entrevista por João Paulo Barreto
“Planeta Água”, “Raça de Heróis”, “Meu Mundo e Nada Mais”, “Amanhã”, “Um Dia Um Adeus”, “Coisas do Brasil”, “Brincar de Viver”, “Cheia de Charme”, “Deixa Chover”, “Perdidos na Selva” e várias outras. A lista de canções pilares na estrada percorrida por Guilherme Arantes é grande. Autêntico hitmaker, o cantor, compositor e multi-instrumentista, cujo destaque principal da trajetória está no piano, acaba de completar 68 anos de idade e 45 de carreira. Como marco, lançou “A Desordem dos Templários” (2021), disco com influências do rock progressivo e letras que criam pontes entre o passado e o presente ao abordar, como em sua faixa título, a história da humanidade através de suas guerras reais e mentais. Mas antes de adentrar no material literário escrito por Guilherme Arantes neste mais recente trabalho, é necessário voltar um pouco no tempo e abordar a introspecção do seu autor em um período anterior ao do caótico 2020.
“A virada de 2019 para 2020 foi marcada por uma angústia estranha”, relembra Guilherme. “Queria dar um rumo para a minha carreira. Porque eu vinha me sentindo progressivamente irrelevante. A gente conquista um lugar na música, no respeito das pessoas, fica famoso, faz os shows, mas não é bem isso. Existe um algo mais que é a mente pensante. A mente fabricando coisas e tendo repercussão”, reflete o cantor. Tal angústia acabou por nortear os passos seguintes do artista em suas leituras e pesquisas, dentre essas, um aprofundamento em diversas biografias de nomes pilares da música brasileira. Morando desde 2019 na pequena cidade de Ávila, na Espanha, a ideia era passar apenas alguns meses por lá e retornar ao Brasil. Quando a pandemia teve início, em março do ano passado, esse plano mudou. Sua permanência no país europeu tornou-se indefinida. Junto apenas a sua esposa, Márcia Gonzalez (baiana, mas de família oriunda da Espanha), Guilherme acabou por mergulhar na literatura e nessa contemplação de uma história milenar oriunda do velho mundo.
Essa procura teve início, entretanto, um pouco antes. Mais precisamente no disco de 2017, “Flores & Cores”, cuja faixa “Semente da Maré” já abordava um pouco dessa busca por outro lugar para viver. “Um outro lugar que era uma coisa que fazia com que eu me sentisse meio como um refugiado no mundo, nessas viagens ao longo desses anos. E foi se aprofundando um vínculo, um interesse, um fascínio por essa história secular. E isso é uma coisa que nos falta. Nós, brasileiros, temos um país bem mais jovem. Bem mais, digamos, superficial em termos históricos. E aqui foi o lugar que despertou coisas recônditas na minha música, no meu modo de olhar o mundo. A Espanha virou, então, esse fascínio”, contextualiza o músico.
Em sua faixa título, o novo disco tem perceptível essa proposta de visitar a História secular a partir de uma balança entre passado e presente. Ou, como a própria letra diz, um “pêndulo imerso em escuridão que balança entre paredes da memória”. “A Desordem dos Templários” caminha pelo território de uma ópera rock, unindo de modo contagiante estilos musicais que crescem, passando, inclusive, por uma veia nordestina. Junto com a letra, esse levante visita diversas reflexões do mundo, sua evolução e involução. “É uma alegoria que, ao mesmo tempo, é uma utopia. A figura do templário é uma figura utópica, quixotesca. É uma figura nobre nos seus propósitos iniciais, mas é uma figura anacrônica da busca através da guerra, de um corretivo para algo que está fora do normal”, explica Guilherme ao descrever o personagem de sua escrita.
Tal alegoria, no aspecto histórico de sua presença, tem na letra de Arantes uma forte reflexão sobre essa nossa distopia atual. “O que me interessa (é) a angústia que essa música traz. Por exemplo. ‘As crianças com receio de crescer’; ‘contaminar o céu da cápsula de um tempo sem rancor’; ‘cada dia é uma batalha desigual em nome de uma paz e tudo que se entende por normal’. É a busca através da guerra para se conquistar o amor e a paz. O que eu tentei levantar, e que é mais importante, é a gênese da distopia. Quer dizer, por causa desse colapso da linguagem, você partir para a guerra em nome da ordem, da paz e do amor. É estranho um poder militar tentando impor uma fé, uma fé cristã à época”, pontua o músico.
Sendo um disco gravado durante um período de confinamento, além de coincidir com uma fase de convalescença do músico, que enfrentou uma braquialgia que o deixou de cama por um tempo, é natural que uma vertente mais intima reverbere por suas composições. Uma das faixas, inclusive, bate pesado por refletir a perda de sua própria mãe, dona Hebe, que faleceu em 2020, e de quem o músico não pôde se despedir pessoalmente. Ao falar sobre o fato, Guilherme Arantes pede desculpas por se deixar levar pela emoção ao não impedir as lágrimas que surgem quando explica o processo de composição de “Estrela-Mãe”: “Eu tive poucas oportunidades de zerar o placar, de zerar a minha relação com a minha mãe”, explica o compositor. “Nas últimas décadas, fiz muita força para estar junto a ela. Meu pai faleceu em 2003. De lá pra cá, eu ia direto à São Paulo. Convidava-a para almoçar, para jantar. E ela batia papo comigo. A gente zerou muito a nossa relação”, relembra Guilherme.
“Estrela-Mãe”, para o ouvinte, remete à reflexão de uma relação mal resolvida com os próprios pais. É o meu caso. Pensar no aspecto de entrega pessoal do músico dentro desse processo de composição é algo admirável, principalmente por ouvi-lo dizer que sua mãe escutou aquela carta de despedida já em seu leito de morte. “A letra é um arrependimento no último minuto do segundo tempo da prorrogação. Mas, ali, a hora já tarda e a noite já veio. Já estou no anoitecer. Já sou um cara de idade. E aí eu venho pedir perdão. Foi uma coisa lancinante que a minha mãe ouviu no leito de morte. Desceu uma lágrima dos olhos dela. Mas ela sorriu, também”, sorri Guilherme ao contar.
Em um das faixas, a instrumental “Kyrie”, o Guilherme Arantes de sessenta e poucos remete ao rapaz de vinte e poucos, ainda nos anos 1970, influenciado pelo rock progressivo de nomes como Yes, Vangelis e Emerson, Lake & Palmer. “O ProgRock foi muito importante na minha mocidade. Foi quando se convergiram conceitos não só da psicodelia, do uso de substâncias de conexão, de substâncias transformadoras de percepção. Essa época na minha vida, que foram os anos 1970, o progressivo era uma coisa que era inacreditavelmente bela”, reflete Guilherme, e crava, ao pensar em toda a sua trajetória de quase meio século: “Não sei se eu vou longe demais com minhas pretensões. Eu sou apenas um bardo. Sou apenas um menestrel, um trovador do afeto. É assim que eu me defino”.
Nesse papo profundo com Scream & Yell, Guilherme traz mais dessas suas impressões do mundo e como isso reflete em sua vida e trabalhos. Confira!
Ao ler o release de “A Desordem dos Templários”, me chamou a atenção o fato de ser um texto denso, íntimo e pessoal assinado por você. No texto, questões pessoais relacionadas à sua vida nos últimos anos são colocadas em destaque, como sua ida à Espanha em um período anterior à pandemia e a permanência aí, bem como seu estado de introspecção e revisão, além de um destaque aos problemas de saúde que lhe atingiram durante o ano passado. Foi uma surpresa ler um texto tão particular e que adentra no disco de forma aprofundada. Como foi esse processo todo de introspecção em sua própria vida e carreira, e que culminou nesse novo trabalho?
