entrevista por Bruno Lisboa
Multifacetado e inquieto, o músico, compositor, escritor e apresentador Chinaina (ex-China) tem destinado seu tempo e atenção para dar prosseguimento em duas linhas de frente: sua carreira solo e o programa de entrevistas “Caça Joia”. Dois anos após o álbum “Manual de Sobrevivência Para Dias Mortos”, o cantor está de volta com “Carnaval da Vingança“, disco em que une a estética hardcore ao frevo e que busca “se vingar de tudo de ruim que nos tem acontecido”, explica o músico.
“Carnaval da Vingança” mescla músicas inéditas (“Carnaval Infinito” e “Virando Papangú”) e regravações de duas de suas composições mais conhecidas: “Deixe-se Acreditar”, presente no disco de estreia da Mombojó (4º melhor disco nacional dos anos 00 em votação feita pelo Scream & Yell), e “Hardcore Brasileiro”, do Sheik Tosado, sua ex-banda, acompanhado de Michelle Abu, Felipe S., maestro Nilsinho Amarante, Cannibal e Neilton Carvalho (ambos da Devotos). O último é o responsável pela arte da capa e o projeto gráfico.
Não obstante está confirmada a segunda temporada de “Caça Joia”, série na qual o apresentador promove, através de entrevistas, uma busca frenética por talentos musicais da cena independente brasileira. “A primeira temporada foi muito legal, descobrimos novos sons do Brasil inteiro e o que repercutiu para além do programa (inclusive aqui) foi muito importante para os artistas. Atingimos o nosso objetivo”, conta Chinaina.
Em entrevista concedida por e-mail, Chinaina fala sobre o diálogo entre o contexto político/social atual e o novo disco, plataformas de streaming e a polêmica envolvendo o Spotify e o músico Neil Young, o carnaval de Olinda, os bastidores do programa “Caça Joia”, o aquecimento do mercado de shows e muito mais. Na sequência o músico promove ainda um faixa a faixa, trazendo detalhes deste novo trabalho, e os clipes para as faixas “Hardcore Brasileiro” e “Carnaval Infinito”. Chega mais!
Se a arte é especular ao seu tempo quais são as suas intenções com “Carnaval da Vingança”?
A intenção do EP é a gente se vingar de tudo de ruim que nos tem acontecido. Acredito que a força do frevo e a energia do carnaval são belos combustíveis para isso. Na época do Sheik Tosado eu costumava dizer que se todo mundo que estivesse na folia resolvesse fazer uma guerra civil, a gente derrubaria qualquer governo. Acredito que quando o povo se juntar teremos nosso carnaval da vingança.
O disco está disponível em todas as plataformas de streaming. Recentemente, o embate entre o Spotify, o cantor Neil Young e podcaster Joe Rogan suscitou diversos debates sobre as políticas internas destes recursos num tempo em que formato digital tem se tornado a principal forma de veiculação artística. Qual a sua opinião quanto a esta questão?
Eu adoraria ter o tamanho de um Neil Young para também tirar minhas músicas de lá, não só pela postura da plataforma nesse caso, mas por ser um sistema, que como um todo é insustentável para quem produz arte. Como não tenho essa projeção imensa, ainda preciso dessa ferramenta para que minha música esteja onde o público está. Todas as plataformas pagam muito mal e não há nenhuma transparência. O Brasil é um dos maiores mercados para todas essas plataformas e o que eu gostaria mesmo é ver grandes artistas brasileiros, players do mercado, além do governo brasileiro (como tem acontecido no Reino Unido) pressionando por uma remuneração justa e transparente, além de impedir esse tipo de conteúdo negacionista e discursos de ódio.
Esse novo EP funciona também como uma justa homenagem ao carnaval de rua e as manifestações populares. Como se deu a sua relação com o evento e qual a influência o mesmo exerceu na formação?
