entrevista por Homero Pivotto Jr.
Reinventar-se parece não ser um problema para o Voivod. A banda canadense despontou em meados dos 1980 como expoente do thrash, mas já indicando uma sonoridade e temática nem tão ortodoxas para o gênero — talvez uma busca então incipiente por outras dimensões sonoras. Com o tempo, um disco após o outro, provou-se uma força criativa capaz de incluir elementos de derivações distintas do rock e de fora dele para criar uma identidade musical complexa de rotular.
A essência do metal sempre esteve presente, mas o Voivod agregou uma abordagem meio jazzy e um quê de música clássica, além de influências marcantes de rock progressivo, hardcore, rock alternativo, post-punk e psicodelia como base para temas ligados à ficção científica e até questionamentos filosóficos. Em seus 40 anos de trajetória, o grupo deixou claro a capacidade de inovar a forma como apresenta seu som. Para o décimo quinto álbum da carreira, “Synchro Anarchy” — com lançamento em 11 de fevereiro —, o desafio foi uma nova metodologia de composição.
Acostumados a criar em estúdio, Michel “Away” Langevin (bateria e responsável por boa parte das artes de capa da banda) e Denis “Snake” Bélanger (voz), ambos da formação original, ao lado de Daniel “Chewy” Mongrain e Dominic “Rocky” Laroche (baixo), precisaram rever processos de criação. E nisso a tecnologia dos tempos em que vivemos foi providencial — e essencial (lembremos que o conjunto tem um trabalho clássico chamado “Killing Technology”, de 1987).
“Somos sortudos de viver essa situação (pandemia) em um mundo no qual podemos conversar com as pessoas mesmo que distantes. Então, pode-se dizer que a tecnologia ajuda se você usá-la de uma boa maneira, acho. É uma faca de dois gumes. Certamente, a tecnologia colaborou na composição do álbum em meio à pandemia. Nos tornamos cada vez mais escravos disso. Mas, ao mesmo tempo, podemos usar essa ferramenta de maneiras positivas”, comenta o guitarrista Chewy (o primeiro, da esquerda para a direita, na foto que abre o texto) sobre a feitura do trabalho mais recente no contexto das ferramentas contemporâneas de comunicação.
A musicalidade eclética da banda é evidente em ‘Paranormalium’ e ‘Planet Eaters’ (vídeos no final do texto), e reforça o caráter vanguardista do Voivod — nome capaz de se apresentar com um naipe de metais no Festival International de Jazz de Montreal (2019) e credenciada a receber o prêmio de “Álbum de Metal do Ano” no Juno Awards (o equivalente Grammy no Canadá) pelo disco “The Wake” (2018). Na entrevista que segue, feita por videochamada, um educado e atencioso Chewy (integrante do Voivod desde 2008) fala sobre a gama de influências, a produção de “Synchro Anarchy”, modernização e impressões de mundo.
Como o Voivod acabou desenvolvendo uma sonoridade que combina estilos distintos dentro rock? Alguns que, em um primeiro momento, podem até parecer que não funcionariam juntos, como thrash, rock progressivo, rock alternativo, kraut rock e até hardcore?
É uma boa pergunta. Na real, acho que não foi questão de escolha. Foi mais por terem sido influenciados por diferentes tipos de música, e não apenas pelo metal. Lembremos que, quando o Voivod começou, em 1982, quase 40 anos atrás, não havia muitas bandas thrash, pois, de alguma maneira, o Voivod é uma das que inventou esse estilo. Mas os caras, já lá no começo, estavam ouvindo muitas coisas diferentes. De rock progressivo ao punk rock, além de New Wave of British Heavy Metal (NWOBHM) como Iron Maiden e Judas Priest. Então, era uma mistura disso tudo. Acho que o pessoal sempre foi curioso, como músicos, como artistas, para ir a fundo em gêneros distintos. Em algum momento, sei que o Away começou a curtir bastante som eletrônico, bem como música moderna e contemporânea. O (ex-guitarrista) Piggy costumava ouvir muita música clássica. Logo, tudo isso colocado junto, vindo de diferentes pessoas escutando sonoridades variadas, acabou se incorporando ao som da banda e se tornou algo que foi crescendo um álbum depois do outro. Se você prestar atenção no primeiro ou segundo disco, ou mesmo o “The Wake” (2018) ou algum do meio da discografia, percebe-se que há um elemento central que está lá. Mas é sempre uma banda que soa diferente. Peguemos o “Angel Rat” (1991), por exemplo. E isso é fascinante para mim, há sempre uma pesquisa de nova abordagem. Creio que isso é algo intrínseco dos caras, mas vou me incluir também como alguém que pensa da mesma forma. Esse lance de sempre tentar descobrir algo novo e se reconstruir ao longo dos anos.
