resenhas por Gabriel Pinheiro
“Correio literário – ou como se tornar (ou não) um escritor”, de Wisława Szymborska (Ayiné Editora)
Lançado originalmente em 2000 na Polônia, e no ano passado no Brasil, o volume reúne as respostas da poeta Wisława Szymborska (1923/2012) aos aspirantes a escritores que enviavam seus trabalhos para o semanário literário polonês Zycie Literackie. Ao invés de um protocolar “não vamos aproveitar”, ela e o colega Włodzimierz Maciąg, publicavam, de forma anônima, suas análises em uma coluna no veículo. O sabor amargo das negativas eram temperados com sugestões valiosas para os aprendizes – além de generosas doses de humor e ironia. Na entrevista que abre o volume, a poeta conclui: “Esse ‘correio’ tem mais humor do que valor didático”. Concordo quanto ao humor. Szymborska desfila um olhar espirituoso, atento e sagaz. “Quando escrevemos que um texto é ruim, não temos a intenção de ofender ninguém, nem de lhe tirar a fé no propósito da existência.” Junto de seu texto, um candidato suplica: “Ou vocês me dão alguma esperança de ser publicado, ou pelo menos me consolem” – no que Wislawa responde, “Depois da leitura de seu texto, temos de escolher a segunda opção”. A caligrafia ruim ou a ilegibilidade das cópias datilografadas eram um pesadelo: “Misericórdia! Não se encontram olhos à venda, nem pagando com moeda estrangeira”. Mas discordo quando ela diz que há menos valor didático que humor aqui. Justamente o que suas respostas têm de mais precioso são os conselhos que Wisława dá aos escritores. Ela pede para que escrevam mais diários, observando o próprio cotidiano. Diz sobre como a falta de curiosidade é ameaçadora para a existência da literatura. Em uma resposta, conclui: “A senhora quer ser poeta, mas não sabe ver as coisas”. Para Wisława, o talento do prosador “é a habilidade de sair da própria pele”. Aponta, ainda, o fato de alguns escritores parecem saber tão pouco sobre os próprios personagens, um erro imperdoável. Fico pensando quantos descobriram, depois, que foram lidos pela futura Nobel? Ah, sobre os premiados pela Academia Sueca, ela tranquiliza: “Até os escritos dos laureados do Nobel também foram várias vezes rejeitados no início.”
“Bem-vinda à América”, de Linda Boström Knausgård (Editora Rua do Sabão)
De uma hora para outra, Ellen pára de falar. Ela é uma criança e sua escolha é consciente: ela decide deixar de falar. Uma barreira se impõe entre ela e o mundo conflituoso ao seu redor. Ellen é a protagonista deste romance com contornos autobiográficos da sueca Linda Boström Knausgård, lançado originalmente em 2016, e que ganhou edição nacional em 2021. A personagem leva ao extremo uma incomunicabilidade que já vinha de antes, dentro do próprio lar. Um ambiente doméstico em conflito, o distanciamento entre aqueles que o habitam. A mãe, atriz requisitada, precisa equilibrar os compromissos profissionais com o lar; o irmão, que causa medo na menina por seu comportamento violento; e o pai – agora morto – mas que, antes disso, fora internado após ataques maníacos. Podemos tentar procurar por respostas para o ato da criança. Como o trauma pela morte do pai. Morte desejada por ela, que pedia a Deus para que levasse o pai. Depois, ela pedirá para que Deus também a leve, para que não seja obrigada a crescer e a lidar com os problemas da vida adulta. Linda Boström Knausgård cria em seu livro algumas imagens de muita força. Há uma passagem em que a mãe chacoalha Ellen, com as mãos em seus ombros, como que para arrancar alguma palavra da criança. A garota não fala com aqueles ao seu redor, mas fala – e muito – conosco. O livro é todo narrado em primeira pessoa, onde ela, de um ponto no futuro, rememora o passado. Como a própria memória é frágil, o texto não segue de forma linear. Narrado como um fluxo de consciência, é fragmentado, pontuado por silêncios, avançando por acontecimentos em diferentes temporalidades. Em certa medida, Knausgård elabora a própria vida, a própria infância em “Bem-vinda à América”. Filha da atriz Ingrid Bostrom, tão radiante quanto a mãe artista de Ellen, Linda também teve uma relação conflituosa com o pai bipolar. Adulta, a própria autora receberá o diagnóstico de bipolaridade. Assim como a protagonista de seu breve romance, ela também desenvolveu o mutismo seletivo, ainda que não tão intenso e desafiador como aquele de sua personagem. “Talvez meu pai dissesse que aquilo era hereditário. A hereditariedade golpeia com força a minha família. É implacável. Em linha direta. Talvez eu carregasse o silêncio em mim o tempo todo.”
“Poeta Chileno”, de Alejandro Zambra (Companhia das Letras)
Conhecemos neste novo romance de Alejandro Zambra, lançado em 2020 no Chile e em 2021 no Brasil, duas gerações de poetas chilenos. Gonzalo e Vicente, padrasto e enteado. A partir dos personagens e de outros tantos poetas que os circundam, Zambra discorre sobre o mito da poesia chilena: “Somos bicampeões na copa do mundo de poesia”, nos diz um de seus personagens, aludindo aos Prêmios Nobel de Pablo Neruda e Gabriela Mistral. Se diz sobre os heróis nacionais das letras chilenas, o autor também constrói um retrato muito vivo, em constante transformação, da poesia contemporânea no país a partir das investigações de uma jornalista norte-americana empenhada na escrita de um reportagem-retrato desta cena – num registro que remete muito à Roberto Bolaño em seu “Os Detetives Selvagens”, na construção deste mosaico de poetas no Chile. O espectro da ditadura chilena segue sendo um tema necessário para Zambra. Seus reflexos nocivos na estrutura político-social, na economia e na educação chilena – a ausência de um sistema universitário público e gratuito é um assunto recorrente aqui. No presente do livro, a primeira eleição de Michele Bachelet é motivo de expectativa para alguns e descrença para outros. “A única esperança é a mesma de sempre: que o povo se levante. mas o povo está deprimido demais”. Zambra traz também uma bonita reflexão sobre a paternidade nas figuras de Gonzalo e Vicente, na relação e na confiança pouco-a-pouco construída e nos espelhamentos futuros entre ambos – a poesia como uma herança. “Mas a gente precisa usar as palavras. mesmo que não goste delas”, Gonzalo diz para o enteado sobre a palavra “padrasto”. Múltiplo, “Poeta Chileno” é um romance sobre encontros, desencontros e reencontros. Sobre o amor – pelas pessoas, por um país (apesar de tudo), pelos livros e pela poesia. É um deleite conviver com a multiplicidade de seus personagens – tão vivos, tão bem construídos por um narrador generoso – que respiram e buscam dar sentido ao mundo a partir da palavra, a partir da poesia.
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.
Na minha lista de melhores do ano destaquei ficções, a coletânea de zambra, como o melhor livro do ano. Ninguém escreve como ele no mundo atualmente.