A virada de 2019 para 2020 foi marcada por uma angústia. Tinha uma angústia estranha no ar. Eu queria dar um rumo para a minha carreira. Porque eu vinha me sentindo… (pausa) progressivamente irrelevante. A gente conquista um lugar na música, no respeito das pessoas, fica famoso, faz os shows, mas não é bem isso. Existe um algo mais, assim, que é a mente pensante. A mente fabricando coisas e tendo repercussão. Eu senti que o último disco que fizemos em 2017… esse disco tinha uma música, “Semente da Maré”, que falava justamente sobre procurar um outro lugar para viver. Um outro lugar que era uma coisa que fazia com que eu me sentisse meio como um refugiado no mundo, nessas viagens ao longo desses anos, desde 2014. E foi se aprofundando um vínculo, um interesse, um fascínio por essa história secular. E isso é uma coisa que nos falta. Nós, brasileiros, temos um país bem mais jovem. Bem mais, digamos, superficial em termos históricos. E aqui foi o lugar que despertou coisas recônditas na minha música, no meu modo de olhar o mundo. A Espanha virou, então, esse fascínio. A gente acabou comprando um apartamentozinho aqui. Ávila é uma cidade pequena e barata. Não é uma metrópole turística. É uma cidadezinha de interior. Eu acabei gostando muito dessa vida, aqui. Quando a pandemia chegou, por volta de fevereiro, março de 2020, foi um momento em que eu estava estudando o meu cravo. Eu tenho um cravozinho elétrico e estava estudando as músicas. Tentando dichavar o barroco. Como é que os caras construíam aquelas estruturas que dialogam. E olhar por dentro da música o fazer da composição desses caras. Do Haendel, do Scarlatti. Era uma viagem muito pessoal minha. Para dar um tempo. Para ler mais, também. Lembro que a Márcia começou a ler Honoré de Balzac. Já está no terceiro livrão de Balzac. Ela gosta das histórias. E mergulhei muito em livros sobre o Brasil. Eu tentava entender a nossa geração e o que ela pegou pela frente. A música popular. E comecei, então, pelos livros sobre o Simonal, a história do Garrincha, a história do Samuel Weiner, que era (do jornal) a Última Hora. E eu nunca tinha parado para prestar atenção na história do Jornalismo brasileiro. Porque o músico vive aquele mundo da música, e quando ele se defronta com o Jornalismo, é sempre conflitante. Porque ele se vê como um injustiçado. Que não tem reconhecimento da opinião das pessoas. Então, eu fui atrás de fundamentos para explicar como é que o Chico Buarque virou o Chico Buarque. Como o Caetano Veloso virou o Caetano Veloso. Isso para eu tentar entender como é que o Guilherme Arantes pode tentar virar um deles. Como o Guilherme Arantes poderia vir a significar o que essa outra geração significa. Porque é muito mais! Por que a nossa geração posterior conseguiu um nível de reconhecimento menor? Porque a História teve momentos e circunstâncias para essas gerações. E não é só o Chico e o Caetano. É o Samuel Wainer, é o Nelson Motta, é o Sérgio Cabral, é o Tom Jobim. Eu fui atrás das biografias da Nara, do Simonal. Todas as biografias. Eu queria entender, por exemplo, como é que destruíram o Simonal. Como ele deu tanta bobeira? O que ele fez de tão errado? E fui descobrir que o Simonal era um cara muito atrevido. E esse atrevimento o levou a ir ao Pasquim, pessoalmente, para enfrentar Henfil, Jaguar, Paulo Francis, Tarso de Castro. Tá de brincadeira? Como é que esse cara vai lá? É uma coisa que eu nunca pensaria em fazer. Um enfrentamento desses. Mas, ele, não! Ele foi um cara que foi de peito aberto, tentando galgar a mesma grandeza que o Chico, que o Caetano, que o Gil tinham conquistado com obras gigantescas.
Tratou-se, então, não somente de um revisitar da sua própria trajetória, bem como um mergulho na história da música brasileira como um todo.
Sim. Eu fui tentar entender como se constrói e como se destrói os mitos, os grandes nomes. Como se constrói um mito do tamanho do Tom Jobim? Como era o Rio naquela época? Eu me fascino muito pela era do samba-canção. Na era da Maysa, do Tito Madi, daquele Rio de Janeiro dos bares, do Bom Gourmet. Como que surge a Bossa Nova? Eu queria entender a gênese de nossos mitos da música popular, da nossa cultura, mesmo. Nesse período, eu li mais de 40 livros. Quando se instalou essa braquialgia e eu fiquei de cama, isso foi ruim e, ao mesmo tempo, bom para mim. Porque deu uma panorâmica diferente. Só o livro do Samuel Wainer, por exemplo, foi fundamental para eu entender como que se cria a opinião no Brasil. Como que se gera o consenso sobre certas coisas.”Por que fulano é grande?” Como que se cria um Vinícius de Moraes? Lógico que existe a genialidade deles, mas a nossa geração, essa na qual estou eu, Djavan, Fábio Jr., Roupa Nova e tantos outros, a gente é relativizado em importância porque não teve um contexto histórico que nos galgasse. Eu fui descobrir, por exemplo, que para a carreira do Chico Buarque foi fundamental o Brasil perder a Copa do Mundo de 1966. Olha que coisa incrível! Porque, ali, o foco nacional era a chegada da televisão. E ali está aquela primeira geração, que é uma geração de ouro. Nomes como Elis, Chico, Caetano, Gil, eles são uma geração brilhante de gênios da música. Mas eles tiveram uma circunstância que, até mesmo o Brasil perder com Pelé e Garrincha lá na Copa da Inglaterra, abriu espaço para que o grande mito daqueles meses se consagrasse. O mito vindo das rodas de bar, de onde se fabrica a opinião. O Brasil é um país “botequeiro”. É um país onde a opinião gira na roda do botequim, do comentário popular. E a música popular ocupou, então, o espaço do futebol, com os festivais. E aí, sai Pelé, sai Garrincha, e quem entra é o Chico Buarque, o Gil, o Caetano. Entender isso é muito importante para que a gente… (pausa). Porque eu tenho que a minha obra, as minhas músicas… eu tenho muitas músicas boas, como “Planeta Água”, “Raça de Heróis”, “Meu Mundo e Nada Mais”, “Um Dia Um Adeus”, “Coisas do Brasil”, “Brincar de Viver”. São coisas que atingiram o imaginário popular e que eu considero de certa grandeza. Elas atingiram o afeto do brasileiro. Quando toca Maria Bethânia cantando “Brincar de Viver”, é uma coisa que aflora. Assim como aflora a Elis cantando “Atrás da Porta”, do Chico, ou “Canção da Terra”, ou cantando Milton Nascimento. A grandeza do Milton. Então, como que a gente faz para resgatar junto ao público um… não é bem um reconhecimento. Não é isso. É uma… (pausa) Não basta você ser. Você precisa ser considerado como tal. Então, você pode ser um grande compositor, mas não basta ser. No Brasil, você tem que ser considerado como um grande compositor. E isso é uma construção misteriosa. Uma construção difícil. Nós temos que ter respeito pelos grandes nomes. Ninguém está aqui questionando o tamanho deles, desses grandes nomes. Mas eu queria entender mais disso. E aí as minhas leituras acabaram indo para livros como o da Elaine Brum, “Brasil: Construtor de Ruínas”. É um livro revelador sobre o Brasil. É um livro muito bom. Os livros do Helio Gaspari, por exemplo, sobre a ditadura. Além do de Zuenir Ventura sobre o que aconteceu. Esses livros me deram uma compreensão bastante… digamos, em Panavision, assim. Você entende melhor. E quando a gente chega em uma idade, eu já estou com quase 70 anos, você tem que dizer: “Não, agora eu consigo entender um pouco mais o mundo, o Brasil.” Está na idade de destrinchar os conceitos. E isso aí foi me ilustrando.
Dentro desse processo de leitura e aprofundamento na música e na história dos movimentos culturais e musicais brasileiros, como foi o processo de se encontrar inserido neste contexto?