Sou olindense, né? O frevo tá no sangue antes mesmo de nascer. Para o pernambucano, o carnaval tem um significado muito importante. É uma festa do povo, em que todo mundo brinca junto. Desde pequenos aprendemos a curtir o carnaval nas festas da escola, nos blocos infantis e seguimos evoluindo no passo para a folia na vida adulta. A minha primeira banda, o Sheik Tosado, já tinha o frevo como base, e a sacada que tive de perceber que o hardcore tinha tudo a ver com o que acontecia no carnaval é a prova de que a gente vai crescendo, aglutinando referências, mas a raiz tá ali firme e forte. E minha raiz é o carnaval. Quando virei profissional da música cantei frevo com grandes orquestras e ícones do carnaval pernambucano, então, juntei todas essas experiências no EP. A dificuldade desse trabalho foi fazê-lo à distância, por causa da pandemia, mas juntei um time de músicos tão incríveis que mesmo pela tela do zoom conseguimos nos entender bem pra elaborar esse trabalho.
Em “Hardcore Brasileiro”, faixa presente neste EP, você resgata e recria uma das canções mais icônicas de sua ex-banda, o Sheik Tosado. Olhando em retrospecto, o quão transgressor e influente foi (e ainda é) promover a interface de ritmos, inicialmente, distintos como o frevo e o hardcore?
Nunca parei pra olhar essa mistura como uma transgressão. Adorei isso! Sempre achei que o bumbo do hardcore tinha tudo a ver com o bumbo do frevo, os metais são as guitarras e a percussão equivale à bateria pulsante do hardcore. No carnaval de rua, quando uma orquestra passa tocando tudo acelerado lembra muito o que acontece na roda de pogo, o empurra empurra, copo de cerveja voando, aquela catarse coletiva. É como diz o escritor e compositor Valdemar de Oliveira, “O frevo não convida, arrasta”. O hardcore faz exatamente a mesma coisa. Não vê quem não quer. (risos)
Gostaria de falar agora sobre o seu novo programa, o Caça Joia, que tem como foco abordar a rica cena independente brasileira que, sem dúvida, vive um dos seus melhores momentos. Nesse sentido, como tem sido esta experiência? E ainda: como você tem feito a curadoria / seleção de quem será o entrevistado da vez?
O Caça Joia foi criado para servir a essa nova cena. Tem muita gente boa mesmo e precisávamos de um espaço para amplificar o alcance desses artistas. No programa não levamos em consideração números de seguidores ou plays nas plataformas, o foco é a música e o discurso dos artistas. A primeira temporada foi muito legal, descobrimos novos sons do Brasil inteiro e o que repercutiu para além do programa (inclusive aqui) foi muito importante para os artistas. Atingimos o nosso objetivo. Para a segunda temporada temos no momento 3 mil links e eu escuto cada um deles para definir os nomes. Um exercício muito legal, pois assim vou conhecendo mais e mais artistas. Levo em consideração a inventividade musical e o discurso desses artistas, e como queremos abranger o Brasil inteiro, o desafio acontece quando temos vários artistas bons de uma mesma cidade, afinal de contas, queremos ser o mais plural possível. Mas quando o material é bom, todo desafio se torna gostoso, e tenho ficado cada vez mais inteligente ouvindo tanta coisa boa.
Por fim, com o aquecimento do mercado dos shows como você tem observado esta retomada? Acredita que esta é a hora certa de voltar?
É complicado falar em hora certa, quando a gente está lutando contra uma pandemia e um governo negacionista. No momento temos a maior taxa de contágio já registrada. Ao mesmo tempo, fomos os primeiros a parar e os únicos que ainda não retomaram efetivamente. A vacinação vem dando condição para uma volta mais segura, mas ainda com muitas incertezas… É só ver a quantidade de shows e festivais que foram adiados ou cancelados em janeiro. A falta de políticas públicas deixa tudo ainda mais complicado. E não estou falando isso só pensando em arte, não. Falando em números e economia, o setor cultural é responsável por quase 3% do PIB do Brasil, em 2019 movimentou a mesma coisa que o setor imobiliário.
