entrevista por Marcela Güther
Dia Nobre é escritora, professora e historiadora cearense. Natural do Cariri, a autora atualmente trabalha em Petrolina, Pernambuco, como professora universitária, desenvolvendo projetos ligados à literatura, história, lesbianidades e feminismo.
Seu primeiro livro de ficção poética, “Todos os Meus Humores”, foi publicado em 2020 pela Editora Penalux. Já participou de antologias, como a “Visíveis – I Anuário Filipa Edições” e “Antes Que Eu Me Esqueça – 50 autoras Lésbicas e Bissexuais hoje” (Quintal Edições, 2021).
O novo “No Útero Não Existe Gravidade” (2021), lançado também pela Editora Penalux, é seu segundo livro de ficção. As tensas relações entre mãe e filha e as diferentes formas de abuso são os temas centrais do livro, finalista do Prêmio Caio Fernando Abreu (Mix Literário São Paulo).
Dia Nobre também é Ph.D em História e tem dois livros de não-ficção publicados na área da pesquisa histórica: “O teatro de Deus” (Ed.UFC, 2011) e “Incêndios da Alma” (Multifoco, 2016), tendo recebido três prêmios por este último, incluindo o Prêmio Capes de Teses (2015).
Na conversa abaixo, Dia fala sobre “No Útero Não Existe Gravidade”, sobre ritmo de escrita e como começou a escrever, elenca influências literarias e conta o que significa ser mulher LGBTQIA+ na literatura: “Me reconhecer enquanto uma mulher lésbica é um ato político. É um ato de resistência. É um ato de orgulho”, avisa. Leia a entrevista na integra.
Do que trata o seu novo livro, “No Útero Não Existe Gravidade” (2021)? Como surgiu a ideia do título?
Trata da trajetória da personagem, uma menina, tendo que se descobrir sozinha em meio a diferentes acontecimentos que são comuns às mulheres, como abuso sexual, assédio, automutilação, depressão, entre outras. Quando há uma relação conflituosa entre a mãe/cuidadoras e o bebê, seja de recusa, negação ou falta de conexão com essa gravidez, a criança pode nascer ‘sem contorno’ ou seja, sentindo-se desprotegida; isso pode gerar vários traumas, inclusive, medo de altura, de cair, etc., porque se tem sempre essa sensação de queda, ou seja, de encontro com a gravidade que te puxa pra baixo — por isso a escolha do título.
Quais as aproximações e distanciamentos entre “Todos os Meus Humores” (2020) e “No Útero Não Existe Gravidade” (2021)?
Os dois livros foram escritos em momentos diferentes. “Todos os Meus Humores” é um quebra-cabeças montado a partir dos meus diários, uma experiência de bricolagem em que recortei e colei coisas que escrevi ao longo de 15 anos, em várias fases da vida. Por isso, ele é mais fragmentado, traz várias estações que se interseccionam entre si. “No Útero Não Existe Gravidade” foi uma espécie de catarse terapêutica. Escrito ao longo do primeiro ano de pandemia, ele marca o retorno à uma questão que me inquietava há bastante tempo, mas que demorou a ser elaborada: a partida e, consequente, morte simbólica da minha mãe. O que eu faço é esgarçar a memória. Eu elaboro as lembranças e os esquecimentos, meus e de outras pessoas. Eu invento histórias para mim mesma. Eu não sou a personagem do meu livro, mas ela é parte de mim porque enquanto narradora eu a construo no texto. Vejo os livros muito diferentes entre si, embora algumas obsessões minhas estejam presentes em ambos. Imagine uma mulher diante do mar. O primeiro livro foi como deixar que a onda molhasse apenas aos pés. No segundo, ela foi engolida pelo mar. Tem sido uma aventura me entender como escritora. Publicar meus livros, ser lida. O maior desafio foi me aceitar enquanto tal.
O que significa para você ser mulher LGBTQIA+ na literatura?
Me reconhecer enquanto uma mulher lésbica é um ato político. É um ato de resistência. É um ato de orgulho. Não sou das que carregam bandeiras nas ruas, não me sinto bem em multidões; mas faço dos meus ofícios de professora-escritora um manifesto cotidiano. Eu me inspiro naquelas que me antecederam e que a despeito de todo o apagamento deixaram suas vozes gravadas no papel: Cassandras, Alices, Patrícias, Audres, Natalias. Elas mostram que vale a pena lutar pelo direito de ser quem se é. Pelo direito de existir e amar. Me inspiro também naquelas que virão, nas que ainda engatinham ou que ainda não nasceram. Para que elas nunca conheçam o armário; para que elas nunca tenham vergonha de andar de mãos dadas com outra mulher; para que elas não tenham medo. Eu ainda quero ler muitas histórias de mulheres lésbicas com finais felizes. Sinto muito a falta da representatividade e da naturalização dessas relações. Nossa literatura ainda é extremamente masculina e heteronormativa e isso tem me incomodado bastante. Nesse sentido, recomendo imensamente a leitura de mulheres lésbicas e bissexuais (cis ou trans), pois estamos construindo uma nova literatura na contemporaneidade, na qual a nossa existência conta.
Como tem sido o retorno dos leitores diante de assuntos considerados tabus sociais?