O Voivod é uma banda única dentro do metal, muito em função dessa mescla de estilos que falamos. Quais considera os prós e contras de trabalhar dessa maneira mais eclética, de pensar fora da caixa? E por que considera ser importante criar uma identidade com sua música?
Acho que essa identidade é algo que você já tem como pessoa, como artista. Não precisa criá-la. Mas é fácil esquecer-se disso e copiar outros, fazendo o mesmo som que já existe. Então, para ter autenticidade no processo artístico, é preciso ser o mais próximo e verdadeiro possível de você mesmo. Mesmo que isso signifique não alcançar a maioria das pessoas. Se alguém entrar na vibe que você está emanando, que é algo que você oferece de si mesmo, é o que vale. Você está ofertando sua identidade, expressando a si mesmo por meio da música. E se isso é verdade, as pessoas que recebem a mensagem, os receptores do sinal, vibrarão na mesma sintonia. Elas vão gostar, entender e se conectar com aquilo. E esse é um poder da música: unir as pessoas pela vibração da música que não existia até então.
O novo trabalho chama-se “Synchro Anarchy”. Acredita que vivemos em uma sociedade sincronizada anarquicamente? E quando menciono anarquia não me refiro à orientação política que prega ausência de governos e instituições que ditam as regras. Mas, sim, de algo que indica desorganização, falta de valores humanos. E que, neste caso, está sincronizada no sentido de ocorrer em praticamente todo o planeta.
Foi o Snake que deu esse título para uma música. Como estávamos procurando um nome para o álbum, ficamos prestando atenção nas letras para ver se aparecia algo que já estivesse lá. E “Synchro Anarchy” pareceu bacana, algo que realmente refletia o que a sociedade está vivendo, mas que em geral já experienciou. E é meio contraditório ao mesmo tempo, pois tem a sincronia, coordenação, ritmo, ao mesmo tempo em que remete à possibilidade de anarquia dentro disso, de que algo pode dar errado ou certo em questões de segundos. Algo que foge ao nosso controle indicando que em instantes a existência pode mudar. Nós em geral, como humanos, estamos tentando descobrir como isso funciona. Tentamos sistematizar tudo e colocar as coisas em pequenas caixas para entender. Chegamos até aos átomos e quarks para compreender o universo, por exemplo. Mas essa vida é meio anárquica, no sentido de não podermos controlar tudo. Enfim, é um título bem amplo, pode incluir muitas questões filosóficas, e você pode interpretar do seu jeito. Para mim, é algo tão simples quanto a própria expressão. Creio que ela fala por si e representa o nosso tempo.
O álbum foi composto durante a pandemia, certo? Como foi o processo de criação nesse período. Rolou tudo online, com os integrantes trocando partes das músicas para criar as composições?
