entrevista por Leonardo Tissot
Fabien Toulmé é francês, mas também é meio brasileiro. Foi enquanto vivia em nosso país, há cerca de 20 anos, que o então engenheiro civil redescobriu a paixão pelos quadrinhos e abandonou uma carreira frustrante para viver de suas criações.
Obras como “Não era você que eu esperava”, “Duas Vidas” e a trilogia “A Odisseia de Hakim” figuram entre as mais queridas dos leitores brasileiros. Seu mais recente lançamento, “Suzette — ou o grande amor” (Nemo, com tradução de Bruno Ferreira Castro e Fernando Scheibe), deve agradar tanto os antigos fãs quanto aqueles que ainda não descobriram a obra do quadrinista.
Na história, Toulmé apresenta duas personagens encantadoras: a jovem Noémie e sua avó Suzette, que acaba de ficar viúva. Ao descobrir que a relação entre os avós não era das mais apaixonadas — e ser surpreendida pela existência de um antigo crush de Suzette na juventude —, a neta decide fazer algo a respeito.
Ao cair na estrada rumo à Itália, a dupla compartilha alegrias e frustrações, troca confidências, reflete sobre as mudanças no papel da mulher na sociedade e vive uma grande aventura. Com um clima de “sessão da tarde”, a HQ é um belo respiro em um mundo repleto de notícias difíceis transmitidas 24 horas por dia — ainda que aborde temas importantes como a sexualidade da mulher e o etarismo.
Em uma entrevista exclusiva para Scream & Yell, o autor fala — em um português quase perfeito — sobre o que o motivou a produzir “Suzette — e o grande amor”, sua relação com o Brasil, o teor mais político de seu próximo trabalho e sua estreia como roteirista e diretor de cinema, que deve ocorrer em breve.
Fabien, por favor, fale um pouco sobre suas inspirações para “Suzette — ou o grande amor”. A história se baseia em pessoas que você conheceu ou são criações 100% originais?
Na verdade, tudo começou com uma impressão de que, em duas gerações, houve grandes mudanças na maneira como a gente vive a relação amorosa. Na geração dos meus avós, o casamento era realmente uma coisa muito forte, muito presente. Uma pessoa que não se casava era uma pessoa que estava no caminho errado. E uma vez que você se casava, ficava até o fim da vida com essa pessoa, sem possibilidade nenhuma de se divorciar — seja pela questão jurídica, seja pelo julgamento das pessoas. Hoje vivemos um contexto oposto. Ficar com a mesma pessoa até o fim da vida é algo mais complicado, porque houve muitas mudanças. Primeiro, a autonomia financeira, principalmente da mulher. Depois, uma busca mais forte, e talvez um pouco impossível, de uma felicidade perfeita no amor. Enfim, uma série de razões pelas quais hoje é muito mais complicado ficar com alguém pela vida toda. Então, a constatação dessa mudança foi o começo do raciocínio que me levou a “Suzette”. E daí eu comecei a imaginar uma história na qual eu poderia, não digo confrontar, mas fazer com que essas duas gerações trouxessem sua experiência, sem dizer que uma é melhor que a outra. Eu acho que um meio-termo é o ideal, né? Mais pro lado da liberdade, mas com uma certa confiança de que talvez a gente precise de mais investimento para construir uma história amorosa. Esse foi o ponto de partida.
Os “road movies” são praticamente um gênero cinematográfico por si só, tantos são os filmes que exploram essa dinâmica. De certa forma, em “Suzette — ou o grande amor” você escreveu um “road comic”. Buscou inspiração nesse gênero para criar a sua própria obra?
Confesso que não pensei no gênero, em termos de referência. A construção da história partiu do que falei na resposta anterior, e depois procurei pensar de que forma essas duas gerações se comunicariam a respeito de suas diferenças. Na minha cabeça, para essas personagens entrarem na intimidade da situação de cada uma, elas precisavam ser da mesma família. Também pensei que, de certa maneira, quando você viaja, você muda de referência. Você se abre mais, pois está em uma situação de ter que compartilhar experiências. Então, não posso dizer que me inspirei em algum road movie. Se parar para pensar, posso encontrar alguns exemplos, mas essa inspiração não foi consciente.