FAIXA A FAIXA, por Chinaina
01) Carnaval Infinito – “Eu vou fazer um carnaval infinito quando te encontrar”. Esse refrão apareceu em 2017, mas deixei ele de lado por um tempo, pois estava no processo do “Manual de Sobrevivência para Dias Mortos”, meu álbum anterior. Ano passado, quando a ideia de um EP de carnaval tomou forma, eu lembrei desse refrão e escrevi o resto da música tentando imaginar um reencontro com o carnaval. Como queria fazer um samba reggae, convidei Michelle Abu para fazer a música comigo. Ela, baiana e excelente instrumentista, trouxe o tempero percussivo que eu imaginava. Gravei violão e baixo e convidei outra baiana, Thathi, para tocar o bandolim. Essa canção é também uma homenagem ao carnaval da Bahia e toda a influência que absorvi da música de lá quando apresentei durante anos o carnaval da Band.
02) Deixe-se Acreditar – Quando compus essa música com Felipe S. e Marcelo Campello, em 2003, a gente não imaginava que ela seria um dos grandes sucessos do Mombojó, claro, mas toda vez que ia nos shows e via todo o público cantar aquela música, algo me dizia que em dado momento eu deveria fazer uma versão dela. Não pensei duas vezes, essa música vira frevo facilmente e ainda periga ser cantada nas ladeiras de Olinda. Hahaahahahaa. Encomendei os arranjos ao maestro Nilsinho Amarante, deixando claro que queria uma introdução longa e que os arranjos se aproximassem de um frevo de rua, só que Nilsinho alertou que frevos de rua são instrumentais. Retruquei dizendo: “Então, Nilsinho, teremos um frevo de rua com letra dessa vez. E assim ele construiu os arranjos para a música. Pra coroar a faixa chamei Felipe S. pra dividir as vozes comigo.
03) Hardcore Brasileiro – Sempre imaginei uma versão com orquestra de frevo para essa música que lancei com o Sheik Tosado em 1999. Mas foi a música que deu mais trabalho de fazer nesse EP. Encomendei os arranjos a Nilsinho e pedi que a música fosse rápida, como um hardcore. Nilsinho explicou que o frevo tem um andamento entre 150 e 160 BPM e que seria loucura acelerar o frevo a 180 BPM como eu queria. Conversa vai, conversa vem, e nada de convencer o maestro. A certa altura falei: “Nilsinho, as orquestras que tocam na rua aceleram o frevo que só a porra, aquilo parece um hardcore, bicho. Quero essa energia, quero o cheiro de loló e suvaco nessa música”. Ele riu e me disse que os tradicionalistas do frevo iam ficar putos e eu disse: “Nilsinho, relaxa, estamos fazendo história. É o primeiro frevo em 180 BPM e seremos lembrados na história por bem ou por mal”. Ele deu risada e me trouxe de volta o arranjo incrível que ele criou. A história do suvaco e loló deu certo. (risos)
04) Virando Papangú – Aqui eu juntei algo que já fazia desde a época do Sheik tosado: o frevo e o hardcore. Acho que são duas vertentes musicais que tem tudo a ver e há bastante tempo faço essa colagem. No “Manual de Sobrevivência para Dias Mortos” já tem um, “Frevo e Fúria”, e “Virando Papangú” é uma espécie de continuação dessa faixa. Eu já tinha a música pronta quando convidei Cannibal (Devotos) pra cantar comigo, mas na hora de mandar a música pra ele resolvi cortar uma parte da letra que tinha escrito e fiz o convite para ele escrever a faixa comigo. Gosto muito das composições dele e não podia perder essa oportunidade. Cannibal, um cara super generoso, e além de aceitar o convite pra cantar, veio com uma letra incrível que se encaixou perfeitamente com a parte que eu já tinha escrito. O resultado é esse: uma roda de pogo no meio do carnaval.
– Bruno Lisboa escreve no Scream & Yell desde 2014. A foto que abre o texto é de Pamella Gachido.