O que costumamos fazer é tocar juntos em um espaço para ensaios, com todos trazendo suas ideias para as jams. Então, algo acontece e voltamos para casa trabalhar em nossas partes, aprimorá-las. Mas não foi assim que rolou dessa vez, pois não tínhamos um local para ensaiar durante a pandemia. Então, comecei a escrever uns dois anos atrás, no começo dessa situação de “anarquia sincronizada” (risos). A gente estava bastante motivado, mas logo meio que fomos perdendo contato um com o outro, e eu parei. Cerca de um ano e meio depois, tínhamos um prazo, precisávamos produzir um disco. O Away disse: “vamos lá, pessoal! Temos um contrato, precisamos entregar material”. Então, ele pegou algumas ideias que eu gravei e juntou o que achava que funcionaria. Eu nunca tinha trabalhado assim, e creio que a banda também não. Bom, ele juntou essas ideias e me mandou. Eu as arranjei, e ele programou as baterias em cima disso. Depois, me enviou novamente e eu trabalhei em cima do que recebi. Gravei alguns baixos também e fiz arranjos. O Away também gravou algumas baterias sem nenhuma base de cordas, apenas como sugestão. Tipo: “seria bacana se esse groove estivesse em algum som”. Então, eram só baterias. E algumas dessas partes me inspiraram a compor, o que não é comum para mim. Então, fomos colocados em uma condição criativa em que não havíamos estado, e isso nos ajudou a ter um som particular nesse álbum. Eu acolhi essa nova maneira criativa. No começo, estava um pouco ressentido e frustrado por trabalhar assim, não estava acostumado. Nada contra quem faz dessa forma, de verdade. Mas no fim gostei de como foi. Acabamos no estúdio por quatro meses. Primeiro, com as demos que criamos para ver se soavam naturais quando estivéssemos juntos, já que não havíamos tocado lado a lado por um tempo. Fizemos uns três dias assim. Arranjei novamente alguns sons em casa e mandei para o estúdio as faixas base com a batida do metrônomo para o Away gravar as baterias. Realmente queríamos estar na mesma sala e tocar ao vivo para gravar, como fizemos com o EP “Post Society” (2016), que foi muito legal. Mas não tinha como. Era como uma luxuria fazer isso, então trabalhamos parte por parte, e os temas foram se desenvolvendo durante a gravação. Lembro-me do Snake escrever as letras e ir direto para cantá-las. Foi um processo rápido e intenso, que nos colocou numa situação de emergência em que todos os sentidos estavam apurados. Prontos para atacar, esse era o sentimento.
Bom, podemos dizer que a tecnologia ajudou na composição do álbum, permitindo essa troca de ideia e trechos das músicas. Como você, como cidadão, percebe a evolução contínua da tecnologia? E quanto esse tema influenciou o novo trabalho, já que o assunto sempre permeou a obra do Voivod?
Somos sortudos de viver essa situação (pandemia) em um mundo no qual podemos conversar com as pessoas mesmo que distantes. Então, pode-se dizer que a tecnologia ajuda se você usá-la de uma boa maneira, acho. É uma faca de dois gumes. Certamente, a tecnologia ajudou na composição do álbum em meio à pandemia. Nos tornamos cada vez mais escravos disso. Mas, ao mesmo tempo, podemos usar essa ferramenta de maneiras positivas. Seria muito difícil viver sem as facilidades que a evolução trouxe. Tipo, voltar para a fazenda, plantar a própria comida, criar animais. É uma escolha de vida, na verdade. Há quem opte por rumos diferentes. Mas, enfim… a tecnologia auxiliou bastante para que fizéssemos o disco, e também com os shows via streaming — algo impensável há uns 10 anos. Esse é o lado bom.
E como foi essa experiência de tocar para câmeras, sem público?
(risos) Foi bem estranho. O pessoal das câmeras, de certa forma, era uma plateia, mesmo tendo de ser cuidadosos para não fazer barulho. No geral, foi divertido. Afinal, estávamos tocando música juntos e sabíamos que havia gente assistindo em diferentes locais do globo. E estavam curtindo, compartilhando conosco essa conexão. Esse sinalzinho que sai da minha guitarra, a vibração da corda, que cria uma onda elétrica que vai para um console, que vai para web e que chega na sua casa, nos seus ouvidos, que vibram com o som da guitarra. É doido! Foi uma experiência sensacional. Creio que vamos fazer mais transmissões ao vivo, como eventos especiais. Talvez tocando discos inteiros, como fizemos com “Dimension Hatross” e “Nothingface”. Mas, voltando à questão, depois que tocávamos as músicas na transmissão, dava pra ouvir barulho de grilo no estúdio (risos).
O Voivod é conhecido por temas sci-fi, questões que vão além do terreno. Pensa que o futuro está fora do planeta, considerando que a Terra não deve suportar por muito tempo o ritmo de degradação que o ser humano impõe?