A paleta de cores da HQ traz um contraste constante entre tons azuis e amarelos/alaranjados. A ideia era ser mais realista (retratar a luz da França e da Itália durante o verão local), ou mostrar os sentimentos muitas vezes conflitantes das personagens principais, que variam da tristeza para a alegria e a esperança? Ou ambos?
Quando começo a pensar nas cores, sempre gosto de limitar a disposição. Porque sou uma pessoa com limites técnicos em termos de colorização. Se não fizer isso, nunca sei qual cor usar, quais vão combinar… Então, isso é um padrão para mim. Preciso escolher algumas cores e me limitar a elas. E quando pensei nessas cores específicas, foi mais com base no calor do verão europeu. Do ponto de vista técnico, para complementar o laranja e amarelo, tive que colocar um azul, pois combina bem com as outras. Então, foi uma mistura de limitação técnica, com escolha em relação ao ambiente que queria dar e escolha gráfica.
Na decoração do apartamento de Hugo e Noémie, vemos um pôster de Jackson do Pandeiro em diversos quadros. Fale um pouco sobre essa referência — você é um admirador do músico brasileiro ou há algum outro motivo para ela aparecer ali?
Quando desenho, gosto muito de me divertir colocando alguns detalhes, algumas coisas que vão se comunicar com o leitor, que vão ajudar no ambiente das cenas. Então, coloquei o pôster porque simplesmente tenho um vínculo muito forte com o Brasil, com o Nordeste… E gosto muito do Jackson do Pandeiro. Foi uma descoberta quando cheguei ao Brasil, esse jeito dele de tocar. Fiquei apaixonado pelo músico e acabei colocando esse easter egg, se é que podemos chamá-lo assim.
Você tem produzido muitos quadrinhos ao longo da última década. Quanto tempo levou para fazer “Suzette — ou o grande amor”, desde a ideia para a história até o último retoque na arte da HQ? Ela foi mais rápida ou mais demorada de fazer do que outras obras?
Ela é mais longa que meus trabalhos anteriores, são mais de 330 páginas. Mas ela foi mais rápida de fazer porque, quando comecei a escrever a história, ela estava quase toda pronta na minha cabeça. Então, levei menos de uma semana para escrevê-la. Quando eu estava fazendo “A Odisseia de Hakim”, meu quadrinho anterior, eu já estava pensando sobre essa história. Então, a escrita foi muito rápida. E quanto ao desenho, estou conseguindo aumentar a velocidade de execução porque já tenho mais experiência. Também estou desenhando de forma digital, e tudo isso deixa o trabalho mais rápido. Além disso, produzi esse quadrinho durante a pandemia, naquela fase em que não podíamos sair de casa, então isso contribuiu com o tempo para fazer a HQ, que foi de aproximadamente oito meses.
Você é um dos autores franceses mais admirados pelos leitores de quadrinhos aqui no Brasil. A que atribui seu sucesso por aqui — especialmente levando em conta que as temáticas de seus quadrinhos nem sempre dialogam com a cultura brasileira? Considera seus personagens e histórias universais?
Essa é uma coisa que tenho dificuldade de responder. Eu acho que… Não posso dizer que sou metade brasileiro, né? Não tenho passaporte. Mas o fato de ter morado e vivido no Brasil, o fato de falar a língua, de certa forma, ajuda nessa aproximação. Tanto do lado do leitor, que talvez me escute falar português, quanto do meu lado, já que tenho alguma coisa do Brasil. Não sei, não tenho uma resposta, mas sou muito grato pelos leitores gostarem do que faço. E acho que tem um pouco a ver com o teor universal das histórias que eu conto e com a simplicidade dos desenhos, com os quais todos podem se identificar.
Considerando que você viveu no Brasil e fala português, você dá palpites na tradução das edições brasileiras de seus quadrinhos? Ou deixa o trabalho todo na mão dos tradutores?
