o quarteto porto-alegrense formado em 2018 mostrou confiança e profissionalismo com seu som calcado no hard rock/stoner — resumindo de maneira simplista. “Cara, eu vi o Dio!”, confidenciou impressionado um amigo que também faz cobertura de shows e não costuma dar espaço em suas resenhas aos artistas que tocam antes da atração principal. Algo que, aparentemente, será revisto depois da boa impressão causada por Marcel Bittencourt (baixo), Luciano Schneider (voz), Leonardo Theobald (guitarra) e Daniel Sasso (bateria) em ação. A contagiante ‘The Moon’, tema de riff sabbhatico, como primeiro som foi excelente cartão de visitas. Constatação reforçada ao fim da execução com a receptividade positiva da plateia, geralmente indiferente antes do grande nome da noite. Bons momentos também com ‘Poor Spirit’ e a inédita ‘Lighter Than Life’.
“É indescritível, e eu sei que é clichê dizer que algo é indescritível, mas é isso. Tocar em um estádio lotado, antes de uma banda emblemática, e ver as pessoas curtindo e vindo junto, com músicas autorais, é uma sensação que não tem como colocar em palavras”, descreveu Marcel, que fez sua estreia ao vivo com a Hit the Noise.
‘Rock and Roll’, do Led Zeppelin, soou nos falantes anunciando que os mascarados estavam prestes a assumir o comando. Previsto para iniciar às 21h, o Kiss entrou em cena por volta das 21h15 — a Hit the Noise também começou depois do horário previsto, cerca de 30min. Entrar em cena, inclusive, é uma boa expressão para o caso aqui, pois o espetáculo narrado tem toda uma misancene pensada para aguçar os sentidos. Som alto, telões modernos, peripécias dos integrantes, cheiro de pólvora e a sensação de calor a cada explosão são exemplos desse ataque sinestésico. De cara, dois hits da fase setentista: ‘”Detroit Rock City” e “Shout it Out Loud” (ambos do fan favorite “Destroyer”, o quarto da discografia, lançado em 1976). Aí, já houve comoção dos presentes, vendo a banda descer do teto por plataformas suspensas e os primeiros momentos de pirotecnia.
Paul recordou as passagens anteriores por Porto Alegre em um breve diálogo com plateia. Aliás, o músico parece ter gostado do nome da cidade, pois o repetiu exaustivamente, com um sotaque engraçado. Em seguida, tivemos “Deuce” (do debut autointitulado, 1974), “War Machine” (de álbum “Creatures of the Night”, 1982) e a sacana “Heaven’s on Fire” (de “Animalize”, 1984). Na sequência, “Love it Loud” (“Creatures of the Night”) com o povo cantando alto a pedido da banda, e Mr. Simmons cuspindo fogo em retribuição. “Say Yeah”, de “Sonic Boom” (2009) deu seguimento, mostrando que funciona bem ao vivo. “Cold Gin” (“Kiss”) esquentou o clima, com Tommy Thayer em uma espécie de duelo empunhando sua guitarra contra Ovnis que se formavam nos telões suspensos ao alto. Ao final, o guitarrista — que completa duas décadas nas seis cordas com o Kiss em 2022— ainda disparou fogo de seu instrumento.
A faixa-título “Lick It Up” (de 1983), do primeiro registro da fase sem máscaras, teve bela execução, com peso e energia contagiante, além de lasers projetados pelo estádio. Em “Calling Dr. Love” (“Rock and Roll Over”, 1976) Gene, em instante teatral, perguntava “Why?” (por que?) com ares de incredulidade. Talvez indagando, cenicamente, sobre o sucesso gigante em entreter a massa desde o século passado.
Antes do show, o amigo Márcio Grings comentou sobre a força de “Tears Are Falling” (“Asylun”, 1985) in loco, mas não fiquei convencido. Até assistir diante dos meus olhos uma performance arrebatadora dos anfitriões da noite para esse hardão oitentista. O picadeiro do Kiss continuou com “Psycho Circus”, do disco de mesmo nome lançado em 1998. Então, foi a vez de Eric Singer receber os holofotes para si pela primeira vez com seu solo de bateria, em que explorou bem o bumbo e não apelou para exageros rítmicos. Em outras partes do espetáculo, Eric também recebeu destaque. Justamente quando faz jus ao sobrenome artístico ‘Singer’ (que pode ser cantor, em inglês) e assume o vocal em “Black Diamond” (“Kiss”) e na entrada do bis, com “Beth” (“Destroyer”) ao piano, e o estádio iluminado por luzes de celulares.
Entre as oportunidades de o baterista se exibir, presenciamos Gene encarnar The Demon em mais um desempenho teatral. Dessa vez, na poderosa “God of Thunder”, cantada em meio a sangue derramado pela boca e um solo quase minimalista, enérgico, dos graves produzidos pelo baixo em forma de machado. Para “Love Gun” (“Love Gun, 1977), Paul Stanley foi transportado do palco até o meio da pista, próximo à torre de iluminação, por meio de roldanas presas por cabos de aço. Seguro de si, voou sobre o público. Ali em cima, além do tema que batiza o sexto registro de estúdio do Kiss, Starchild também cantou o flerte com a disco music ‘I Was Made for Loving You” (“Dinasty”, 1979).
Já na segunda e última parte do show, os quatro músicos vieram para a frente do palco saudar a plateia e questionar: “Do You Love Me?”, deixa para tema de mesmo nome, retirado do álbum “Destroyer”. Durante a execução da faixa, fotos de conquistas do grupo (que não foram poucas!) e de gente com as indefectíveis pinturas no rosto eram exibidas no telão. Como esperado, o desfecho foi com a animada “Rock and Roll All Night” (“Dressed to Kill”, 1975) sendo tocada em meio a uma chuva de papel picado e finalizada com Paul quebrando uma de suas guitarras. Do mesmo jeito que entrou no palco, o Kiss saiu: por meio de imponentes plataformas suspensas. Porém, desta vez, subindo. Erguendo-se, demonstrando a grandeza de quem sai de cena elevando o próprio nome aos altos não só do rock, mas da cultura pop.
– Homero Pivotto Jr. é jornalista, vocalista da Diokane e responsável pelo videocast O Ben Para Todo Mal.
Véio…..tu colocou em palavras….tudo o que o loco viu com os olhos…..parabéns…..um belo show,merecia um belo texto….