entrevista por Pedro Salgado, especial de Lisboa
Influenciado pelo jazz, música clássica, pop e world music, pelos compositores americanos e pela música exótica, Bruno Pernadas é hoje um dos músicos portugueses mais criativos da sua geração. Assenta o seu trabalho no pop de fusão, onde inclui diversos instrumentos e elabora paisagens sonoras atrativas. Pernadas começou a estudar música clássica aos 13 anos e, algum tempo depois, iniciou outra aprendizagem na Escola de Jazz do Hot Clube de Portugal. “Através dos meus colegas do Hot Clube tomei contato com músicos brasileiros que não conhecia. Eu tocava principalmente música de fusão, como é o caso do Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti. Atualmente, escuto Piry Reis, Artur Verocai, Erasmo Carlos, Simone, Marília Medalha e Elizeth Cardoso. Enfim, bastante música do Brasil (sorrisos)”, conta.
O disco de estreia de Bruno Pernadas, “How Can We Be Joyful In a World Full Of Knowledge?” (2014), definiu o padrão que caracteriza a sua arte: perfeccionismo, requinte sonoro e um sentido exploratório apurado. Passados dois anos, o músico lisboeta editou dois álbuns: “Worst Summer Ever” (um disco denso de jazz) e um trabalho de pop simultaneamente apelativo e aventureiro, “Those Who Throw Objects At The Crocodiles Will Be Asked To Retrieve Them”, que foi aclamado pela mídia e por várias publicações portuguesas. Sobre a razão do sucesso de “Crocodiles”, Pernadas reconhece a eficácia do álbum, mas aponta outra razão. “Esse disco tem um pop que não é muito comum ser feito em Portugal. Conheço outros artistas no mundo que se aproximam melódica e harmonicamente da minha música mas, sem desprimor para ninguém, desconheço que exista algum músico ou banda portuguesa com a mesma abordagem. Julgo que o interesse no álbum vem dele ser um pop ‘fora da caixa’”, explica.
No mais recente trabalho, “Private Reasons” (2021), a aposta recaiu em letras pessoais, ligadas às suas emoções e experiências particulares. Em termos sonoros, Bruno introduziu um quarteto de cordas, efeitos de voz, bem como sons do Japão e da África do Sul, que deram mais substância ao colorido instrumental e contribuíram para a vivacidade do disco. Relativamente ao sucessor do single “Theme Vision”, Pernadas propõe uma abordagem contrária ao procedimento habitual: “Deverei optar por um tema diferente, tal como ‘Lafeta Uti’. A faixa ‘Family Vows’, por exemplo, está dentro do universo pop. Mas, prefiro algum contraste no novo single que irei apresentar”.
Quanto à inspiração para compor a música “Recife”, Bruno conta uma história interessante: “Há cerca de quatro anos houve uma mostra de cinema em São Braz de Alportel (vila no sul de Portugal) e fui convidado para musicar um filme inacabado de Orson Wells, ‘It’s All True: Four Men On A Raft’ (1942), cujo título no Brasil é ‘Os Jangadeiros’. No fundo trata-se do arquivo da viagem de uma população, que abandona a sua ilha, e procura mantimentos para trazer de volta a casa. Durante a viagem, nas jangadas, essas pessoas passam por vários locais do Brasil e um deles é a cidade do Recife (depois seguiram para o Rio de Janeiro). Eu compus a música especificamente para o momento em que eles chegam ao Recife”.
Para além do seu projeto solo, Pernadas trabalha com várias bandas, nomeadamente Minta & The Brook Trout, Real Combo Lisbonense e The Sun Ra Project, entre outras, e faz música para filmes, teatro e dança. Recentemente, compôs a trilha sonora de “Glória”, o primeiro seriado português da Netflix. “Nestas situações, o meu processo criativo varia sempre e nunca aconteceu que eu fizesse tudo da mesma forma”, explica. E no que respeita ao cinema, sublinha o caráter contingente do trabalho: “As coisas mudam consoante o realizador (diretor). É difícil, porque temos de compor a música que os autores e criadores (diretores neste caso) estão à procura de ouvir no seu filme”. E conclui exibindo uma perspectiva otimista: “Embora não dê para romantizar, porque é mesmo trabalho, ao mesmo tempo, deixamos uma marca da nossa música, servindo as imagens e o filme”. De Lisboa para o Brasil, Bruno Pernadas conversou com o Scream & Yell. Confira:
As letras do seu novo disco são bastante pessoais e você incluiu um conjunto alargado de soluções sonoras. Gostaria de saber se considera “Private Reasons” o seu trabalho mais ambicioso e se pensa na forma como o álbum vai ser lembrado no contexto da sua carreira.