É mais para a segunda opção. Eu deixo tudo na mão dos tradutores. Quando sai em francês, eu já não aguento mais ver o quadrinho. Então, depois de pronto, deixo o quadrinho viver a vida dele.
No período em que você viveu no Brasil, teve algum contato com os quadrinhos produzidos no país? Gosta de alguns de nossos autores? E ainda, leu “Escuta, Formosa Márcia”, quadrinho de Marcello Quintanilha premiado no festival de Angoulême deste ano?
Eu voltei a ler quadrinho quando eu estava no Brasil. Houve essa fase dos meus estudos de engenheiro e da minha carreira, que eu deixei de ler quadrinho. E quando eu me instalei em Fortaleza (CE), eu voltei a ler quadrinho porque foi o momento que senti mais frustração de estar nessa carreira, nessa vida que eu não queria. Então, quando recomecei, lia muito quadrinho importado da Europa. Mas descobri o Flavio Colin, que gostei muito. Descobri também o Fábio Moon e o Gabriel Bá. Depois o Rafael Coutinho. Ainda não li “Escuta, Formosa Márcia”, mas tenho muita vontade de ler esse quadrinho.
Já pensou em colaborar com outros quadrinistas (você como roteirista com outro artista desenhando, ou o contrário, você desenhando o roteiro de outra pessoa)? Com quem gostaria de fazer um trabalho assim?
Hoje, se for para escolher, eu escolheria escrever a história, pois acho que é o que me dá mais prazer. No momento, estou colaborando para uma série de HQs para crianças que vai sair daqui a pouco aqui na França, que se chama “Marilou” [nota do editor: com o desenhista Olivier Dutto]. Se eu fosse escolher outros artistas para uma colaboração, talvez escolhesse o Fábio Moon e o Gabriel Bá.
Pode contar no que você está trabalhando atualmente? O que podemos esperar de Fabien Toulmé para os próximos anos?
Acabei agora um próximo livro, um quadrinho que vai sair aqui na França em junho, chamado “Les Reflets du Monde” [em tradução livre, “Reflexos do Mundo”]. É uma série na qual, em cada volume, eu vou me dedicar a uma temática que a gente está vivendo. Mas em vez de falar de um modo mais analítico, eu vou ao encontro de pessoas que estão vivendo essa situação. E, aos poucos, percebemos que há um apelo mais global, não é somente a história deles. Mais ou menos como fiz com o Hakim, no qual, lendo a história dele, a gente entende que se trata de um refugiado e um pouco do que foi a guerra na Síria. Nesse novo trabalho, escolhi o tema da luta, porque a gente está num momento em que estão ocorrendo muitas lutas pelo mundo, com a população se manifestando contra o poder. Comecei a me questionar sobre isso: por que está acontecendo agora? O que é lutar? Qual é o impacto na sua vida? Para isso, fui ao Líbano, onde ocorreu uma revolução chamada “Saura”, e fui me encontrar com a mulher que era a porta-voz dos manifestantes. Ela me conta um pouco do caminho dela e da situação do Líbano. Depois, fui para o Brasil, numa favela em João Pessoa (PB), onde acompanhei um grupo de pessoas em uma luta contra a demolição da favela em que viviam, em função do projeto de construção de um complexo turístico no local, por parte da prefeitura. E para terminar, fui para o Benim, na África, para acompanhar uma jovem que luta contra a gravidez na adolescência, que é um problema de saúde, mas também de autonomização da mulher e de desenvolvimento do país. Então, são essas três reportagens que vão sair no livro. E agora, nesse exato momento, estou trabalhando em um longa-metragem, meu primeiro filme, no qual faço tanto o roteiro quanto a direção. Ainda não começou a filmagem, mas o plano é começar agora no segundo semestre de 2022.
– Leonardo Tissot (www.leonardotissot.com) é jornalista e produtor de conteúdo
Admiro muito o trabalho de Fabien Toulmé. Gostei demais de encontrar uma entrevista dele no site. Foi bom saber dos próximos trabalhos. Tomara que sejam publicados por aqui.