Eu vinha de uma viagem meramente musical. Eu estava no barroco, estudando os livros do Scarlatti, mas achava que faltava um algo mais. Fui ler, por exemplo, a história do Renato Russo. Algumas histórias do rock brasileiro me interessam entender, sabe? Vou citar um exemplo. Nos livros sobre os anos 1980, o grande momento do Guilherme Arantes é quando ele faz, junto com Julio Barroso, “Perdidos na Selva”. Isso nos livros. Mas será que, de tudo o que eu fiz, de tudo o que eu escrevi, só esse momento é pinçado como sendo importante na década de 1980? Por quê? Porque eu estava parceiro de um jornalista, que era amigo deles, amigo de redação, e que era maluco, que era o Julio Barroso. Fizemos uma música bacana, seminal, transformadora, que abriu as portas. “Mas, espera, não aparece nada da carreira do Guilherme Arantes?” Nada! Não aparece nada da minha carreira nos livros dos anos 1980, por exemplo. Eu sou totalmente ignorado. É como se eu fosse um artista comercial. Mas era mais do que isso. “Deixa Chover”, por exemplo, é uma música transformadora. Ela é mais transformadora do que o “Perdidos na Selva”, porque aponta para uma fusão da Bossa com o Pop. Então, era a Bossa que a Marina procurava com “Fullgaz”, por exemplo. Era um momento importante do Cazuza, por exemplo, quando ele faz músicas como “Faz Parte do Meu Show”, “Eu Preciso Dizer que Te Amo”, as coisas que o Cazuza fez. Então, eu era um cara diminuído, assim, no computo dos anos 1980. E reduzido a parceiro do Julio Barroso. Os anos 1980 parecem que são anos que fascinam os críticos, os jornalistas e o público. E a gente conseguiu uma coisa muito importante. Nos anos 1980, fizemos um crossover social. Então, relativizar o Guilherme Arantes é muita sacanagem. Por que eu consegui ser um cara tão indigesto? Eu sei o porquê. É porque eu não lia os trabalhos dos jornalistas. Eu não me interessava pela vida dos jornalistas. Eu não me interessava pela história do Jornalismo no Brasil. Hoje, é diferente. Hoje, eu fui ler tudo do Ruy Castro, por exemplo. Fui ler a biografia que o Sérgio Cabral fez do Tom Jobim. As histórias do Nelson Mota. Você tem que ler mais. O músico que não lê, fica relegado a um patamar secundário. Tanto é que, por exemplo, Renato Russo lia muito. Cazuza, também. Então, eu fico intrigado em entender como os dois maiores nomes do BRRock que restaram mais destacados, que são Cazuza e Renato Russo, tocavam mal instrumento. Ou não tocavam instrumento. Não eram músicos. Interessante isso. Eles eram mais das letras, da literatura, da visão crítica e de um ser poeta que tem muita afinidade com o jornalista. E o músico fica sempre visto como um esquisito, assim como é o João Gilberto, como é o Johnny Alf, como é o João Donato. Ele não é considerado um intelectual. O intelectual, no Brasil, é quem domina as letras. Quem domina o mundo da linguagem escrita. Isso era importante eu entender. Sabe por quê? Porque eu sou o letrista das minhas músicas. Eu não dependo de parceiro. Tudo foi escrito por mim. “Meu Mundo e Nada Mais”, “Um Dia Um Adeus”, ‘Êxtase”, “Planeta Água”, “Amanhã”. Então, por que eu sou considerado segundo time? Só porque eu toco instrumento? No Brasil, tocar um instrumento é defeito. Não é qualidade. Você pegar um violão e tocar bem, esse não é um intelectual. Com isso, eu fui procurar as razões disso ser assim. E com respeito. Com respeito pela visão jornalística, também. Isso me deu uma condição de escrever um trabalho melhor. Eu acho que venho melhorando. Dos anos 2000 para cá, há uma guinada qualitativa. Das letras irem melhorando. Tanto é que o disco “Condição Humana”, que foi de 2013, foi eleito o melhor disco da década (em concurso online da Red Bull Brasil). Isso é uma coisa assustadora. Melhor disco da década. Concorriam Chico Buarque e Caetano Veloso, com os discos “Caravanas” e “Abraçaço”. Então, a coisa começa a tomar um novo rumo para mim. Nós temos que melhorar sempre. O músico acha que basta ele tocar um instrumento e já se considera um intelectual. Mas o mundo é mais complexo. Você tem que entender o valor da palavra. Por exemplo, o valor do Antônio Maria. Ele não tocava instrumento, mas ele é fundamental na música popular do Brasil. O Renato Russo não era um virtuoso de instrumento. Tocava, mas o forte dele era a linguagem poética, a linguagem oral das entrevistas. Então, a gente tem que melhorar. Eu acho que esse período serviu muito para eu dar uma qualificada em mim, mesmo, sabe? Olhar os defeitos da gente. Vou contar uma coisa: quando eu estava com o Julio Barroso, eu não dava muito valor para aquilo. Eu achava que o foda era eu! Eu era o foda! Eu construí aquilo tudo para ele, que era um louco! Só que depois a História vai mostrar que ele era um cara transformador. Era um vetor de mudança que ia ser o grande reconhecimento de uma época. É o poeta. A gente tem que dar valor mais para o poeta, entendeu? E eu como sou meio auto-suficiente… “Ah, você fica fechado no seu convencimento. No seu auto-conceito”. A gente tem que enxergar a realidade das coisas, sabe? Então, acho que eu melhorei bastante.
Todas essas reflexões oriundas de anos anteriores e que culminam em um período de perdas, de convalescença, de auto-análise, batem forte. É, também, uma época difícil da humanidade, que vem perdendo a capacidade de se comunicar. Como isso influenciou suas reflexões e reverberou para o processo de composição do disco?
Esse período, esse sofrimento, serviu para arrancar mais da alma. Arrancar mais sentimento para as músicas. Dessa angústia de uma época. Um período angustiante. Uma época de distopia. Vemos que há uma distopia. O mundo viveu tantas utopias bonitas, por exemplo, o Iluminismo, a Paris de 1900, o Marxismo, que são caminhos que a humanidade vai para uma direção. Você teve movimentos como os descobrimentos aqui na Espanha. Você vê a importância do descobrimento da América. Aquele ouro todo entrando e o rei mecenas, aqui, o Carlos, de Alcalá, que era o maior mecenas das artes. Então, há um florescimento das artes. São momentos da humanidade. Nos anos 1960, houve a utopia dos hippies, de 1968. “É Proibido Proibir”, a contracultura, e tudo. Hoje, parece que a humanidade deu uma murchada. Ficou cambalacho, sabe? As pessoas estão se estranhando. As redes sociais vieram para amplificar o rancor, a mágoa. Algo generalizado, entendeu? Então, começa a aflorar isso. Tem uma pessoa que é mais coletivista. A outra é mais individualista. Aí, as pessoas começam a se estranhar total. As redes funcionando como uma ágora, um espaço de participação social prejudicado pelo rancor generalizado. Esta é uma coisa que me dá angústia, preocupação. Para essas novas gerações, meus netos, qual mundo vai ser? Será que não vai ser uma barbárie digital? Nós estamos entrando em uma idade média. E aí eu comecei a construir esse disco com essa ideia que nasceu da música, mesmo. “A Desordem dos Templários” é uma alegoria sobre essa busca de uma reordenação da humanidade. Na marra. Algo como (voz imposta): “Não, o mundo já teve liberdade demais! As pessoas precisam ser contidas em um código mais eficiente social.” Ah, isso tudo é irreversível. Ninguém vai conseguir mandar as pessoas negras de volta para a senzala. Ninguém vai conseguir mandar as pessoas LGBTQIA+ de volta para o armário. Ninguém vai conseguir. A sociedade está se tornando mais complexa e é preciso mais sentimento. É preciso mais humanidade. É preciso mais compreensão. E eu tentei fazer um disco bastante afetivo. Um disco de afeto, de amor. Canções de amor, mesmo. Eu acho que as pessoas estão ávidas por isso. E era o que eu tinha para fazer porque eu estava à flor da pele. Nós estávamos isolados aqui e sem voltar para casa. Na incerteza de que mundo é esse. Bateu uma angústia. E isso é um prato cheio para as minhas músicas. Eu tentei despejar isso na música. Mas o fundamento é o sentimento, mesmo. Eu acho que, mesmo quando falo espiritualmente, no campo espiritual, eu falo sobre o sentir espiritual. Não é o saber. Não interessa o crer. Não interessa o “eu sei”, “eu creio”. As pessoas falam: “Ah, porque eu creio.” Não! Você tem que sentir. Se você não sentir, não adianta nada. E eu sei que até Jesus, nessa hora, está sorrindo para mim. Porque a lição, a mensagem dele, era o sentir. Eu quero esse sentimento de elevação. Sentimento de ligação. Sentimento de afinidade. E isso é delicado em uma época na qual as pessoas estão crispadas, entendeu? Tento com esse disco levantar essa chama do sentimento. Acho que é essa a minha mensagem.
Nas letras, o disco traz um equilíbrio entre temas mais pessoais, reflexões sobre a natureza do mundo e das pessoas, bem como um toque romântico. Falando sobre esse lado mais pessoal, queria pedir licença para abordar contigo o processo de composição de “Estrela-Mãe”, e o modo como tal letra impactou na sua relação com sua mãe, que faleceu em 2020.
