entrevista por Pedro Salgado, especial de Lisboa
Pedro Mafama é um dos mais originais artistas da atualidade, capaz de misturar as suas raízes portuguesas com a música africana ou árabe, gerando um corpo sonoro envolvente, que favorece a livre interpretação do público. Enquanto conversamos animadamente num restaurante do centro de Lisboa, abordando a sua visão musical, recordamos igualmente momentos do passado, tal como a sua ligação com o hip-hop, durante cinco anos, através do projeto Pedro Simmons, influenciado, entre outros, por nomes como Kanye West e Kid Cudi. Algum tempo depois, empreendeu uma reformulação criativa, aproximando-se do fado e de outras sonoridades. Durante o processo, adotou o apelido artístico Mafama (o seu nome é Pedro Simões), que reflete um olhar pessoal sobre a cultura portuguesa, mas também um lado fadista e malandro, e abraçou as novas correntes musicais de Lisboa: o trap, kuduro, kizomba e reggaeton. Seguidamente, lançou os seminais EP’s “Má Fama” (2017) e “Tanto Sal” (2018).
Com a faixa “Jazigo” (2018), o cantor e compositor lisboeta reuniu com sucesso os universos sonoros ibéricos, africanos e árabes e obteve uma considerável adesão nas redes sociais, que dinamizou a sua carreira. “É uma canção bastante sincera. Fala da perda de alguém que foi muito importante para mim. Sinto que consegui transmitir uma experiência íntima com honestidade e contei-a de forma poética e simples. Acho que é um cartão de visita perfeito para a minha música”, conta Mafama. O álbum de estreia, “Por Este Rio Abaixo” (2021), editado há poucos meses, mantém o realismo lírico dos discos anteriores, mas denota maior ambição musical, apresentando também um caráter sedutor mais vincado. “Este trabalho mostrou que o ‘Jazigo’ não chegava. Fiz o disco para dar a conhecer a vida que eu levo, agora, revelando as minhas vivências nos últimos três anos. Por isso, quis contar as histórias, dramas, tempestades e os adamastores (risos). Foi uma espécie de lembrete”, explica.
Um dos novos temas, “Estaleiro”, engloba a dor e a beleza, dois aspectos que definem perfeitamente a música de Pedro Mafama. “Eu procuro conscientemente esses conceitos, porque uma coisa é dizer que estou a sofrer e a vida é má e outra ideia é afirmar que vou passar pela tempestade, que tem contornos bonitos e feios. Normalmente, as pessoas são atraídas por algo que tenha perigo e brilho”, afirma. O destaque que tem tido na midia portuguesa resulta, em grande parte, do seu trabalho e da criatividade e autenticidade que evidencia. “Julgo que estou mais próximo de mostrar a minha visão e de influenciar as pessoas da minha idade para que apreciem a sua música de outra forma. Assim é mais fácil mudar mentalidades, criar ligações, fazer-nos olhar de maneira diferente para o passado e moldar o futuro”, conta.
Quando lhe solicito uma mensagem para os internautas do Scream & Yell, Mafama aceita de pronto o desafio e discorre brevemente sobre os traços comuns entre Portugal e o Brasil: “As pontes, os rendilhados, as palavras, o cabelo e os sotaques que nos unem estão presentes desde sempre. Só falta que consigamos visualizar esses aspectos outra vez ou cada vez mais”, conclui. De Lisboa para o Brasil, Pedro Mafama conversou com o Scream & Yell.
Para começar, gostaria que me falasse um pouco do seu trajeto musical e, em particular, que me explicasse qual foi o momento ou momentos que o levaram a seguir a carreira musical e como deu o salto do hip-hop para a sua sonoridade atual.