Acho que a Terra vai sobreviver a nós, humanidade. O planeta não precisa da gente. Talvez tenha necessitado há milhões de anos, mas agora não mais. Acho que está nos punindo hoje em dia. Para mim, a Terra é um organismo vivo, um ser por si só. Nós não a respeitamos, mesmo em questões menores, cotidianas. Quando compro um telefone novo, por exemplo. Vivemos nessa era estranha. ‘Planet Eaters’, faixa do novo disco, é uma boa maneira de descrever isso, algo bem sci-fi. Tipo quando o Snake escreve “save for your next trip to mars” (economize para sua próxima viagem à Marte), me remete a Philip K. Dick (famoso escritor de ficção) que inspirou filmes como “Minority Report” e “O Vingador do Futuro”. É algo que não é tão improvável hoje em dia quando você vê gente indo ao espaço e planejando viajar à Marte em 10 ou 20 anos. Temos de nos dar conta de que nossos dias como uma espécie estão contados, e precisamos mudar nossa maneira de viver.
Tem uma declaração sua no press release do disco que diz que é um trabalho sombrio, mas com vislumbres de luz. Acredita que aprendemos algo com a pandemia? Que esse período horroroso pode nos trazer ensinamentos?
Acho que aprendemos muito e sobre diferentes perspectivas. Muitas amizades terminaram, pudemos perceber sobre a fragilidade dos relacionamentos humanos. Claro, ainda há muito o que aprender, e vamos nos dar conta no futuro. Mesmo sendo sombrio, o disco passa uma ideia de que há sempre esperança. Há uma mensagem positiva, se você equilibrar os temas pesados e profundos. Talvez uma palavra mais adequada seja mesmo profundo em vez de sombrio. É um disco profundo, tanto musical quanto liricamente. Vai da luz à escuridão, criando um alcance amplo.
Considera-se uma pessoa esperançosa?
Tentamos ser. É preciso seguir em frente. Olhar para o passado e aprender, mas almejando e agindo para o futuro, tentando fazer melhor. Ao menos temos esperança de ter esperança.
Tem um som do novo disco que se chama ‘The World Today’. Como você percebe o mundo atualmente?
É complicado ter uma perspectiva quando se está vivendo o momento. Mas é uma mistura de sentimentos entre coisas lindas e outras horrorosas. Há muitas crises no mundo neste momento. Diferentes conflitos em variados países. Sempre foi assim, na verdade, mas aqui e agora, não sei descrever. Parece ainda mais sombrio. O ritmo de vida é muito veloz, temos de estar ligados na tecnologia 24 horas, sete dias por semana. Estamos sempre no gatilho, o tempo todo, sempre prontos para algo acontecer. Tento não pensar muito sobre isso, não entrar nessa mentalidade mais obscura. Gosto de focar no que posso fazer, nas ações que podem tornar minha vida e das pessoas em volta melhor. Acho que a mensagem da música ‘The World Today’ é apenas para você tentar ser uma pessoa legal. Vamos tentar ser gentis. É simples. Para começar, dê bom dia para quem passa por você na rua, por exemplo. Tudo pode ficar mais claro, mais leve.
Acredita que a arte, a música neste caso, ajuda as pessoas a passarem por situações difíceis?
Sim, muito. Tem sido uma situação bem complicada para músicos que não podem excursionar, não podem ganhar seu dinheiro. A arte sempre foi bastante complicada para se viver dela. E sem poder tocar é impossível. Mas, há outros jeitos de chegar até as pessoas. Enfim, acho que a música ajuda a não enlouquecer. É como embarcar em uma jornada, mesmo ficando em casa. Você viaja com a mente, com os sonhos. Ajuda a nos expressarmos, tanto para quem compõe quanto para quem escuta. Música é algo que se pode ouvir fazendo outra atividade, correndo, ou apenas se sentar e curtir como um ritual.
– Homero Pivotto Jr. é jornalista, vocalista da Diokane e responsável pelo videocast O Ben Para Todo Mal.
Baita!!! Eu era um piá , quando em Santa Maria no fim dos anos 80 li algo a respeito do Voivod, na Bizz. Era uma resenha de algum disco. Parabéns Homero, entrevista super relevante pra quem é do meio e precisa saber como funciona a evolução da arte, principalmente na música underground!!!!