O caso da minha mãe foi uma coisa que… Falar disso até me embarga, aqui. Desculpe. (pausa) Eu tive poucas oportunidades de zerar o placar, de zerar a minha relação com a minha mãe. Ela era uma mulher muito forte de sua geração. Ela queria ter trabalhado e meu pai não deixou. Meu pai era de uma geração que não queria que a esposa trabalhasse. A grande luta da minha mãe era ir para o mercado de trabalho. Ela havia feito curso de Biblioteconomia e, também, o de Comércio, na (FAAP – Fundação Armando) Álvares Penteado. Era uma mulher de mercado de trabalho. Era uma mulher que saia de casa. Era de uma geração que queria ir para o mercado de trabalho. Queria trabalhar para ter o seu sustento, para ter a sua liberdade de mulher. Isso era uma coisa geracional. Dessa geração dos anos 1950, quando, depois da guerra, as mulheres americanas entraram no mercado de trabalho com tudo e deram um exemplo para o mundo todo. As mulheres queriam ter seu carro. Queriam fumar. Queriam trabalhar, ser do mundo. Queriam estar no ambiente do trabalho, tomar café com os amigos, voltar para o trabalho, ter aquela rotina. Era uma nova ordem da família brasileira em que a minha mãe foi impedida pela truculência do meu pai. Ele, assim como os irmãos, gostava de armas. Gostavam de revólver. E isso ficou impregnado na minha juventude, na minha mocidade. O meu tio, por exemplo, foi assassinado com os seus próprios revólveres lá em Araçatuba. Então, tudo isso acaba se ligando em uma coisa do afeto e das lembranças dessa truculência, inclusive sobre a mulher. A minha mãe se tornou uma mulher muito amarga, muito triste. E acabou descontando em mim, que era um filho rebelde. E eu apanhei muito, tive muito conflito dentro de casa. O meu pai tentava exercer a autoridade à força, na tora, entendeu? Você vê que as coisas acabam se ligando. Eu, nas últimas décadas, fiz muita força para estar junto à minha mãe. Meu pai faleceu em 2003. De lá pra cá, eu ia direto à São Paulo. Convidava minha mãe para almoçar, para jantar. E ela batia papo comigo. A gente zerou muito a nossa relação. Eu dizia que a amava, que entendia o seu drama. Que ela foi uma mulher muito bonita, à época, e que queria ter trabalhado. Eu compreendia profundamente o drama da mocidade da minha mãe. E a luta da vida dela e tudo. Eu tive essas últimas oportunidades com ela. E agora, no final, eu queria colocar isso tudo em uma música, que era uma homenagem para ela. Eu queria dizer a ela que entedia. Que eu queria ter feito os sonhos dela para mim. De eu me formar na faculdade. Eu podia ter feito tudo isso e não fiz. Porque os jovens, como eu falo na letra, vão procurar os seus caminhos e acabam não atendendo um pedido de uma mãe para se formar. Era isso. A letra é um arrependimento no último minuto do segundo tempo da prorrogação. Mas, ali, a hora já tarda e a noite já veio. Já estou no anoitecer. Já sou um cara de idade. E aí eu venho pedir perdão. Foi uma coisa lancinante que a minha mãe ouviu no leito de morte. Desceu uma lágrima dos olhos dela. Mas ela sorriu, também. Seu nome era Hebe. Hebe era a deusa que trazia o néctar para os deuses. Então, na letra, eu falo: “você doou seu melhor néctar na vida.” Puxa, isso aí para mim, olha… Nossa! A minha mãe entendeu direitinho. E quando ela partiu, levou essa mensagem com ela. Isso é uma coisa que não tem… (pausa) É algo muito meu, sabe? Foi feito só para a Hebe. Do Guilherme para a Hebe. Mas eu acho que todo mundo que tem esse sentimento com a mãe vai gostar porque é uma música muito intensa. Tem a orquestração do (Arthur) Verocai. Ele ficou muito emocionado quando apresentei a música a ele. Chorou ao telefone comigo. Foi muito bonita a construção disso.
Outra letra que me chamou a atenção foi a de “Toda Aflição do Mundo”. Os trechos “É a arma na mão de um fraco, mandando obedecer…/A ameaça é o seu instrumento, o que sabe tocar” são pontos de reflexão bem densos quando pensamos nos que detêm o poder atualmente.
Essa da arma é sobre a instância do poder que ela possui. A instância da ameaça. A ameaça é um instrumento do perdedor. É aquele perdedor que está portando uma arma. E essa arma não é somente… (pausa). Eu não estou me referindo ao militar. Estou me referindo ao assaltante no meio da rua. Porque ele é um perdedor que puxa a arma e coloca uma família de joelhos. Humilha uma família porque essa é a linguagem que ele tem para se relacionar com o mundo. Trata-se de uma pessoa que está assinando o atestado de perdedor. Quando a pessoa pega uma arma e ameaça o outro de morte, ela está exercendo um poder de merda. Porque aquele poder é uma instância característica do fracassado. Se você tirar aquele instrumento da ameaça, ele se transforma abaixo do nada. Ele não vale nada, entendeu? E a arma é um símbolo muito forte para mim porque o meu tio morreu assassinado. O meu pai e o irmãos tinham essa mania com negócio de arma. Hoje, isso aparece no Brasil como uma linguagem de defesa para as pessoas achando que é válido. Mas só que, ao mesmo tempo, tem essa legitimidade, que as pessoas querem defender perante uma realidade que se apresenta. Porque tem que entender o seguinte: no meio rural, os caras estão assaltando fazendas. E o cara quer defender a propriedade dele porque o Estado não dá garantias. Mas só que isso vai levando a uma beligerância. Onde é que vai parar isso? Para mim, a arma continua sendo a última instância de perdedor. Por isso que eu falo: “a arma na mão de um fraco, mandando obedecer.” É uma instância cuja aflição do mundo tem a ver com o poder militar. Com as ameaças das grandes nações, a ameaça atômica. Quer coisa mais absurda que bomba atômica? É uma instância do absurdo. Aquilo é o fracasso da humanidade. O fracasso chama-se armamentismo. E parece que a humanidade vai seguindo essa barbárie em uma direção na qual o conflito não é uma linguagem construtora de um futuro. E existe essa concepção absurda: “Quer a paz? Então, prepare-se para a guerra.” É assim? A humanidade funciona assim? É uma coisa que vai ter que ser vencida. Essa instância do conflito, essa instância da truculência, isso vai ter que ser vencido. Porque o poder, de fato, o poder dos grandes líderes, do Buda, do Jesus Cristo, é uma mensagem inacreditavelmente transformadora. Uma mensagem que destruiu Roma. Uma pessoa de chinelo, andrajoso, um cara que andava no meio de um arrabalde no fim do mundo lá do Império Romano. Um cara só com a palavra dele. Só com o que ele gerou em relação ao seu discurso, que tinha um poder que acabou transformando o mundo e derrubou Roma. Então, me interessa muito esse poder. Esse poder verdadeiro, que é o do afeto, o poder da empatia. O poder da compaixão. A compaixão é poderosíssima e as pessoas não podem, em uma época como a atual, menosprezar a compaixão e a compreensão. É que estamos vivendo um período, realmente, complicado com a humanidade. E não é só no Brasil. Aqui está crispado, também. A Europa está ressentida. E há uma ameaça constante, aqui. Uma ameaça aos direitos, há uma ameaça às conquistas, ao progresso. Mas esse é o tempo que nós temos. E como é que a gente reage? Reagimos com afeto, com compaixão, que ela é desarmadora. Ela é o único jeito de você, por exemplo, fazer o camarada abaixar a arma contra uma família. É na palavra. Se você tiver a palavra precisa, ali, é fácil de desarmar. E o cara abaixa a arma e desaparece a ameaça. Agora, é um processo muito complexo.
No começo da nossa conversa, você falou sobre a geração anterior à sua, citando nomes como os de Chico, Caetano e Gil, que surgiram na segunda metade da década de 1960 em um contexto político no qual suas vozes reverberaram como críticos de um período tenebroso no Brasil. Qual sua opinião sobre essa função social do artista, principalmente agora, como alguém cujas opiniões precisam ecoar, também, sociologicamente?
Não sei se eu vou longe demais com minhas pretensões. Eu sou apenas um bardo. Sou apenas um menestrel, um trovador do afeto. É assim que eu me defino. Eu não sou bom da oralidade, não sou bom de palestra, da sociologia. Isso aí é para um (Mário Sergio) Cortella, um (Luiz Felipe) Pondé, um (Leandro) Karnal. Esses caras que dominam a oralidade. E eu acho que, inclusive, é uma coisa que eu buscava entender era por que na década de 1960, os compositores acabaram sendo os grandes oralizadores sociológicos e políticos? É aquilo que eu falei. O protagonismo, por exemplo, do Chico Buarque, que, em 1966, entra em cena. Um cara super inteligente, bonito, com uma poesia maravilhosa, com canções incríveis, Uma genialidade belíssima. Até como músico, como composições de canções. Não é só como letrista. Músicas como “Olê Olá”, “A Rita”, “Pedro Pedreiro”, ‘Tem Mais Samba”, “Carolina”, “Januária”, “Com Açúcar Com Afeto”. É uma coisa de uma beleza. Quando sai Garrincha e Pelé de cena do papo nacional, entra um cara com esse preparo. Um craque de bola das letras. E o momento político o leva a ser um ente transformador nas entrevistas. E cria-se um padrão. Que o artista tem que ter um lado sociólogo. É um padrão que ainda se cobra da gente. É cobrado que você se posicione. Mas isso é uma moda. Eu acho que é uma moda. Se você olhar, dos anos 1950 para trás, Cartola, Pixinguinha, Braguinha, Tito Madi, Johnny Alf, não são bons de sociologia. Ninguém ficava dando pitacos de política. Isso aí começou em uma época determinada, na qual isso era a linguagem daqueles anos, do final dos anos 1960. Cria-se esse tipo de personagem que é o compositor. Isso é uma grande tentação para nós. Para fazermos isso. Eu tenho colegas que são muito bons em pilotar a carreira. Para não cair nessa armadilha da sociologia. Nós somos músicos. Eu sou trovador, sou um menestrel, um bardo. Agora, o bardo, na idade média, não ficava falando os caminhos da política. Isso é uma coisa recente. E eu acho que o meu trabalho fala por si. Tem algumas coisas que as pessoas vão identificar. Por exemplo, quem pega em arma, é uma instância perigosa. Você pode estar em um papel de perdedor. Porque você depende daquilo para ser algo, para significar alguma coisa. Em alguns pontos, eu coloco isso. Não gosto da truculência da sociedade. Nem de um lado nem de outro. Eu acho que o Brasil vai melhorar quando sair dessa discussão. Quando reaprender o seu afeto. O Brasil precisa do afeto. Precisa de um tratamento afetivo. A época está muito difícil, realmente.