Considero que a ideia se aplica mais ao tema “Step Out of the Light”. É uma música ambiciosa, porque foi feita durante a pandemia e era difícil ensaiar, naquele momento. Ainda bem que foi incluída no trabalho, porque é uma das canções preferidas dos que escutaram o álbum, senão mesmo a mais ouvida pelas pessoas. Por isso, a ambição que coloquei nessa faixa acabou por valer a pena. Relativamente ao contexto, eu não faço um álbum com essa linha de pensamento presente, mas, às vezes, a pergunta vem ao meu encontro: como é que as pessoas se vão lembrar dos discos? Acredito que elas vão recordar o “Private Reasons” por ser um álbum de 74 minutos que foi lançado em 2021, pós-pandémico, e foi o trabalho que conseguiu a maior internacionalização até ao momento. Em termos práticos, isso só se reflete nas vendas, porque eu estou em Portugal e contínuo a tocar aqui. Mas percebo a sua ideia e essa noção está presente.
Numa entrevista de 2017 você definiu a sua música como space age pop. Gostaria que me explicasse melhor esse conceito e se ainda se revê nessa definição.
O space age pop é uma corrente relacionada com a música exótica e associada a compositores como Les Baxter, Martin Denny, Esquivel ou Arthur Lyman, entre outros. Houve uma altura, nos anos 1970, em que continuaram na linha inicial mas, como já era muito datado, eles fizeram uma espécie de pop do futuro. E o space age pop vem daí. Sinto que neste disco se perdeu um pouco da marca anterior e que, seguramente, a “Step Out of the Light” está mais ligada a esse gênero musical. A essência do meu novo álbum é o pop e as melodias também o são. Se escutarmos a “Family Vows” ela é um pouco parecida com o R.E.M.. Já o “Lafeta Uti” é uma música afrobeat e não tem nada a ver com isso. As outras têm uma costela pop, à exceção do tema “Recife”. Mas não são, de todo, comerciais.
Você deu dois espetáculos nos dias 21 e 22 de Maio na Culturgest (Lisboa). Qual é o balanço que faz ao nível da receptividade do público às novas músicas e ao desempenho da banda?
Este foi o concerto da apresentação do disco mais difícil de realizar, porque houve imensos atrasos devido à pandemia e outros compromissos. Por isso, tivemos de montar este show num espaço de tempo recorde e foi muito intenso. Só tínhamos as manhãs e ensaiávamos nesse período do dia. As canções estavam bem tocadas, mas foram interpretadas de uma maneira pouco funcional, já que não as executamos de forma completamente livre (tratava-se da estreia). A receptividade do público foi boa. Para nós, falo por mim também, é mais simples tocar as músicas antigas, já que fazemos outras coisas, ficamos soltos e dá para sentir a banda e sairmos da nossa bolha. Nos temas novos e mais complicados, isso não é possível. Julgo que é difícil perceber a energia do público no auditório, quando ele está dividido desta forma e em que só atuamos para meia plateia. Para além disso, as pessoas estão às escuras, com máscara, o que não permite ver as reações e temos que nos basear somente nos aplausos. Mas sinto que a assistência gostou do espetáculo. Quando as pessoas vão assistir ao meu show já não são tão surpreendidas como eram no início, em que não tinham escutado este tipo de música. Agora já sabem o que esperar (sorrisos).
O seu trabalho é igualmente apreciado no mercado estrangeiro e recentemente você e a sua banda estrearam-se internacionalmente com shows no Portugal Alive (Madrid), BAM Festival (Barcelona), FRUE Festival (Shizuoka) e WWW (Tóquio). Planeja fazer mais atuações no exterior, nomeadamente no Brasil?