Eu sou da geração dos músicos autodidatas que trabalharam com o fruity loops studio (um dos softwares mais utilizados no mundo em produções musicais). Antes disso, peguei numa caneta e escrevi umas rimas e a certa altura usei o computador. Demorei muito tempo a sentir-me confiante de que o meu trajeto era mesmo a música, porque achava que só os outros é que conseguiam esse objetivo. Pertenço a uma família de artistas plásticos, mas não tenho músicos no círculo familiar. Sempre desenhei bem e fui um prodígio nessa área. Por isso, senti que o meu destino era ser artista plástico. A música sempre me acompanhou e até lancei alguns trabalhos mas, rapidamente, comecei a pensar como iria fazer algo tão original como as coisas que escutava. Na altura, eu admirava o trap americano, do sul dos Estados Unidos, de Atlanta, porque representava uma faceta tão diferente e local, em que aqueles artistas usavam óculos ray-ban, tinham dentes de ouro e uma história por trás deles, que também se ligava aos blues. Procurei olhar para dentro e entender o que havia em Portugal de inédito, tal como as coisas que eu admiro nos Estados Unidos, mas também do funk brasileiro, porque adorei a virada do funk carioca para o paulista, o funk ostentação e o MC Guimê. Descobri que também gostava de outras sonoridades como o kuduro de Angola ou o dancehall jamaicano e verifiquei que todas as coisas que me interessavam, e acabavam por contagiar o mundo e a cultura pop, derivavam de cenas específicas, tinham razão de ser e uma realidade por trás delas. Em dado momento percebi que a cultura popular globalizada apresenta sempre essa característica própria. O lado local é que cativa a imprensa internacional e o contexto à volta desses nichos torna-os relevantes. Nesse sentido, procurei saber qual era a música da minha cidade e busquei uma sonoridade que fosse um reflexo dessa identidade. Para que você possa estar em Alfama (bairro de Lisboa) e escutar algo que combine com os azulejos e mesmo residindo em São Paulo as pessoas reconheçam e digam: “Ah! Entendo essa música”. Foi um longo caminho a desenvolver a ideia e durante o percurso desviei-me para as artes plásticas, porque entendia que era talhado para isso e a minha mãe sempre me orientou nessa direção, mas cheguei aqui. Também estive na faculdade e fiz um breve trajeto pela arte contemporânea e sinto que estou a juntar as duas coisas: uma música com uma forte componente visual, alicerçada num imaginário que agrega as ruas de Alfama e as aldeias do Alentejo (região do sul de Portugal), tal como a relação do Algarve (a região mais a sul de Portugal) com o Marrocos.
Você produziu o seu disco de estreia em parceria com Pedro Da Linha, o qual contou também com as participações de Ana Moura, Profjam, Branko e Tristany, e samples de Michel Giacometti e dos Dead Combo, entre outras colaborações. A sensação que o trabalho me transmite é de que houve uma tentativa de edificar algo universal e duradouro. Concorda com esta leitura?
Concordo totalmente. Tudo foi concebido dentro do possível. Eu não tive meios disponíveis para produzir um álbum megalómano que atingisse esse objetivo que você referiu. Ambiciono sempre fazer um disco com orçamentos gigantes, em que todos os clipes são grandiosos e tudo é pensado, construindo um monumento que fica para a posteridade. Este álbum foi gravado no estúdio da garagem do Franklin Beats (que gravou, mixou e masterizou o trabalho), que literalmente tem esse espaço em Alverca (uma cidade próxima de Lisboa), e os vídeos não tiveram orçamento ilimitado. Fizemos o disco com poucos meios, mas mesmo assim conseguimos dar um panorama relativamente completo do que está a acontecer, atualmente, em Portugal, através das pessoas que trabalharam comigo neste projeto. É difícil dizer que fechei um capítulo com este álbum ou que consegui dar a minha interpretação da música tradicional portuguesa transposta para os nossos dias. No entanto, sinto que fiz uma obra representativa deste momento, na qual a história de Portugal foi pensada de forma completa e nova. Acredito que este trabalho vai se aguentar durante algum tempo.
Uma das músicas mais animadas do disco, “Borboletas da Noite” (em parceria com Tristany) exibe um pendor dançante apreciável. Podia-me falar um pouco da história deste tema?
Em primeiro lugar, eu fiz a música mas, depois, senti que ela precisava da participação do Tristany. Quando compus a canção, sem ter ninguém em mente, agradou-me a ideia da sedução e do perigo. É um tema sobre a morte e acho que a imagem da borboleta da noite a vir ter com alguém é quase um sinal. É algo mórbido e quando tocamos na borboleta ela desfaz-se em pó, ou seja, trata-se de um chamamento e de uma atração pela morte. Podemos associar esse conceito ao aspecto da traça ou de um bicho feio, mas também está ligado à noite e podemos imaginar igualmente uma pessoa bem vestida durante um serão. Por isso, é como se fosse alguém super adornado durante o período noturno. No momento inicial da canção, eu tentava passar a ideia de sedução e morte. Depois, chamei o Tristany porque ele tem essa dualidade e possui uma coisa muito bairrista e de rua, mas também sensível e delicada. Há uma música dele, “O Meninu Ke Brinkava Com Bunekas” (2020), que está ligada a estes aspectos. Depois de me ouvir falar na figura do Adamastor e de perceber que a faixa tinha algo a ver com o mar e a água, ele passou a ser o pirata ou o anti-herói da música e eu o português no barquinho. Isso completou o trabalho da melhor maneira. Na canção, o Tristany diz: “Eu é que matei o D. Sebastião”. Acredito que estamos finalmente a matar esse mito da nossa história e o fato do Tristany tê-lo feito numa música minha é uma honra.
Nos shows, você diz que pretende alcançar a catarse entre o artista e o público. Esses momentos têm ocorrido na tour atual? E como perspectiva a sua atuação em Novembro no Teatro Tivoli BBVA?