Faixa título do disco: “A Desordem dos Templários”
É uma alegoria que, ao mesmo tempo, é uma utopia. A figura do templário é uma figura utópica, quixotesca. É uma figura nobre nos seus propósitos iniciais, mas ela é uma figura anacrônica da busca através da guerra, de um corretivo para algo que está fora do normal. Na época, seria a invasão muçulmana, que ocorria na Península Ibérica. Então, os templários eram uma arma da igreja para expulsar os mouros. Seria a Reconquista que ocorreu aqui na Espanha. Na cidade de Ávila, que é onde moro no momento, o pau quebrou. Aqui, teve uma dominação muçulmana de muitos séculos. De montar um califado. Tinha um califado sediado em Ávila. Então, a figura do templário é uma figura ao mesmo tempo da utopia e da anacronicidade. Da luta em nome de uma crença. Em nome de uma fé. No fundo, era um esforço militar de reconquista. Agora, o que me interessa, a angústia que essa música traz… Por exemplo: “as crianças com receio de crescer”; “contaminar o céu da capsula de um tempo sem rancor”; “cada dia é uma batalha desigual em nome de uma paz e tudo que se entende por normal”. É a busca através da guerra para se conquista o amor e a paz. Isso é uma coisa já contraditória. Uma contradição histórica e que se engendra. Que está por trás das guerras, dos conflitos, da Humanidade. É uma raiz conflitante que existe dentro de nós. O que eu tentei levantar, e que é mais importante, é a gênese da distopia. Quer dizer, por causa desse colapso da linguagem, e você partir para a guerra em nome da ordem, da paz e do amor. É estranho um poder militar tentando impor uma fé, uma fé cristã à época. Isso é uma instância exagerada. É uma alegoria que eu faço. Esses estados teocráticos que começam a emaranhar política e religião, são momentos que aconteceram, por exemplo, com o Trump, que é mórmon. Então, você vê se levantar uma massa eleitoral que enxerga nele uma voz para um movimento de ordenação das coisas que fugiram de controle. Mas eu não estou me referindo em particular à Hungria, ou ao que está acontecendo na Polônia. Esse levante que há de direita e que o Brasil acompanha. Há outros países da América Latina, também, que têm esses espasmos. Vamos dizer que a história é feita de espasmos. Você tem espasmos em uma direção, espasmos em outra.
A letra fala dessa ideia do tempo, com um pêndulo ligado à memória. Esse trecho é um dos mais fortes e reflexivos.
Quando eu falo do pêndulo, que o espírito de luz que poderá mover o pêndulo imerso em escuridão, esse pêndulo é o histórico. O pêndulo que vem para cá, que vai para lá. A paz onde o pêndulo está mais equilibrado, o movimento é de menos amplitude. O caso do Brasil, eu não estou entrando nesse mérito porque para nós é muito importante a gente entender a gênese dessa distopia. Como chegamos a esse estado de beligerância. Porque, para sair dessa pendulação, vai ter que haver um esforço mais alto de compreensão. Não adianta você gerar uma energia em direção contrária. Eu acho a política uma linguagem já rasteira. Eu estou querendo um ambiente para a minha música que não é esse. É um ambiente de uma guerra interior dentro do espírito humano que acaba gerando os conflitos no campo externo. Então, essa coisa da fé, por exemplo. Em nome da fé, você gera a guerra. O sentimento espiritual é mais importante do que a fé. Você dizer que crê em um deus é diferente de quando você sente que há algo. Esse sentir me interessa. Esse sentir é profundo. E é nele que é fundamentado o “religare” do espírito. É uma coisa que eu não sei descrever. Uma coisa que pertence ao mistério do universo, que é essa entidade. Mas o que eu vejo é que tudo vai levando para o conflito. As crenças, as ideologias. Então, como que se gera esse estado de beligerância? Para mim é mais importante ir lá na raiz disso. Nós precisamos, de novo, de afeto. De compaixão e de humanidade. Eu acho que tudo aquilo que não tem humanidade vai ser riscado da história, como traste, como lixo da História. Aquilo que não contiver compaixão e humanidade, é a escória que será esquecida da História. Não precisamos dar nome a isso. Porque vai ser virada a página. A humanidade caminha rumo ao entendimento, rumo à pluralidade, rumo ao respeito, à compaixão e à compreensão. É uma época que nos cobra muito. E o meu ambiente é o afetivo. É o ambiente do amor. É nele que eu pretendo transformar. É como Jesus. Voltando ao exemplo de Jesus, quando o coletor de impostos chega para coletar, ele é incitado a ser da oposição à Roma. É chamado, então, para proferir o que ele acha daquilo. Ele, então, se refere à figura do Augusto Cesar na moeda. Ele fala: “a quem pertence isso?” Ele fala isso que é a chave do que foi cortante e transformador no cristianismo. Ele fala: “o meu reino não é desse mundo. A minha linguagem não é essa. É isso que ele quer? Ele quer o dinheiro? Dá o dinheiro a ele.” Então, ele se recusou a fazer o jogo que já era o jogo polarizador que existe hoje. Que está muito exacerbado em vários países. Aqui, também. Aqui (na Espanha), o pau quebrou recentemente. Continuam todas essas feridas. Só que aqui é um país onde a instância da guerra chegou a um nível e que eles não querem nunca mais esse conflito que houve, que foi a Guerra Civil Espanhola. O Brasil é um país que precisa tomar cuidado com o seu afeto, entendeu? Precisa cuidar do seu afetivo. E ter serenidade para transformar. Ter profundidade e serenidade para transformar. Sabe por quê? A truculência quer o ódio. Ela quer o rancor. Eu lembro agora da figura do Imperador, em “Star Wars”, e quando o Luke Skywalker cede ao rancor, ao ressentimento e ao ódio. O Imperador só falta ter um orgasmo. É isso que ele quer. É essa energia que alimenta aquela estrela da morte. Aquela série de filmes é muito interessante porque ela vai a fundo nessa natureza belicista. Como que se gera o ovo da serpente. É por aí. Eu tento me ater a isso. Porque eu sou só um bardo. Eu não tenho esse talento de verbalizar racionalmente. Eu só consigo falar do lado afetivo, mesmo.
Você lançou um vídeo com a faixa instrumental “Kyrie”, no qual imagens de catedrais que remetiam a um aspecto que muitos poderiam julgar como religioso, e isso foi apontado como um problema por um comentário feito por um fã em uma rede social. E você respondeu de forma bastante equilibrada, explicando sobre a ideia de buscar não um foco religioso, mas de harmonia. Eu me identifiquei com o que você falou, uma vez que, mesmo ateu, consigo sentir esse efeito ao visitar locais de profundo silêncio, como catedrais ou templos antigos.