O Brasil foi o primeiro país, fora de Portugal, que escutou a minha música e o Japão só existe por causa do Brasil. Em primeiro lugar, as minhas canções apareceram em blogues brasileiros e eu comecei a trocar algumas mensagens com eles. Os japoneses consomem muita música latina e da América do Sul e foi através de um desses sites que eles tomaram conhecimento de mim. Sempre esteve nos meus planos fazer um concerto no Brasil e, inclusivamente, cheguei a falar com alguns promotores. Tivemos uma oportunidade, que podia ter sido a rampa de início de carreira, quando tocamos em 2018 no MIMO Festival, em Amarante (cidade na região norte de Portugal). É um festival brasileiro, que também acontece em São Paulo, Curitiba e mais locais. O show foi um sucesso e acho que as pessoas que nos contrataram não sabiam muito bem como é que a banda soava ao vivo. Quando viram o espetáculo ficaram extasiados e eu apareci na capa da revista da Globo, o que é estranho, porque podiam ter posto um músico português mais famoso, como o Rui Veloso, mas escolheram-me a mim. No final do show, senti que tinha tido impacto. Depois, quando foi conversada a hipótese de ir tocar a São Paulo disseram-me: “com a tua comitiva não vai dar”. Eu podia ter cedido em alguns parâmetros, mas não aceitei que só fossem três integrantes da banda. Seria muito fácil tocar no Brasil com músicos de lá e até já o fiz. Essa foi a nossa grande oportunidade de entrar no contexto da programação e atuar no Brasil através do MIMO, que seria perfeito, porque não entraríamos por um circuito pequeno.
Vivemos um momento de desconfinamento progressivo e do regresso das atividades culturais, mas ainda há um longo caminho a percorrer. Para onde pretende levar a sua música nos próximos tempos?
Neste momento, a minha música ao nível de concertos e apresentações ao vivo terá que ficar por Portugal. Devido aos cancelamentos e aos shows que foram adiados, este ano não vamos ter muitas atuações. Eu tenho um espetáculo no dia 26 de Junho em Ílhavo (cidade na região centro de Portugal) e mais quatro datas confirmadas até ao final de 2021. Acho que com este projeto, as apresentações ao vivo serão mais no próximo ano. No início de 2022, se o planeta já estiver numa fase melhor, em relação à vacinação e à possibilidade de viajar pelo mundo, acho que, de imediato, apontaremos para o Japão, porque é o único país onde temos uma organização com pessoas a trabalhar na produção de eventos e que nos querem contratar e levar a vários festivais que se realizam lá. Mas, neste momento é impossível entrar no sul da Ásia. Futuramente, gostaria de tocar nos Estados Unidos da América, que é onde eu tenho o meu maior público (registra-se mais 29.000 pessoas do que Portugal). Olhando para o mapa das estatísticas e considerando as plataformas digitais e as vendas, a minha música está presente em tudo o que está à volta da costa. Estou a falar de Vermont, Boston, Nova Iorque e também tenho fãs em Ohio e New England. No início era só em Portland, Oregon e na Califórnia e agora é em todo o lado menos no Alaska e nos estados do Midwest que votam no Trump (risos).
Tem uma mensagem para os leitores do Scream & Yell?
Existe uma relação muito forte entre o meu trabalho e a música brasileira. Por isso é tão imediato o gosto pela música, como foi rápida a forma com que eu e os meus colegas nos interessámos pela música do Brasil quando éramos jovens. Acho que esta conjuntura é um reflexo do lado bom da nossa história, enquanto países. A faceta positiva deve ser evidenciada, tanto na forma como nos expressamos nos meios de comunicação ou nas parcerias e colaborações que estabelecemos, como é o caso do MIMO que eu referi há bocado. Ainda há uns dias eu assisti a quase todas as entrevistas da Simone (cantora brasileira), dos anos 1980 e 1990, e recordo que ela mais tarde criou uma relação forte com Portugal. No fundo, o apelo que eu deixo é este: se a transformação e a forma de fazer música é tão próxima de um país para o outro, então devemos preservar essa ligação. Cada vez é maior a presença da música brasileira em Portugal, aliás sempre houve, mas principalmente nos discos, e agora temos bastantes atuações ao vivo de artistas do Brasil. No meu caso, como tenho este lado tropical e de fusão, que é partilhado por muitos músicos brasileiros, julgo que seria mais fácil fazer um tour lá. Vamos ter que esperar que a direção política no Brasil mude e eu vou tentar abrir essa porta como já fiz no passado.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui.