texto por Gabriel Pinheiro
“Eu não tinha nada de especial. É fácil para mim imaginar essa garota, uma versão estranha, jovem e acanhada de mim.”
O capítulo inicial de “Meu nome era Eileen” (“Eileen”, 2015), primeiro romance de Ottessa Moshfegh (lançado no Brasil pela Todavia em 2021), termina com uma promessa: “Dali a uma semana, eu fugiria de casa para nunca mais voltar. Esta é a história de como desapareci”. Quem nos conta essa história é a própria Eileen hoje, décadas após seu desaparecimento nos anos 60. Ou, melhor dizendo, uma outra que não é mais Eileen. Há uma clara divisão entre o passado narrado e o presente de quem narra. São duas pessoas diferentes. Tanto o nome quanto a vida pregressa foram deixados para trás com a fuga. “Eu não era eu mesma naquela época. Eu era uma outra pessoa. Eu era Eileen.”
Aos 24 anos, em 1964, Eileen vive numa cidadezinha não nomeada no estado de Nova Inglaterra, nos EUA, com seu inverno intenso e fustigante, característico da região nordeste do país. De rotina monótona, seus dias se dividem entre o lar compartilhado com o pai alcoólatra e um trabalho maçante. A faculdade foi abandonada por conta da doença da mãe, hoje morta. Agora, Eileen cuida do pai. Na verdade, “cuidar” talvez não seja o verbo que melhor defina a relação. O pai é um ex-policial aposentado de comportamento abusivo e alcoólatra. Cabe à filha a renovação do estoque de gim e a tentativa de que o risco que ele representa dentro de casa não extrapole para a vizinhança – paranoico, para ele há sempre um inimigo, um invasor à espreita.
Eileen trabalha em uma instituição correcional para menores. Ou, melhor dizendo, uma prisão para garotos. Ela se identifica mais com os detentos, privados da liberdade, do que com os colegas de trabalho. Seu relacionamento com eles é distante, apesar de desenvolver certa obsessão por um dos guardas do lugar: ela passa os domingos com seu velho Dodge estacionado em frente à casa de Randy, observando sua rotina enquanto fantasia uma possível relação com ele. “Randy é o protagonista romântico da minha história, se é que existe algum.”
Até que entra em cena Rebecca, uma nova colega. De roupas finas e comportamento sedutor, ela se torna um imediato objeto de desejo, de uma atração intensa. Mais do que o desejo por Rebecca, o que Eileen passa a nutrir é um desejo pelo que ela é, pelo que representa como mulher. É no encontro com ela que a fuga, até então apenas fantasiada, adiada pela inércia ou por um resquício de senso de responsabilidade pelo pai, acontece. “Como era mesmo aquele velho ditado? Um amigo é alguém que ajuda você a esconder o cadáver – esse era o resumo dessa nova relação. Tive essa sensação imediatamente. Minha vida ia mudar.”
Ottessa Moshfegh cria uma narradora não-confiável, afinal os acontecimentos são descritos apenas sob o seu ponto de vista, e verborrágica, que conversa diretamente com o leitor, expondo segredos e traumas guardados por décadas, enterrados junto com aquela persona deixada para trás. Somos seus confidentes. Os últimos “dias de vida” de Eileen são descritos de forma minuciosa. Ela nos diz sobretudo sobre o passado, o foco não é conhecer quem ela se tornou, não é o presente. Mas desvendamos um pouco sobre a vida pós-Eileen a partir de breves lampejos revelados por ela. Por exemplo, quando comenta sobre os homens alcoólatras com quem se relacionou ao longo da vida – numa repetição de um padrão de relacionamento paterno.
Na narração do seu passado, vemos que o frio (que a autora conhece muito bem, pois nasceu e cresceu em Massachusetts) não está apenas na neve que cobria as ruas da Cidadezinha X, mas também dentro da casa compartilhada com o pai e no ambiente controlado do trabalho. Ambos eram prisões. Falta afeto e identificação em todos os espaços. Rebecca surge como uma fagulha, uma possibilidade de calor. Mas sua chama bruxuleante parece prestes a se apagar a qualquer instante.
Em seu texto, Ottessa Moshfegh cria uma progressão do suspense. Há uma tensão crescente acerca da fuga que parece nunca chegar: os dias passam monótonos, parece não haver saída para Eileen. Até mesmo a relação com Rebecca cai num tom morno, perdendo a excitação. Essa monotonia está na também no texto. Tenho a impressão de que ele poderia ser mais enxuto em alguns momentos. Mas é curioso como, ainda assim, Ottessa engaja o leitor. Seguimos na expectativa da promessa anunciada no início da narrativa. Num plot-twist hitchcockiano, “Meu nome era Eileen” se transforma num thriller de virar as páginas em seus momentos finais, numa guinada inesperada e surpreendente.
“Meu nome era Eileen” recebeu o prêmio Hemingway Foundation/ PEN e foi finalista do Booker Prize.
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.