Isso mostra que a espiritualidade é uma coisa totalmente diversa da religiosidade. A religião é uma construção humana, com todos os defeitos das construções humanas, com todos os colapsos e todas as contradições que há dentro. Mas a questão do sentimento espiritual é algo que até mesmo o ateu é capaz de se antenar e receber essa mensagem. De elaborar esse mistério que há no cosmos, no universo. Eu li profundamente o livro “Deus, Um Delírio”, do Richard Dawkins, que é um dos mestres. É um cientista-biólogo e escreveu esse livro sobre a construção da religião. Esse tema me fascina. Eu sou um apreciador das histórias nas quais a humanidade construiu a estrutura chamada religião. É uma coisa que me fascina e que acho belíssimo. Todas as religiões possuem uma beleza extrema nessa construção. O Budismo, por exemplo. O Nichiren Daishonin, o Sidarta Gautama e os demais mestres do budismo, têm uma profundidade maravilhosa. Para mim, eu consigo, ali, ter uma reverberação profunda do meu sentimento em relação ao universo. Sou fascinado pela história do judaísmo, do islamismo. As religiões de descendência africana, que têm outra linguagem. Não é uma linguagem, por exemplo, das escritas. Não eram escritas. Essas religiões todas do oriente médio são escritas por causa de uma planta, que é o papiro. Ela nasce no Rio Nilo e com aquilo se produzia o papel. Os caras se manifestaram através de escrituras. Então, as religiões africanas têm o ritmo e a dança como elementos de comunicação com essa instância espiritual. Isso é igualmente fascinante para mim. Eu trabalhei em terreiros. Tanto na umbanda quanto no candomblé, eu recebi orixás. Tenho mediunidade, se eu viesse a desenvolver essa linguagem. Então, para mim, a beleza desse fenômeno é inegável. É uma coisa de uma beleza inacreditável. Falando desse misticismo, de religiões, dessa raiz religiosa do oriente médio, o que eu quero dizer é que essas religiões muito antigas, muito ancestrais, todas do ramo abraâmico, que é do profeta Abraão, possuem ali uma divisão entre o judaísmo, o catolicismo e o islamismo. Essas religiões são muito de escribas. E, como disse, são coisas muito ligadas à geografia, ligadas ao papiro, que existe ali no Rio Nilo e que é uma herança da civilização egípcia. Aquilo faz parte tudo do mesmo bloco. Um bloco do levante, como é chamada essa região do globo. E a história do Egito é pontuada de intervenções misteriosas. Há elucubrações sobre intervenções de extra-terrenos. São os mistérios das pirâmides, o alinhamento com Orion, essas coisas todas que permeiam a história antiga do Egito. E o faraó Akhenaton, que era quase que um alienígena. Há uma série de elucubrações sobre essa figura, que tinha aquela cabeça comprida, e as figurações que há em desenhos hieróglifos, por exemplo. Com desenhos de pessoas que usam capacetes, têm carroças voadoras. Então, sobre a história da humanidade, eu sou muito curioso. Li muitos livros a respeito. Inclusive, nós estamos saindo com um vídeo muito bacana para a faixa “A Cordilheira”. Esse vídeo fala que nós somos insetos, micróbios com radiotelescópios, naves e radares para atravessar galáxias e confirmar que existe um Deus. Não é descobrir que existe um deus. É confirmar que talvez o homem, através da ciência, tenha a grande busca da ciência como a razão de tudo. É tudo tão insondável. E agora se aproxima um momento de convergência da fé e das crenças sobrenaturais com um universo que, de tão fantástico que ele é e de tão quanticamente imponderável, a ciência vai chegar a um ponto de cruzamento com a religião. Então, isso é uma maneira elevada que eu vejo. O povo hebraico é um povo que tem uma história que me fascina. A minha família, os Arantes, vem de uma ascendência judaica. Então, o meu fascínio é muito grande pelos livros, por essa cultura de escrever as coisas. E pelas profecias. E longe da gente questionar a Bíblia, por exemplo. A Bíblia é uma biblioteca de um tamanho descomunal, cuja interpretação é a cada dia mais desafiadora à medida que a gente avança para o tamanho do universo, para o tamanho da criação. Agora, as visões das pessoas têm que ser respeitadas. E as religiões estão em outro território, que não é apenas a espiritualidade, mas uma construção cultural. Então, quero dizer isso. Não é exclusividade daqueles povos daquela região. Inclusive, na América Latina, as incursões e as referências estelares são mais presentes ainda. Para mim não resta dúvida, por exemplo, sobre a queda de um meteoro na Península de Yucatán, que teria proporcionado a mudança da vida na Terra, quando extinguiu os grandes répteis e, ali, os mamíferos tiveram um “upgrade” na evolução. Há gente que atribui até uma mão divina para empurrar esse meteoro para cima da Terra. Agora, que a Terra é um lugar peculiar, incrivelmente peculiar no universo, isso é. Nós estamos aqui para provar que somos seres muito misteriosos. Somos parte de um processo muito grande, muito louco. Eu sou assim, bicho. Muito delirante. Desde o começo lá da minha carreira.
Em “Kyrie”, como foi esse aspecto de atrelar um foco espiritual ao vídeo e, também, à música, que possui um aspecto evidentemente oriundo do rock progressivo?
Nesse vídeo, tentei invocar a grandiosidade desses temas em cima de uma canção que remete a um canto gregoriano, uma coisa que lembra o progressivo. Lembra o Vangelis com o “Heaven and Hell”. Lembra um pouco os vocais do Yes, que acho uma coisa divina. Tem momentos em que a música alcança altitudes, também, grandiloquentes. Assim como a religião tem. E tantas outras linguagens humanas que conseguem elevar ao alto a alma. Então, eu acho que aquelas representações têm um aspecto crítico. Quando faço aquelas imagens com “Kyrie”, eu coloquei lá uma catedral islâmica porque ela é bonita, simplesmente. Mas tento resgatar esse sentimento de grandiosidade do progressivo. O ProgRock foi muito importante na minha mocidade. Foi quando se convergiram conceitos não só da psicodelia, do uso de substâncias de conexão, de substâncias transformadoras de percepção. Essa época na minha vida, que foram os anos 1970, e eu estava na faculdade, o progressivo era uma coisa que era inacreditavelmente bela. Me lembro do Emerson, Lake & Palmer, na música “Jerusalem”, que é um clássico da Inglaterra. Aquilo é uma referência da vida. Não consigo ouvir aquilo e não sentir uma emoção. E acho que essa emoção é mais importante do que a crença, do que a fé, do que a religião, do que a construção religiosa. Esse troço que sai de dentro da gente, é ele que faz esse Deus sorrir. Seja lá que Deus é esse. Que estrutura monstro que tem no universo. E essa referência a “Jerusalém”, me faz pensar no fato de que o povo hebreu é um povo considerado estranho naquela área palestina. Tanto que há uma disputa por aquelas terras e aquela região ali. Uma região que é de uma cultura fascinante. Houve a presença dos filisteus, houve a guerra de Israel, e esse constante conflito étnico. Esse povo é tratado até hoje como um povo estranho, de origem desconhecida, que veio de alhures. São dali, também, mas há controvérsias. E há vários povos na humanidade que carregam essa mesma intervenção, essa possibilidade, como os astecas, os incas, aquelas regiões lá do Peru, que têm aquelas inscrições, por exemplo. O Erich von Däniken foi alguém muito forte para a nossa geração nesse assunto. A influência do “Eram os Deuses Astronautas?”, que era um livro recorrente dos anos 1980, é grande. E isso não fica nunca muito esclarecido, o livro ficou reduzido a mero “folclore” de uma era de papo-cabeça… No Camboja, também, há intervenções na Ilha de Páscoa. São muitas as perguntas sobre esse mundo ancestral da humanidade. Não é exclusivamente do povo hebraico essa ligação com os céus. A humanidade inteira possui essas referências. E se as pessoas forem mais a fundo, é fantástica essa história. Eu não tenho dúvida, na minha opinião, que houve na humanidade intervenções alienígenas. A questão da vida no universo, para mim, não é: “será que existe vida no universo.” A questão, para mim, é: “será que existe algum lugar do universo onde não existe vida?” Essa é uma boa pergunta. Porque eu acho que a vida é uma espécie de praga do universo. Ela é uma coisa altamente contagiosa, altamente eficiente no seu processo de espalhar-se pelo universo. Essa observação do universo vai se ampliar com esses novos telescópios, como o James Webb, que vai abrir uma perspectiva maior, pois eles são milhões de vezes mais potentes. Ele vai ficar, inclusive, em um ponto do sistema solar, o “Second Lagrange” ao redor do Sol, que é o ponto característico ali perfeito para observação. Eu acho que a humanidade está se aproximando do momento de uma constatação óbvia que deve haver artefatos de grande engenharia, de grande porte, em várias partes do universo. E isso vai colocar as questões religiosas em outro patamar. Não é que vão negar ou contradizer as crenças de uma entidade criadora. Isso tudo é um mistério gigantesco que me fascina. E longe da ciência fazer desabar os pilares das religiões. Mas a ciência também é uma criação divina. A Sublime Criação nos fez e nos quer sábios. A razão e a curiosidade humana são fantásticas. Essas são todas criações maravilhosas do universo, e vão permitir que o mundo, que a humanidade, descortine essa grandeza. A cada dia eu acho que esse Deus fica maior. Longe dele ficar menor, a cada dia ele fica de um tamanho mais descomunal. Então, não é uma questão de desafiar a teologia, nem de questionar etnias A, B ou C. A humanidade tem uma ligação cósmica muito importante.
“Kyrie”, na junção daquelas imagens, bem como nesse mergulho proposto pelo disco como um todo, gera, realmente, essa conexão de refletir sobre a humanidade e sobre suas origens.
