texto por João Paulo Barreto
Joel e Ethan Coen são mestres em criar personagens idiotas. E isso não é uma descrição simplória do talento dos autores de obras densas como “Onde os Fracos Não Têm Vez” (2007) e “Inside Llewyn Davis” (2013). Mas para além da genial escrita por trás do homicida comportamento calculista de um Anton Chigurh (com a base primorosa de Cormac McCarthy) ou do talento absurdamente sem sorte de um Llewyn Davis, é nos imbecis cometendo idiotices que a caneta dos dois irmãos traça suas melhores linhas. E, mais do que isso, a dupla de roteiristas e diretores sabe utilizar a estupidez humana como mote para que a ganância se torna uma violenta e assassina psicopatia.
Suas comédias de ácido humor sombrio e repletas de uma tragicomicidade brutal são plenas de imbecis perigosos justamente por não saberem que são imbecis. Em seu clássico de 1996, “Fargo”, por exemplo, a dupla de cineastas nos apresentou Jerry Lundegaard, fracassado vendedor de carros que sonha em abrir o próprio negócio, mas vive sob a sombra do sogro rico e arrogante que não perde qualquer oportunidade de lembrá-lo da sua insignificância. Na figura de William H. Macy, que interpreta Jerry, tal insignificância ganha a forma física perfeita de alguém cuja ambição só não é maior que a tal imbecilidade citada acima. Na inóspita e fria região de Fargo, Minnesota, sob centímetros de neve constante, Jerry crê ser uma boa ideia contratar dois sequestradores para levar sua esposa e, assim, pedir o resgate ao sogro milionário. Sabemos que aquilo não vai dar certo, não é? A imagem de Jerry em sua roupa de baixo tentando escapar pelo basculante do banheiro enquanto a polícia o arrasta para dentro, é simbólica justamente por tornar palpável sua trágica estupidez.
“Tudo isso por um pouco de dinheiro? Há mais na vida que um pouco de dinheiro, sabe? E aqui estamos. E está um belo dia. Eu não consigo entender”. Ao ouvirmos essa afirmação da policial gestante Marge Gunderson (Frances McDormand, em seu primeiro Oscar) para o assassino que acaba de prender, o silencioso sequestrador Gaer Grimsrud (Peter Stormare), entendemos toda a ideia por trás daquela proposta de história. Em sua última cena, com Marge e seu marido sob os cobertores e comentando que falta pouco para o dia do nascimento de seu bebê, Joel e Ethan Coen desenham preciosamente o que queriam mostrar à sua audiência após aqueles 100 minutos repletos de risos nervosos e (muito) sangue.
“Fargo”, a série, aprofunda tal proposta de modo a nos fazer refletir sobre essa ideia dos limites da estupidez e, também, nos dá os vislumbres de como as personalidades dos seres criados pelos Coen podem evoluir para novas figuras. Algumas tão estúpidas e imbecis quanto o pobre Jerry, mas outras tão gélidas e aterrorizantes quanto Anton Chigurh. E, de brinde, desenvolve esses monstros contidos nas duas figuras, tanto as patéticas quanto as já monstruosas por natureza. Noah Hawley, criador da série baseada no homônimo filme dos Coen, percebeu esse potencial de desenvolvimento dos personagens de “Fargo” e soube aprofundar brilhantemente essa proposta de desnudar cordeiros que se tornam lobos, bem como escancarar a psicopatia dos já assumidamente predadores.
Na primeira temporada, conhecemos Lester Nygaard (papel que coube como uma luva no carismático hobbit, Martin Freeman). Logo no episódio piloto, vemos o encontro de Lester com Lorne Malvo (um assustador Billy Bob Thornton). Aos poucos, entendemos quem naquele inusitado encontro é o lobo e quem é o (quase) cordeiro. Ao centrar seu texto na desconstrução de Lester, focando em suas humilhações e frustrações, e usando o gatilho do encontro com o manipulador Malvo, o roteirista Hawley entrega de cara o potencial trazido pela fagulha dos Coen no clássico de 1996. E essa aparentemente clichê metáfora de lobos e cordeiros não foi por acaso. Nas observações de Malvo diante da humanidade que ele menospreza e na meta de levar o caos àqueles que visa manipular, a ideia de se considerar um predador em busca da própria sobrevivência é evidente. E perceber como Lester abraça a psicopatia oferecida por Malvo é um dos trunfos da temporada inicial.
No segundo ano, um retorno ao passado daquela gelada região estadunidense, quando conhecemos personagens ainda jovens que se desenvolveram no primeiro ano da série, permite a Hawley e sua equipe de roteiristas brincarem com a proposta de mitologia que o universo “Fargo” contém. E isso sem megalomania ou fuga da proposta de desconstrução de peças centrais de suas histórias. Nas figuras vividas pelo casal Ed e Peggy Blumquist, nos anos 1970, o seriado aplica à risca a sua proposta de explorar a estupidez humana nos limites que a mesma alcança a barbárie. E Jesse Plemons e Kirsten Dunst captam com precisão tanto a imbecilidade dos cordeiros quanto a sagacidade dos lobos que seus papéis possuem.
Ewan McGregor e David Thewlis roubam o destaque da terceira temporada. O primeiro, interpretando irmãos gêmeos, amplia exponencialmente a proposta “fargoniana” de perigosa estupidez humana. Já o britânico Thewlis, com seu repugnante e enigmático V.M Varga, figura cuja caracterização física causa um planejado (e contraditoriamente bem-vindo) asco na audiência, denota precisamente a proposta estanque da série em caracterizar o predador diante de suas presas. É mais um personagem a concretizar a ideia de construção da sedutora perversão oferecida a ingênuos imbecis.
Seguindo por um caminho inesperado em sua quarta temporada, “Fargo” optou por não mais abordar a ideia da dualidade contida no encontro entre idiotas dissimulados e aproveitadores sagazes. E isso de modo acertado, friso. Afinal, foram três arcos fechados seguindo essa opção. Aqui, a ideia de mergulhar na proposta mitológica do universo criminal contido em sua premissa, ganha um novo patamar, com a série se apresentando como um estudo profundo da máfia, algo que já havia sido pincelado na sua segunda temporada. A quarta traz o comediante Chris Rock em incomum (mas eficiente) tom dramático, como um dos chefes em rixa com grupos étnicos rivais. Ainda estão lá, porém, os frágeis camundongos de mentalidades duvidosas e as serpentes traiçoeiras prontas para o bote. “Fargo” sempre vai estar repletas deles.
Mas convém lembrar do gelo fino sobre o qual ambos os tipos caminham.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.