texto por João Paulo Barreto
Com cinco filmes no currículo vivendo o agente secreto “Bond… James Bond” na sua versão mais brutal e, ao mesmo tempo, humanizada do sedutor com permissão para matar, Daniel Craig pode se orgulhar de, realmente, ter sido o seu melhor intérprete. Calma, melhor intérprete depois de Sean Connery, foi o que eu quis dizer. Mas isso é outra história (polêmica) dentro da roda de fãs.
A citação ao escocês Connery na abertura desse texto sobre o trabalho que fecha o ciclo do inglês Craig como o combalido soldado a serviço de vossa majestade não foi por acaso. “Sem Tempo Para Morrer” (2021) encerra um ciclo que vai além da presença do ator no papel central da trama. O filme dirigido por Cary Joji Fukunaga (do ótimo “Beasts of no Nation”) insere elementos narrativos e uma quebra de expectativa em sua surpreendente conclusão. São elementos dramáticos até então inéditos na filmografia do personagem criado por Ian Fleming. Esse texto, claro, não tem tempo para spoilers (com trocadilhos) e não vai revelar quais são tais elementos, mas deixo claro que são pontos que tornam especiais as quase três horas de projeção.
E sendo o derradeiro longa de Craig, a relação com o primeiro filme de James Bond, “Contra o Satânico Dr. No”, estrelado por Sean Connery há quase 60 anos, chega ao espectador de modo a salientar o tal full circle (ciclo fechado) na ideia da despedida do ator e, também, aplacar um pouco da sensação agridoce diante das escolhas dos roteiristas aqui. Mas, ainda bem, não são alusões obvias ao longa de Connery, mas elementos que trazem a ideia do simbolismo desse momento dentro do universo temático 007. Assim, não por acaso, vemos o agente surgir em determinado momento na Jamaica, mesmo país no qual Sean Connery se deparou pela primeira vez com a organização terrorista Spectre, que tem, também, um impactante desfecho aqui.
O tom dessa derradeira abertura já é entregue de cara no tradicional prólogo antes da introdução musical que traz a canção tema do longa (dessa vez, interpretada por Billie Eilish, que não repete a intensidade de Adele em “Skyfall”, mas se sai bem). Na Itália, aposentado do serviço secreto, Bond tenta viver sem olhar por cima dos ombros à espreita de perigos ao lado da companheira Madeleine (Léa Seidoux), que conhecemos no longa anterior, “Spectre” (2016). Em uma bela metáfora, a população do paradisíaco local italiano vive um ritual de queima de memórias e fechamento de ciclos, ao incinerar objetos e papéis com lembranças que querem deixar para trás. Bond, ao fazer o mesmo, tem uma surpresa explosiva bem de acordo com a vida que levou e que é impossível de se apagar com um simples fósforo ao torná-la cinzas.
O passado volta a assombrá-lo na figura da citada organização Spectre, cujo líder, Blofeld, vivido pelo sempre excelente Christoph Waltz, segue ativo apesar de atrás das grades. E o passado do grupo tem laços trágicos com a própria Madeleine e a ligação com o remanescente membro terrorista, Lyutsifer Safin (Remi Malek). Mesclando a paranoia dos nonorobôs bem antes de negacionistas anti-vacina virarem a atual epidemia de imbecis, a trama de “Sem Tempo Para Morrer” (que foi gravado antes da pandemia) se vale bem dessa tal proposta de arma perfeita ao adaptá-la para o universo de James Bond.
Mesmo com a proposta de lançar uma versão feminina do 007 sendo pincelada aqui, faz falta vermos as habilidades de luta de Nomi, a agente que ocupou o lugar de Bond com o famoso número que concede licença para matar. Lashana Lynch, que já conhecíamos de “Capitã Marvel”, poderia ter tido destaque físico semelhante ao de Ana de Armas (foto), cuja presença no papel da agente secreta Paloma demonstra perfeitamente como James pode muito bem ser salvo quando a situação realmente aperta para seu lado. Apesar de não ser provável que o agente secreto masculino seja aposentado em detrimento de uma presença feminina exclusiva em seu filme, vai ser muito bem vindo novas inclusões de personagens femininas tão fortes quando Nomi e Paloma nos futuros filmes com James Bond (sim, ele voltará. A tradicional frase alertando isso está no final dos créditos).
“Sem Tempo Para Morrer” encerra como uma despedida à altura para Daniel Craig e tudo o que sua presença trouxe para a franquia que, convenhamos, perdeu um pouco de sua força motriz com alguns dos filmes de seu predecessor, Pierce Brosnan. Ao mesmo tempo, este mais recente exemplar representa uma das poucas despedidas dramáticas realmente pesadas para o homem James Bond, que, com Daniel Craig, descobrimos que pode sangrar e sofrer tanto quanto aqueles outros antagonistas cujas vidas ele tirou. Mas o que ele perde nessa despedida, o que ele deixa escapar por entre os dedos, é algo bem mais simbólico do que isso. A sensação full circle ganha um outro (e até então inédito para 007) significado aqui.
Texto publicado originalmente no jornal A Tarde, de Salvador (BA)
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.
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