Olha, não estou aqui dando uma de arauto desse lado exotérico, mas é evidente que a Terra é tão velha, e a história da humanidade é tão misteriosa, que essa construção não deixa de ser bela. A construção da Bíblia, desses livros sagrados, do Torá, da Cabala, a construção dessa sabedoria toda, interessa muito. E “Kyrie” é uma música para trazer elevação. Independente da crença de cada um, mas o que eu quero ali é colocar emoção que provoca uma coisa espiritual. Mas não é uma elegia ao catolicismo. É que o catolicismo construiu de forma grandiloquente as obras arquitetônicas. A beleza é inegável. A Capela Sistina, essa construção. Você estar diante do Davi, de Michelangelo, é uma coisa que beira a uma experiência divinatória. Estive ali diante daquela representação e é uma coisa inacreditável. O pé do Davi, do Michelangelo, é algo que é muito mais que um pé. Aquilo é uma expressão da arte que chegou a um ponto que nos leva a uma satisfação misteriosa. Dá um troço na gente. Esse troço na gente, é nele que eu estou interessado. Porque trabalhar pela crença, pela fé ou pela ideologia é muito pouco. Acho que a gente quer trabalhar o espaço recôndito da pessoa. O que você pode brotar é muito mais do que uma construção geométrica de acordes. Eu tentei dar nesse vídeo um crescente, crescente que, aí, quando aparece a luz em cima do santo sepulcro, aquilo é porque eu, humildemente, ajoelho diante de Jesus, ajoelho diante de Buda, ajoelho diante desses grandes que trouxeram uma outra dimensão para a humanidade. Agora, do que isso é feito, no que isso se transformou, escravatura, isso é a miséria humana que transformou, por exemplo, o império do Vaticano em uma coisa sanguinária, das igrejas terem aquele ouro todo dos incas. Porque, aqui na Espanha, está tudo à mostra. Você vê o ouro dos astecas e dos incas ali resistindo nos altares. Eu não deixo de ter senso crítico quando chego diante de uma igreja. Quando eu chego, por exemplo, diante de um cemitério ou de uma igreja, e é importante o que eu vou falar. Eu pergunto: “o que está ali? É ali que mora Deus? Não. Não é ali que mora. É ali que mora o criador do universo? Ele mora ali? Para que essa casa? Para que? Por que o ser humano faz isso?” Por que o ser humano levanta pirâmides?” E tem outras pirâmides que a humanidade levanta que não são físicas, que são no campo da linguagem, no campo espiritual. E que são pirâmides, também. Por que a humanidade precisa dessas representações? Eu já me julgo bem próximo de uma síntese, de uma ligação com uma coisa bem maior que existe por trás de tudo. Acho que as pessoas deveriam procurar, também. Procurar por algo mais grandioso. Um Deus caipira, por exemplo, que tenha criado o mundo outro dia, a semana passada. Um Deus caipira porque as religiões tentam codificar para aquela pessoa humilde que tem pouca compreensão. Mas quem tiver mais compreensão, pode enxergar o tamanho desse troço como sendo um tamanho que impõe respeito maior. Não é simplesmente sair acreditando. Eu sou um cara que olha o universo como uma coisa magnífica. Um negócio de um tamanho descomunal. E eu acho a ciência uma das coisas privilegiadas. Para quem tem a fé nesse Deus, a ciência também é uma obra desse Deus. O conhecimento e a razão humana também são criações divinas. E o poder de duvidar também é uma criação divina. O poder de questionar também faz parte. Então, as pessoas devem saber que esse universo estará sorrindo sempre que você estiver grande de alma, para enxergar grande as coisas. E não tentar reduzir em um código pequeno de conduta, um código de comportamento. Isso não tem nada a ver. O que eu quero é o sentimento lá dentro das pessoas. É isso que eu acho uma busca bacana.
Foi curioso ouvir a faixa “Nossa Imensidão a Dois” e pensar no aspecto nostálgico que me acalenta às vezes. No modo como muitas lembranças de alguns períodos antigos de minha vida agem comigo de modo quase terapêutico, nessa mesma ideia de cristalizar o passado ao observá-lo por um caleidoscópio que você cita na letra.
Essa música foi uma que eu insisti em terminar a produção para lançá-la direito, com um arranjo bacana. Ela é um pouco antiga, de 2018. Agora, o que eu acho que é a chave da canção é: “lá no fundo, as memórias, nada foi tão perfeito. E essas memórias se cristalizaram em um caleidoscópio de ilusão.” Esse poema, eu agradeci muito. Agradeci por ter vindo essa mensagem de que a gente cristaliza o passado e o joga em um caleidoscópio de que tudo foi perfeito. Essa coisa dos cristais dentro do caleidoscópio, as imagens que ficaram do passado, que se cristalizaram, ficam purificadas. Mas o passado era difícil, era sofrido demais, nada foi tão perfeito. A vida é sempre íngreme. Essas dificuldades, essas épocas que a gente passa como provação, lá no futuro, vamos cristalizar e jogar em um caleidoscópio de ilusão. O que eu quero, e que é preciso, é fazer um pacto de dar valor. Mais do que tudo, sempre dar valor. Eu tenho uma memória prodigiosa que guarda elementos da minha infância, da minha mocidade, da minha adolescência. E isso é um acervo que todas as pessoas têm dentro de si, e que têm que manter de tempo em tempo a reavivar. Alimentar para que essas memórias não fiquem em uma zona já de arquivo morto. Porque nada na vida é arquivo morto. Tudo está presente. E a nossa mente é prodigiosa em vencer o tempo. Acaba vencendo o parâmetro do tempo, que é o grande mistério da vida. Você ter tudo isso presente, o acervo que você tem, que é a sua vida, é precioso. É uma coisa que você tem que guardar com muito zelo. Com carinho, com perdão, com compaixão. Mais uma vez, a palavra compaixão comparece porque ela é a maneira melhor de conservar as memórias. O conservante de memórias perfeito é a compaixão. Porque você abraça o que você viveu e consegue dar um passo além. Nós somos prodigiosos nas nossas memórias. É algo muito presente em nós. Essa música é muito especial para mim, pois fiz em um momento dramático de minha vida. A idade vai passando. A gente vai chegando nos 70 anos e eu acho que houve uma sinergia com o público. O pessoal de rádio adorou a música. O Zeca Camargo, por exemplo, falou para mim que a música e a letra bateram fundo nele. Com quase 70 anos de idade, essa é uma realização muito grande: eu conseguir ser pungente, ser importante, como eu fui quando tinha 15 anos. Foi quando eu escrevi “me atirei no mundo, vi tudo mudar. Das verdades que eu sabia…” Eu era um menino. Um menino angustiado, como eu sou hoje, ainda. Aquele Guilherme está aqui presente, ainda. Isso é uma alegria muito grande que sobreviveu. O melhor de mim era a minha angústia. O melhor de mim era o meu estranhamento, a minha solidão. Era um menino ensimesmado, caminhando sozinho, e escrevendo, escrevendo. Eu me senti de novo assim, agora, no quartinho aqui de casa onde eu fiz o disco. (N.E. Nesse momento, durante a conversa de vídeo, Guilherme mostrou o local de trabalho – abaixo – e a prova da capa do disco).
E a arte da capa?
Essa imagem na capa do disco é o El Rastro. Essa é a imagem do LP, com essa capa dupla. O LP vai ter que ser importado, pois no Brasil está faltando a matéria prima. Fizemos grande, assim, com um encarte que é todo tipo um almanaque. E se aproxima do cordel, também. Essa linguagem ibérica de Don Sebastião, que sumiu na guerra lá no Alcácer Quibir, e que é uma coisa portuguesa que está muito presente no imaginário do cordel. Presente no Nordeste do Brasil, no agreste, que na nossa geração, tem o Geraldo Azevedo, que é um mestre do Barroco. Ele é um bardo barroco com o seu violão. E junto com ele, vem o Alceu Valença e o Zé Ramalho. Tem também o João Cabral de Melo Neto, o Ariano Suassuna, e o Movimento Armorial. Tudo isso é muito ibérico. Lembra o muito Espanha, Portugal. Lembra muito idade média. Esse é o clima disso aí, que eu acho que tem muito a ver comigo, com o afeto meu, também. Com o fato de eu transformar o rock progressivo em um baião, um rock progressivo de cangaceiros. E o cangaço possui esse heroísmo e essa utopia. E a distopia, também. É algo muito brasileiro e tem tudo a ver com a superação da nossa etnia brasileira. Eu achei que me leva muito para as músicas de festivais, sabe? (Cantando a música “Ponteio”, de Edu Lobo): “Era um, era dois, era cem. Vieram prá me perguntar: Ó você de onde vai, de onde vem?” Então, é Capinam, é o “Domingo no Parque”. Eu acho que isso é fantástico. É “Disparada” (canta a música de Jair Rodrigues):”mas o mundo foi rodando, nas patas do meu cavalo.” O Brasil precisa disso, Jesus! Sabe? Precisa desse heroísmo. Precisa levantar a nossa alma. A nossa alma guerreira, no bom sentido, entendeu? Contra a truculência do mundo. Eu acho que esse disco consegue levantar essas questões já de uma vida longa. Já estou indo para os 70 anos, em breve. Mas é um privilégio, aqui, porque eu estou longe, fora no tempo e do espaço das coisas. Parece que o mundo parou para que eu conseguisse alinhavar um troço novo na minha vida. Eu tenho uma gratidão enorme por estar vivendo isso. Por lançar um disco desse. Por poder contar tudo isso. É um privilégio para mim, sabe? Um momento, assim, de vida, em que você coloca para fora uma pepita grande que se achou ali. É pra isso que a gente vive. Para esses momentos assim. E eu quero com esse disco, realmente, conquistar outros públicos, também.