Essa catarse está a acontecer totalmente. Tem sido bonito, porque estou a descobrir o show à medida que domino o trabalho e tem-me sabido bem esquecer o público durante algum tempo. Eu sei que isto parece cinismo, mas virar as costas à assistência em vários momentos revelou-se muito importante. Porque afastei-me das pessoas em diversas fases do show para fazer algo teatral. Durante a interpretação de “Borboletas da Noite”, eu monto uma espécie de altar no palco e subo para o altar quase a rezar. É bastante útil em termos emocionais e de libertação, porque nesse período eu berro durante o som inteiro, ajoelho-me, bato com a testa no degrau e tudo se desenrola com intensidade. Seria desonesto dizer que eu me esqueço dos espetadores, porque isto é representado. Apesar de ser encenado, não deixa de ter o seu valor catártico. Existe uma teatralidade, tal como na missa, e consigo perder-me ali totalmente. A força de soltar os meus demónios acontece nessa etapa e gera uma reação do público. Por isso, a missão está cumprida. Quando interpreto temas como “Jazigo”, desligo-me do público, deambulo, vagueio pela cidade e canto para a minha amada que partiu. O fato de eu conseguir fazer isso e pôr-me nesse lugar, apesar de estar no palco, com muitas pessoas a olhar para mim, e os projetores estarem apontados na minha direção, leva a que eu esqueça o local onde estou e me perca em mim mesmo. Isso é importante. É um teatro que cura. A música popular e urbana tem a pretensão de ser real e verdadeira. Sinto alguma beleza em assumir que isto é uma construção teatral e autêntica ao mesmo tempo. A música gravada e tocada ao vivo tem algo de fingimento, que depois se torna verdade. Mas, não me interessa criar uma ilusão perfeita, é preciso que haja transparência. No show de Novembro, no Teatro Tivoli BBVA, pretendo desenvolver mais o meu lado cénico. Eu nunca me vou esquecer do que é perder a namorada. No entanto, seria doloroso e masoquista lembrar-me disso quando canto uma canção sobre esse assunto. Acho que é mais honesto e justo para mim, como para as pessoas que vêm o meu show, elaborar uma narrativa de concerto em que eu represento um personagem. Penso que assim acede-se melhor a essa emoção. Nesse espetáculo vou querer transportar-me ainda mais (e ao público) para um universo que eu criei, com ênfase na palavra “criado”. Sinto que isso vai levar-nos a momentos mais poéticos, catárticos e interessantes em palco.
Está nos seus planos a internacionalização? Em caso afirmativo, existem possibilidades de fazer shows no Brasil?
A internacionalização está absolutamente nos meus planos e nas minhas ambições de vida. Sinto que faço parte de uma cultura musical que teve muito poucas fases de destaque internacional. No pop português o caso que mais se aproximou foi os Buraka Som Sistema. Todos os países europeus têm a sua estrela, em Espanha estão a fazer coisas que tocam em todo o planeta, tal como os nossos irmãos brasileiros, mas nós ainda não tivemos esse momento de estrelato. Passo a minha vida a pensar na forma como Portugal vai tocar o mundo e acredito que podemos figurar no panorama pop mundial. É uma ideia muito dolorosa e dá muita vontade de trabalhar para atingir esse objetivo. Há quem diga: “Você não passa daqui porque o seu mercado não é apelativo e os portugueses e os brasileiros não se entendem nem se irão compreender”. Discordo desse tipo de narrativa, porque afirmarem que não passo do meu país é a pior coisa que podem dizer a alguém. Também rejeito que Portugal e Brasil, a partir de agora, não se entendam ou haja menos comunicação entre as duas partes. É mais importante fazer arte que uma pessoa natural de São Paulo não conheça, ou seja, produzir algo do sítio de onde vim, para despertar o interesse de um paulista. Devemos pensar também nas pontes musicais que unem os nossos dois países e perceber que o fado tem uma origem entre Portugal, Brasil e África. Sabe-se hoje em dia que o fado veio do lundu. Essa música é originária de África, veio com a escravatura, foi para Portugal e depois para o Brasil. Já existiam nessa altura danças afro-brasileiras que contagiavam Portugal (que tinha uma grande comunidade afro-portuguesa). No Brasil havia a dança do fado, por isso a nossa música está ligada há muito tempo e vai além do óbvio e da presença da corte portuguesa no Rio de Janeiro no século XIX. É no passado que encontramos as várias ligações e há que reinterpretar essas conexões. Não é só agora que Portugal recebe uma enorme influência cultural do Brasil, porque sempre houve uma troca.
Qual é a sua ambição futura?
Moldar o futuro. Isso começa pela minha cidade, passa pelo meu país, pela Península Ibérica e a região Mediterrânica, que inclui Marrocos, sul de Espanha e sul de Itália. São tudo países e zonas às quais eu sinto que tenho algo a dizer. Depois disso, a região Atlântica para a qual, como referi, existe muito para falar sobre esta conexão, e a seguir o mundo. Digo isto não numa perspetiva de dominar mercados ou impingir a minha música, mas sim tentando promover diálogos, criar uma visão e estabelecer pontes.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui.