texto de João Paulo Barreto
Quando, em 1968, Peter Bogdanovich lançou “Targets” (no Brasil, “Na Mira da Morte”), seu primeiro filme de ficção, uma engrenagem que começava a girar de modo constante e azeitado estava em curso naquela Hollywood que parecia passar incólume através das transformações trazidas pela pulsante década. Foi somente nos três últimos anos da fase sessentista que reflexos do que de mais inovador culturalmente e ousado em termos de produção começou a refletir no cinema e a ganhar força. Uma força semelhante ao que se via, por exemplo, na música pop e no rock & roll como um todo, bem como no Cinema da Europa, com a Nouvelle Vague francesa. Até então, a capital do audiovisual estadunidense ainda era comandada por uma geração antiga, conservadora, um tanto refém da caça às bruxas do macartismo, e oriunda das décadas da primeira metade do século XX, quando a indústria cinematográfica tinha na figura do diretor não um autor, mas um mero operário.
No ano anterior, 1967, “Bonnie e Clyde”, filme de Arthur Penn; e “A Primeira Noite de Um Homem”, do britânico Mike Nichols, começaram a alterar esse panorama. No seguinte, o mesmo período de 12 meses incluiu o lançamento do discreto “Targets”, além de pesos pesados como “2001 – Uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick, e “O Bebê de Rosemary”, de Roman Polansky. Mas foi a partir de 1969 que começou a se entender o que estava acontecendo. Jovens oriundos de cursos de cinema (ou não), cuja paixão primordial estava em falar sobre cinema e se aprofundar na cinefilia, começavam a se movimentar com pequenos filmes que, aos poucos, foram marcando seus nomes.
Figuras como Francis Ford Coppola, Dennis Hopper, William Friedkin, Bob Fosse, ao lado de nomes de moleques como Martin Scorsese, George Lucas, John Milius, Paul Schrader, Brian De Palma e Steven Spielberg surgiam não como uma ação arquitetadamente planejada, mas como algo invadido centímetro a centímetro, arriscando, peitando regras e buscando orçamentos junto a grandes estúdios que, em decadência, não viam opções melhores a não ser apostar. Obras como “Sem Destino”; “Meu Ódio Será Tua Herança”; “Caminhos Perigosos”; “Midnight Cowboy”; “Operação França” e “O Poderoso Chefão” delinearam esse novo horizonte que se estenderia até 1980, quando “Touro Indomável” estreou finalizando um período que foi classificado como o do “Cinema da Nova Hollywood“, movimento inicialmente não planejado, mas que marcaria o talvez mais fértil e criativo período da indústria do entretenimento fílmico na terra do Tio Sam.
Um dos filmes símbolos dessa fase e não citados na lista acima é “A Última Sessão de Cinema”, de 1971, terceiro longa de ficção de Peter Bogdanovich, um dos nomes a figurar naquele grupo de jovens. O filme, mesmo sendo dirigido quase a contra gosto por um Peter que inicialmente achava se tratar (a julgar pelo título do livro que só leu após começar as filmagens do roteiro), de uma relação com algo melancólico do “fim do cinema” nos anos 1950, se tornou uma pungente reflexão sobre o transitório da vida de um grupo de jovens em uma pequena cidade desolada do Texas. O Cinema, aqui, funciona como via de escape daquela realidade, e o fechamento da única sala de projeção da cidade, a perda trágica desse único escape.
Quando o lançou, o cineasta de 32 anos já tinha passado pela experiência didática de trabalhar com o diretor e produtor Roger Corman. Dessa fase nasceu, também em 1968, “Viagem ao Planeta das Mulheres Selvagens”, filme no melhor estilo da Escola Corman de baixo orçamento, e que, talvez exatamente por isso, Bogdanovich assinou sob um pseudônimo. “A Última Sessão de Cinema” marca a real estreia de um cineasta que conhecia o ofício a partir de um longo e aprofundado olhar dentro do cinema feito até então nos Estados Unidos. Trabalhando desde o começo dos anos 1960 como jornalista e crítico, a partir dessa labuta, entrevistou e cultivou amizade com diversos cineastas, entre eles um notoriamente sádico John Ford, ídolo absoluto de Bogdanovich.
Acompanhando o diretor nos bastidores de seus filmes derradeiros naquela que seria a última década de vida do homem por trás de “Rastros de Ódio”, Bogdanovich cativou a atenção de um irritadiço e pedante Ford devido às suas insistentes perguntas acerca da labuta do cineasta, seus filmes clássicos e o modo como ele via o Cinema. A constante presença permitiu a Peter dirigir, em 1971, o profundo documentário “Directed by John Ford”, no qual analisa com esmero a carreira do diretor através de entrevistas com ele próprio, e com os atores James Stewart, Henry Fonda, John Wayne, além da participação de Orson Welles como narrador. Este último, inclusive, foi outro de quem Bogdanovich se tornou amigo pessoal. Tal contato oriundo, claro, de sua admiração por “Cidadão Kane”. Em sua fase de decadência, inclusive, foi em Peter que Welles encontrou um amigo que o ajudaria a se reerguer.
O próprio Bogdanovich teve sua fase de declínio após os anos iniciais de reconhecimento artístico e autoral com filmes como “Lua de Papel”, por exemplo. Conhecido por se envolver romanticamente com as atrizes que escalava para seus filmes (seu caso com Cybil Sheppard foi notório, assim como foi o escandaloso casamento com Louise Stratten, irmã da trágica Dorothy, e 29 anos mais jovem que ele), parece nunca ter alcançado o mesmo equilíbrio entre relacionamentos afetivo e a parceria profissional que teve com sua primeira esposa, a produtora Polly Platt, que deixara após conhecer Cybill durante as filmagens de “A Última Sessão de Cinema”.
Também ótimo como ator, teve um dos seus mais notórios papéis em “The Sopranos”, na pele do Dr. Elliot Kupferberg, médico psiquiatra que cuidava da saúde mental de Jennifer Melfi (Lorraine Bracco), a também psiquiatra que atendia Tony Soprano (James Gandolfini). Em uma das suas melhores cenas, pergunta a Jennifer, ao investigar um sonho, o porquê de adorarmos montanhas russas e filmes de terror. “Pela experiência de sentir medo sem qualquer consequência”, ela replica para logo em seguida mandá-lo se foder.
Quase como a vida repleta de altos e baixos do próprio Peter Bogdanovich.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.