Eu cresci em uma cidade religiosa. Em uma casa religiosa. Criada por uma avó religiosa. Depois me tornei historiadora e fui estudar a religião (risos). É uma linguagem que me dá espaço para a subversão. Penso que uma escrita que não provoca não vale a pena ser lida. Eu escrevo para desafiar os padrões. É um eterno sou-existo-resisto. Acredito que por isso, meus livros encontram as leitoras certas que se inquietam e desafiam o mundo junto comigo. A escrita de mulheres é como um grito no escuro, te arrepia, abre um mundo cheio de identificações, referências e experiências únicas que reverberam no corpo.
Quais são as suas principais influências literárias?
Muitas mulheres fecundaram o meu espaço de experiência. Tenho várias influências literárias, mas a principal delas é a poeta Ana Cristina César. Ela ocupa um lugar especial porque foi a primeira mulher não-heterossexual que eu li e desde o início me identifiquei muito. Outras autoras como Sylvia Plath, Clarice Lispector e Virginia Woolf me acompanharam durante a minha adolescência e sempre retorno a essas quatro autoras quando preciso me inspirar. Gosto muito da literatura do José Saramago, Milan Kundera, Albert Camus, Valter Hugo Mãe e José Eduardo Agualusa que também conheci ainda na adolescência. Mais recentemente, comecei a ler outras autoras relevantes, como Conceição Evaristo e Carolina Maria de Jesus que se tornaram referências para mim. Outra escritora que me conquistou nos últimos anos foi a Elena Ferrante que traz muitos temas ligados à infância, memória e história, campos do saber que me fascinam. Também cito Toni Morrison, Isabel Allende, Carson McCullers, Jarid Arraes.
Por que você começou a escrever?
Comecei a escrever desde muito pequena. Criava pequenas histórias e romances ainda na infância. Na adolescência escrevi literatura de cordel e alguns foram publicados pelo Projeto Sesc Cordel (CE) e também publiquei poesias em pequenas coletâneas. Escrever para mim sempre foi um processo terapêutico. Colecionei muitos diários e cadernos onde anotava memórias e citações, mas também frustrações, alegrias, amores. Mesmo depois que comecei a fazer terapia, a escrita sempre foi esse lugar de conforto no qual me sinto amparada e livre, então escrever para mim é mesmo uma questão de sobrevivência, de me situar no mundo, de me compreender e, principalmente, de me perdoar. Eu comecei a escrever porque queria falar sobre mim mesma e sobre o que estava sentindo, na esperança de elaborar formas de “me curar de mim”, de dar sentido às angústias que eu não conseguia desafogar no cotidiano.
Como é o seu ritmo de escrita? Tem algum ritual de preparação?
Quando sento pra escrever, coloco um ruído branco, ligo o difusor com óleo essencial de lavanda ou laranja e vou pro caderno. Dificilmente, escrevo a primeira versão dos textos no computador, a não ser que seja um texto acadêmico. É no caderno, nesse contato entre a caneta e o papel que me sinto mais presente, mais em contato comigo mesma e com a escrita. Nunca estabeleci metas de escrita, mas tenho objetivos, por isso, tento escrever um pouco todos os dias. Quando estou sem projeto, faço exercícios de escrita ou busco inspiração na leitura. Algo que sempre faço é buscar alguma palavra estranha no dicionário e a partir dela desenvolver um texto, como um verbete poético. Eu adoro palavras “difíceis”, pouco usadas ou com significados complexos. Outro dia, conheci a palavra “resfeber”, do sueco, significa uma ânsia por uma viagem e acabei fazendo um texto sobre memória a partir dela. Quando eu já tenho um projeto bem definido, isto é, quando eu tenho clareza sobre o que quero escrever, eu busco ler bastante sobre o tema e vou compilando notas ou citações que tenham me chamado a atenção. Depois, a partir delas, monto a estrutura do texto: o que falar e quando falar. Não tenho dificuldades em começar, minha maior questão é concluir. Raramente concluo um texto de primeira, tenho que deixá-lo descansar, depois leio em voz altas várias e várias vezes, até o final surgir.
Como você cultiva a criatividade? De onde vêm suas ideias?
De muitos lugares. Um conselho maravilhoso que recebi de uma escritora que admiro muito é que pra escrever, você precisa ler muito. Leia, principalmente, sobre o gênero que você quer escrever. Sair e só olhar as pessoas, o que elas fazem e dizem, já pode servir de inspiração para algo. Em tempos de pandemia, esse recurso ficou mais difícil, mas era algo que eu fazia sempre. Sempre gostei também de usar um diário ou bullet journal, anotar meus sentimentos, angústias e fazer uma espécie de mapa do meu humor, prestando atenção também na causa dele. Isso me ajuda muito a deslocar o bloqueio. Às vezes, estamos bloqueadas por coisas da vida comum, como boletos, compromissos, mas em outras, as causas estão fora da nossa alçada. Conversar com pessoas, ouvir músicas, ver séries também podem ser estratégias interessantes para estimular a criatividade.
– Marcela Güther é jornalista, produtora de conteúdo, assessora de imprensa e mediadora do Leia Mulheres.