Em relação ao seu processo de composição, queria abordar contigo se a faixa “Nenhum Sinal do Sol” possui uma intenção de transcrever um momento de pesadelo, uma situação que você pode ter vivido realmente, porém ela traz uma sensação de otimismo de nos fazer perceber que trata-se de uma fase que poderá vir a passar. Houve essa intenção, realmente, na sua mensagem?
A música fala de um pesadelo no qual o rei estava na porta do El Rastro. Esse nome, El Rastro, é o de uma rua, aqui. Na Espanha, El Rastro é onde se faz o mercado, onde se vende as mercadorias. Aqui se chama El Rastro de la Carne, porque a rua ficava toda ensanguentada, pois traziam os bichos mortos. É uma coisa meio bárbara daqui de Ávila. Aqui é um lugar de pecuária. É a capital da carne na Espanha. Então, chama El Rastro de La Carne. Mas ele ficou marcado como um lugar nobre de participação social, onde todos os eventos públicos aconteciam. Tem um balcão ali e eu fico imaginando que se abriam as portas e o rei fazia seu pronunciamento. As leis e todos os eventos aconteciam no El Rastro. A multidão toda ia para lá. Enfim, é um espaço político. E ali, então, o rei decretava que os jovens teriam que se alistar, os varões. E eu realmente tive esse sonho no qual nós éramos bem pobres, e eu me pus no lugar que nós éramos dois jovens com 20 anos, inocentes, com roupas de trajes pastoris. E ali naquele balcão, o rei decretando que eu teria que me alistar e partir rumo ao Sol Nascente, que é Jerusalém. E lá, lutar pela fé, decretando as cruzadas. E, então, eu juro para ela que vou voltar, que eu vou me encouraçar, que nenhum dragão vai me ameaçar e que vou voltar para casar com ela. Eu fiquei muito envolvido por essa cena. Parece uma cena de filme, daqueles medievais, com o rei autoritário sobre a população. No meu sonho, eu voltava lá para buscar a minha esposa. Nós fugíamos de lá e vínhamos para o tempo atual, de 2021, em Ávila, onde o dia estava amanhecendo. Nós escapávamos daquele tempo de guerra e vínhamos para esse tempo, aqui. Um tempo mais real, só nosso. Isso porque o tempo que vale é o tempo afetivo. É o tempo do amor. É o tempo da paz. É o tempo da compaixão. Esse é o nosso mundo. É o mundo real. Aquele mundo de guerra. Aquele mundo de cruzada, de morte, lança, de se encouraçar, aquilo tudo é uma mentira. A realidade da vida é a beleza do nosso tempo, aqui. Nosso tempo afetivo, em que o sol está nascendo. E eu, naquele momento, anotei rápido aquilo, pois sabia que era uma letra de música. E eu tentei transformá-la no mais Elton John possível. Assim, com o baixo de pau, a orquestra. Porque o Elton John é altamente barroco nas músicas dele. Então, eu fiquei muito satisfeito com a beleza, com a delicadeza, com a vassourinha que o Gabriel (Martini) fez na bateria. Com o baixo de pau, uma coisa acessível, com violões, alaúde, e a orquestra. É uma coisa que remete ao Jean Claude Vannier, que é o arranjador do Serge Gainsbourg. Quando na parte final a letra diz: “vem, nos resgata essa manhã, que nos faz desertar, fugir, para um mundo mais real, só nosso. Acordo assombrado de um sonho e ainda não tem nenhum sinal do sol.”Achei tão bonito isso. É um dos momentos mais eu, porque nós, aqui, somos muito sozinhos. Eu e a Márcia, isolados, sem a família, sem ninguém. É o nosso amor, aqui. Algo que é importante para a gente, importante para mim. Este é um disco que me dá um troço de ouvir. E eu quero passar isso para todo mundo. Se passar, ficarei muito feliz. Porque eu acho que esse é o melhor da gente. É o afeto. É isso que a truculência espera que a gente perca. O afeto. E aqui, ó! Aqui para a truculência! Nós temos que ser amorosos. Nós temos que ser afetivos. Então, para preservar não é só receber uma vacina e botar uma máscara. É também, alegoricamente, a gente encouraçar o nosso afeto.
Começamos o papo falando sobre sua trajetória e sobre os desafios que você se impôs na busca por reconhecimento. Há rimas, por exemplo, entre o lançamento de “Coração Paulista” por aquele Guilherme Arantes de vinte e poucos anos, e, agora com A Desordem dos Templários pelo Guilherme de sessenta e poucos.
Há, sim, com certeza. Esse é um disco de superação. Superação de várias coisas. Da angústia, da minha dor física, que eu continuo sentindo. Tive que vencer essa braquialgia. Tive que vencer o nosso isolamento da pandemia. Vencer esse tempo de distopia no mundo, no Brasil. Um tempo, também, de angústia com a minha carreira, com o que foi. A gente não quer entregar a rapadura, como se diz. Não queremos largar o osso. Queremos significar. Significar um diferencial para as pessoas. Trazer um novo olhar. Um olhar que eu acho que posso proporcionar. Um olhar distanciado no tempo e no espaço. É um vinilzão como era o “Coração Paulista”, também. Um disco com uma arte na capa, algo mais conceitual, uma coisa mais forte. Agora, eu tenho uma grande gratidão com a vida e uma gratidão com a indústria fonográfica, também. Porque, naquela época, poderia ter sido proibido para mim, fazer um troço daquele. E as pessoas a quem eu tenho que agradecer, como o Andre Midani, o Leonardo Neto, essa gente que acreditou e deixou. “Deixa o Guilherme fazer as loucuras dele ali.” Isso é um privilégio. Eu me considero um privilegiado de verdade. Uma gratidão muito grande de ter um público muito amplo, muito diverso, muito socialmente crossover total. Pega pessoas de todas a gamas sociais, regionais ou religiosas, que seja. A gente consegue ser abrangente. Isso é um privilégio muito grande. Sabe, músicas que eu fiz, como “Cheia de Charme”, uma canção comercial, de balanço, de rádio, mas é uma música que deu alegria para tanta gente, de tantas gamas da sociedade. E quando toca, podemos estar desde uma comunidade mais simples, como um clube naval da marinha, um pessoal mais chique da zona sul, e a gente percebe que a alegria é a mesma. Imagina que tem show que eu faço e quando eu toco “Cheia de Charme”, os casais se beijam, os homens se abraçam, viram crianças. Puxa, quando você traz essa alegria, é um grande diferencial para a gente. Então, é isso. Eu consigo ter uma carreira bastante completa. Espero que esse ano a gente emplaque várias dessas músicas. Porque elas são, também, radiofônicas. Foram todas medidas para ter um tamanho radiofônico. Aquela coisa da introdução de 20 segundos, depois vem uma parte de um minuto e é quando entra já o refrão. Isso aí é Beatles, é Erasmo Carlos, é Tim Maia, são os grandes hitmakers. Então, esse ano, aqui eu acho que eu estou com a macaca (risos). Vai ser um ano bom!
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.
Nos anos 70, minha irmã tinha um poster gigante do arantes no quarto dela. Eu o ouço desde o primeiro disco de 76. Considero os quatro primeiros discos dele, clássicos absolutos do rock nacional. houve uma época em que defendia o guilherme arantes em rodas de amigo e era execrado. Vejo agora o reconhecimento devido. Nos anos 90, ele escreveu Pão, que era um diálogo direto com Tempo Perdido, do Renato. Há canções como Águas Passadas, Antes da Chuva Chegar, Brazilian Boys, 14 anos, a Cara e a Coragem, que são reflexões absurdas sobre amadurecimento. Que bom que Guilherme Arantes está sendo redescoberto. Mas a produção dos anos 70 é infinitamente melhor que a dos anos 80.
Que cara lúcido. Que disco maravilhoso. Que arte necessária nesse país tão machucado…
Maravilhoso relato de Guilherme Arantes sobre o mundo em sua trajetória perversa de esquecimento de valores inafastaveis, como Democracia e Estado de Direito. O hiato de tempo entre os Templários e o “Cretinismo Ideológico” de hoje nos força a questionar a idéia da evolução como espécie biológica, mas o preço disso em relação ao retrocesso mental é cultural. Quem diria que em pleno século 21 veríamos um preto nazista um judeu entrincheirado num empreguinho de Governo de ultra direita, ou militares nacionalistas do Brasil entregando-se às benesses norte-americanas, inclusive batendo continência à american flame? Os Templários ao menos tinham valores, questionáveis, mas tinham .
Bela entrevista. Comecei a ouvir esse disco “A desordem dos templários” e estou gostando muito. Ouvirei mais algumas vezes para pegar os detalhes.