resenha de Renan Guerra
Por qual motivo um filme deveria ter três horas de duração? Nessas últimas semanas estreou nos cinemas “The Batman”, de Matt Reeves, com seus 176 minutos – João Paulo Barreto escreveu aqui no Scream & Yell que apesar das muitas qualidades, o filme poderia ter uma minutagem menor. Outro gigante que está nos cinemas é “O Poderoso Chefão”, de Francis Ford Coppola. Completando 50 anos de lançamento, esse épico mafioso tem 175 minutos e cada minuto é essencialmente bem usado. Essa semana chega aos cinemas mais um filme de grande duração: “Drive My Car”, de Ryusuke Hamaguchi, tem 179 minutos e fica a questão: há coluna que aguente três horas sentado numa poltrona de cinema?
Não nos responsabilizamos por salas de cinema com poltronas apertadas ou cadeiras desconfortáveis, mas podemos dizer que o filme de Hamaguchi faz valer a pena cada minuto de tela. Com um ritmo bastante específico, o premiado filme japonês consegue envolver o espectador em uma história quase trivial, que parece não ter grandes reviravoltas, mas é nessa aparente simplicidade que se esconde a genialidade e complexidado do filme, que consegue alinhavar questões existenciais em uma narrativa que prende e que envolve de forma inesperada.
“Drive My Car” é baseado no conto de mesmo nome de Haruki Murakami, presente no livro “Homens sem Mulheres” (2014). O título é realmente em inglês, pois faz alusão à canção dos Beatles, faixa de abertura do disco “Rubber Soul”, de 1969 – disco do qual o Murakami também “pegou” o título de seu livro “Norwegian Wood”, de 1987. De todo modo, é importante avisar: “Drive My Car”, a canção, não toca no filme. Ryusuke Hamaguchi queria usar a faixa como trilha, mas os trâmites e os valores de liberação de uma faixa dos Beatles fizeram ele desistir da ideia.
A história de “Drive My Car” começa com um prólogo em que conhecemos Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima) e sua esposa Oto (Reika Kirishima). Ele é ator e diretor de teatro e ela escreve roteiros para televisão. Yusuke constroi seus trabalhos a partir de um método específico: cada artista trabalha na sua língua materna e as peças de teatro ganham legendas em um telão. Esse método e essa exploração linguística são símbolos importantes dentro da obra. Entre os métodos de Yusuke, há um em particular: ele decora seus textos enquanto dirige seu carro.
Depois de cerca de 40 minutos desse prólogo, os créditos surgem na tela, e é uma quebra curiosa, pois já estamos completamente imersos no filme e no seu ritmo. De todo modo, é a partir dessa virada que uma nova história surge: Yusuke é convidado para ir à Hiroshima encenar a peça “Tio Vânia”, clássico de Anton Tchekhov. Lá, por questões de segurança, a equipe do teatro concede uma motorista para Yusuke, chamada Misake Watari (Tôko Miura), e esse novo encontro dá outros rumos à história. Esse é um resumo bem factual do que acontece no filme, porque, na prática, “Drive My Car” é bem mais amplo do que esse fiapo de narrativa pode aparentar.
Nas três horas de filme nós vamos acompanhar a produção e os ensaios de “Tio Vânia”, incluindo atores falantes de diferentes línguas, bem como vamos ver a relação de Yusuke e Misake se desenvolver. Paralelamente a isso, Yusuke também vive uma fase de remontar quebra-cabeças sobre o passado de sua esposa, Oto. Com uma destreza na direção e no roteiro (adaptado por Hamaguchi e Takamasa Ōe), “Drive My Car” se utiliza de uma fotografia e de uma mise-en-cene detalhista para nos colocar dentro desse universo dos personagens e, com isso, o filme consegue nos manter presos numa história simples, mas cheia de significados e de significantes – sim, além das leituras existencialistas, dá pra fazer toda uma leitura sobre as questões de linguagem e semiótica dentro do filme, um prato cheio para os fãs de Saussere e Pierce.
“Drive My Car” se constrói dentro desses métodos de seu protagonista, Yusuke, e eles são simbólicos dentro da história: o ensaio da peça é tão importante quando a apresentação oficial; a leitura do texto da peça é tão importante quanto o ensaio físico da peça; assim como os trajetos de Yusuke e Misake são tão importantes quanto os locais nos quais eles chegam. Nesses pequenos detalhes, Hamaguchi consegue construir um delicado filme sobre solidão, luto, perda, e sobre uma questão central: o quanto conhecemos do outro e o quanto realmente queremos conhecer?
Tudo dito aqui parece um tanto quanto cabeçudo e hermético, mas talvez esses sejam atributos dessa resenha e não do filme. “Drive My Car” é simples, direto e nos pega de sopetão basicamente por sua destreza em colocar questões existenciais e complexas no que há de mais trivial e cotidiano. E é curioso como o filme dura na nossa cabeça bem mais do que essas três horas que passamos na sala de cinema: Yusuke e Misake se tornam personagens quase próximos da gente e suas falas seguem a ecoar após a sessão.
“Drive My Car” foi exibido no Festival de Cinema de Cannes de 2021, onde ganhou três prêmios, incluindo o de Melhor Roteiro. No Globo de Ouro de 2022, o longa ganhou o prêmio de Melhor Filme Estrangeiro. E com isso o filme chega com força maior ao Oscar desse ano, onde conquistou quatro indicações: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Roteiro Adaptado. Essa é a primeira vez que um filme japonês é indicado na categoria de Melhor Filme e não sabemos se a Academia terá a ousadia de premiá-lo, mas o que se sabe até o momento é que longa de Hamaguchi já fez história.
Enquanto a cerimônia do Oscar não chega, você pode assistir “Drive My Car” nos cinemas a partir do dia 17 de março ou de forma on-line na Mubi, a partir do dia 1º de abril. Não perca!
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.